terça-feira, outubro 31, 2023

Judi Dench, Shakespeare & etc.

Eis uns breves e deliciosos momentos de televisão. Aconteceu há dias no programa de Graham Norton, na BBC, com Judi Dench e Arnold Schwarzenegger entre os convidados. Evocando a fundamental presença de Shakespeare no trabalho da veterana actriz inglesa, Norton pediu-lhe que declamasse algum dos seus textos. Assim fez, declamando o Soneto 29, When, in disgrace with fortune and men’s eyes — aqui fica o extracto do programa, os versos e também a respectiva tradução de Vasco Graça Moura.

When, in disgrace with fortune and men’s eyes,
I all alone beweep my outcast state,
And trouble deaf heaven with my bootless cries,
And look upon myself and curse my fate,
Wishing me like to one more rich in hope,
Featured like him, like him with friends possessed,
Desiring this man’s art and that man’s scope,
With what I most enjoy contented least;
Yet in these thoughts myself almost despising,
Haply I think on thee, and then my state,
(Like to the lark at break of day arising
From sullen earth) sings hymns at heaven’s gate;
For thy sweet love remembered such wealth brings
That then I scorn to change my state with kings.

De mal com os humanos e a Fortuna,
choro sozinho o meu banido estado.
Meu vão clamor o céu surdo importuna
e olhando para mim maldigo o fado.
A querer ser mais rico em esperança,
como outros em amigos e talento,
invejando arte de um, doutro a pujança,
do que mais gosto menos me contento.
Se assim medito e quase me abomino,
penso feliz em ti e meus pesares
(qual cotovia em voo matutino
deixando a terra) então cantam nos ares.
Tão rico me é teu doce amor lembrado,
que nem com reis trocava o meu estado.

Nile Rodgers & Chic
— concerto na NPR

Risqué (1979)

Foi, num certo sentido, um regresso às origens: Nile Rodgers esteve com os Chic nos estúdios da NPR para um magnífico Tiny Desk Concert. O evento foi vivido com evidente alegria e, como ele diz, funkocity, ultrapassando os tradicionais 15/20 minutos da rubrica, chegando à meia hora de duração: são seis canções, incluindo Good Times, do emblemático Risqué (1979), e um encore com Let's Dance, do álbum homónimo de David Bowie (1983), neste caso com especial destaque para a condução dos acontecimentos pelo baterista Ralph Rolle.

segunda-feira, outubro 30, 2023

Na cozinha de Frederick Wiseman

Menus Plaisirs - Les Troisgros:
gastronomia francesa filmada por um grande documentarista americano

Desta vez em terras francesas, o americano Frederick Wiseman faz um filme saboroso (é a palavra exacta…) sobre restaurantes e gastronomia: Menus Plaisirs - Les Troigros integrou a programado do Doclisboa, na secção “Da Terra à Lua”.

[FOTO: Wolfgang Wesener]
Um novo filme de Frederick Wiseman é sempre um acontecimento singular, realmente sem equivalente. Desta vez na secção “Da Terra à Lua”, o Doclisboa apresentou Menus Plaisirs - Les Troisgros, revelado há poucas semanas no Festival de Veneza. Para (não) variar, esta é uma proposta que se distingue por uma duração invulgar: quatro horas em torno das pessoas, das rotinas e da fascinante engenharia gastronómica da família Troisgros, proprietária de três lendários restaurantes na região central de França, um deles (chamado Troisgros, precisamente) criado há quase um século e, nos últimos 55 anos, detentor de três estrelas Michelin.
A filmografia de Frederick Wiseman está pontuada por estes exercícios cujo tempo desafia as normas correntes do consumo cinematográfico — para nos ficarmos por aquele que, a todos os níveis, me parece o exemplo mais emblemático, lembremos o prodigioso Near Death (1989), sobre o acompanhamento de doentes terminais num hospital de Boston, com uma duração recorde de seis horas (menos dois minutos…).
Em todo o caso, evitemos o pitoresco. Há uma diferença substancial entre as horas repetitivas, redundantes e monótonas de muitas produções dos estúdios Marvel e o trabalho de alguém como Wiseman, “apenas” interessado em esmiuçar o labor filosófico de quem está apostado em discutir todas os possíveis prós e contras de um suave sabor de amêndoa num molho concebido para um prato de peixe…
À pergunta clássica sobre as eventuais dificuldades para filmar em determinado ambientes muito codificados, por vezes envolvidos em algum secretismo, Wiseman responde sempre com a revelação da sua primeira regra para penetrar em tais ambientes: “Peço autorização.” Assim aconteceu com o restaurante Troisgros que ele conheceu, no verão de 2020, levado por um amigo. De tal modo encantado com a comida e o ambiente, Wiseman perguntou ao Chef, César Troisgros, se o deixaria fazer um filme sobre os seus restaurantes. A resposta chegou meia hora mais tarde: “Porque não?”
Curiosamente, é o próprio Wiseman que, num breve texto de apresentação escrito para Veneza, nos chama a atenção para o cerne criativo do seu trabalho. É certo que fazer um filme sobre um restaurante com 3 estrelas Michelin sempre foi uma das suas “fantasias”. Mas há mais: “Pensei também que um filme sobre um restaurante podia ter relações com a minha série de filmes sobre instituições.”
Lembremos também, por isso mesmo, exemplos modelares como High School (1968), Blind (1987) ou Ballet (1995), respectivamente sobre um liceu, um jardim de infância para crianças cegas e o American Ballet Theatre. Para Wiseman, o “institucional” não é uma chancela mais ou menos oficial, mas sim o sistema de regras e comportamentos de uma entidade pensada e organizada para cumprir tarefas muito específicas. Nesta perspectiva, os restaurantes de Menus Plaisirs existem muito para lá da sedução turística que os possa envolver.
O cinema de Wiseman é mesmo o rigoroso contrário de qualquer banalidade turística. Para ele, não se trata, de modo algum, de recolher imagens “decorativas” para alimentar os nossos olhares viciados nos lugares-comuns do Instagram, mas sim de observar, testemunhar e compreender as infinitas subtilezas de um colectivo humano. Neste caso, a chave de tudo isso estará, talvez, na palavra “plaisirs” que o título integra — para lá do prazer dos cozinheiros e, sem dúvida, dos clientes, somos também convocados pelo prazer de um cineasta que sabe, como poucos, cozinhar as imagens e os sons que regista. Construir um olhar livre é o seu método.

domingo, outubro 29, 2023

Assassinos da Lua das Flores
— a cor do dinheiro

Lily Gladstone em Assassinos da Lua das Flores:
que cor é esta?

Martin Scorsese volta a enfrentar as convulsões históricas do seu país, perguntando: quem está a narrar a própria história? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 outubro).

No novo filme de Martin Scorsese, Assassinos da Lua das Flores, na primeira conversa entre Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), o veterano da Primeira Guerra Mundial que regressa ao Oklahoma, e Mollie (Lily Gladstone), uma mulher da tribo dos índios Osage, ele contempla demoradamente o rosto dela: “Tens uma linda cor de pele.” E pergunta-lhe: “Que cor é essa?”. Ao que Mollie responde: “É a minha cor.”
Na sua singeleza, as palavras de Mollie expõem a banalidade do racismo em que Ernest se move, em particular através da influência do tio William Hale (Robert De Niro). Podemos até supor que a crueldade mansa da sua pergunta se duplica pelo facto insólito, literalmente irracional, de permanecer fora da sua consciência moral. Talvez Assassinos da Lua das Flores se possa mesmo resumir como a história do esvaziamento moral do próprio Ernest, a ponto de encarar como natural o modo como explicita o seu fascínio por Mollie — qualquer ideologia discriminatória procura alguma forma de “naturalização”.
Ao dizer apenas “é a minha cor”, Mollie atrai um genuíno paradoxo. Como? Esvaziando a própria possibilidade de identificar essa cor através de um nome de… cor. Naquela circunstância, se o fizesse, se desse um nome à sua cor, mesmo de uma forma a que poderíamos chamar realista, estaria a inscrever-se num território humano totalmente encerrado na sua codificação “colorida”. Dito de outro modo: aceitaria definir-se como uma unidade intermutável, sem peso específico, diluída num grupo definido a partir da cor da pele.
A riqueza da textura dramática de Assassinos da Lua das Flores, a par da complexidade das suas implicações simbólicas, aconselha a que não tratemos o filme como banal “ilustração” de uma colecção de “temas” que justificariam a sua própria existência. Scorsese não é, nem de longe nem de perto, um oportunista a explorar a moda pueril da história politicamente correcta. Nada a ver, portanto, com essas narrativas que reduzem o passado a um jogo maniqueísta entre “inocentes”, mais ou menos incautos, e “culpados” sempre iguais entre si — tão estupidamente iguais que são tratados como clones que nasceram para alimentar a boa consciência dos espectadores (incluindo os críticos, se for caso disso).


Na edição de outubro da revista Sight and Sound, numa entrevista com Philip Horne, Scorsese chama a atenção para as tensões que definem a personagem de DiCaprio: “Ele é fraco, e é perigoso, mas há amor por ali. E isso é perturbante, mas ao mesmo tempo humano. Somos assim.” Digamos que o episódio citado, algo como o capítulo zero da história do casamento de Ernest e Mollie, envolve uma pergunta cuja perturbação existencial atravessa muitos momentos da história cultural da América — pontuando, ao longo das décadas, de John Ford a Steven Spielberg, o grande cinema de Hollywood. A saber: que nome posso dar à tua diferença?
São muitos os exemplos da cultura popular americana em que podemos encontrar ecos de tal problemática, incluindo a derivação poética contida na canção Black or White, de Michael Jackson, do álbum Dangerous (1991). “Não importa se és branco ou preto”, diz-se na canção, abrindo para uma lógica em que, obviamente, não se trata de escamotear as formas de racismo que encontramos na história dos EUA (bem pelo contrário), mas de desafiar os limites das linguagens com que essa mesma história se encontra coligida — e, mais do que isso, é transmitida.



[Real.: John Landis]

Há outra maneira de dizer isto, tanto mais significativa quanto se demarca de qualquer discurso piedoso, não poucas vezes procurando legitimar os mais variados disparates artísticos. Assim, não se trata de multiplicar as formas de vitimização, mas de recusar a menorização do “outro” que é alvo de violência física ou opressão paternalista. Scorsese cita mesmo uma afirmação que escutou durante a sua longa convivência com o povo Osage: “Não queremos ser retratados como vítimas.”
A saga dos Osage, convém não esquecer, é uma tragédia gerada pela ganância: as mortes suspeitas dos seus elementos (que são, na verdade, assassínios friamente premeditados) começam a acontecer quando as suas terras se revelam ricas em petróleo. O que Scorsese encena está longe de se reduzir a um mero inventário de factos e “reconstituições”. Por amor da América, aquilo que o seu filme pergunta envolve a própria cristalização da história em memória colectiva: quem protagoniza essa história e, mais do que isso, quem está a narrá-la?
Até porque cedo compreendemos o factor primordial das convulsões históricas evocadas, quando William Hale diz ao sobrinho que “o dinheiro circula livremente por aqui.” Sendo um factor de riqueza, a sua circulação é cúmplice de uma tragédia humana.



quinta-feira, outubro 26, 2023

Não Sou Nada,
ou viver, sentir e pensar

Pessoa interpretado por Miguel Borges:
viver num mundo de imagens

No labirinto herdado de Fernando Pessoa, Não Sou Nada é um filme que refaz a herança do poeta, ao mesmo tempo que questiona a relação do cinema com o seu espectador: um programa aliciante e envolvente — ste texto foi publicado no Diário de Notícias (25 outubro).

A palavra “aventura” joga bem com um filme como Não Sou Nada. Sobretudo se a aplicarmos para lá dos clichés preguiçosos que celebram os efeitos especiais que vão acompanhando os super-heróis. Aliás, o impulso aventuroso nem sequer se esgota na saga de Fernando Pessoa (1888-1935), escrito e imaginado, perdido e achado, através dos seus heterónimos e da presença paradoxal, porque tendencialmente abstracta, da sua Ofélia. Dito de outro modo: homenagear o poeta não é o mesmo que retomar a retórica dos discursos oficiais.
Porventura a maior aventura é, aqui, a do próprio cinema. A realização de Edgar Pêra arrisca mesmo tratar Pessoa como uma antologia de personagens (os heterónimos, obviamente) que convivem num “escritório” que parece confirmar todas as rotinas de um espaço desse género, ao mesmo tempo que escapa a qualquer mapa racional de comportamentos. Elementos como a fotografia, a cenografia e o guarda-roupa — da responsabilidade de Jorge Quintela, Ricardo Preto e Susana Abreu, respectivamente — servem, não para “reconstituir” um mundo, antes para fabricar um mundo alternativo que, paradoxalmente ou não, nos leva a questionar os nossos modos de viver, sentir e pensar a herança de Pessoa. Ou apenas os nossos modos de viver, sentir e pensar.
Se quisermos prolongar a metáfora para lá do filme (coisa que, aliás, ele nos pede com a intransigência própria do impulso poético) diremos que, nestes dias atribulados que vivemos, o cinema passou a existir como uma entidade “pessoana”. À letra: como se o cinema “não fosse nada”.
Assim, os filmes podem aparecer-nos em todo o lado, das salas tradicionais às plataformas de streaming, passando pela obscenidade estética dos telemóveis, como se já não servissem para confirmar que somos humanos, bastando sermos consumidores em série (e de séries). Sintoma esclarecedor deste estado das coisas: os novos profissionais do marketing parecem desconhecer o amor dos filmes, já que a maior parte deles põem um ar muito sério, ligeiramente angustiado, e em vez de “filmes” dizem “produtos”... E ao dizê-lo parecem esperar o nosso acomodado assentimento.
Tudo isto passa, naturalmente, pelos actores, mesmo se aquilo que está em jogo é a discussão das formas consagradas de naturalidade e naturalismo. Citando apenas os exemplos mais imediatos, repare-se como Miguel Borges, Albano Jerónimo e Victoria Guerra — respectivamente como Pessoa, Álvaro de Campos e Ofélia — circulam pelo ecrã como seres de esplendorosa ambiguidade: são encarnações vivas das palavras que foram escritas, ao mesmo tempo que circulam como fantasmas de uma narrativa que o poeta lançou e o cineasta transfigurou. Nessa ambiguidade estará, talvez, um dos mais belos desafios de Não Sou Nada e do melhor cinema contemporâneo, vanguardista ou nostálgico: repensar o trabalho dos actores, repensando o conceito de personagem. Sem esquecer que uma vanguarda que se preze não dispensa o culto de alguma nostalgia.

domingo, outubro 22, 2023

Catherine Deneuve, 80 anos

Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, em 1964. Belle de Jour, 1967. A Sereia do Mississipi, a fechar os anos 60 por entre os estilhaços de uma certa utopia romântica, decomposta ao longo dessa década de todos os filmes.
São apenas três títulos incontornáveis da filmografia de Catherine Deneuve, mas os suficientes para a inscrever na história e na mitologia do cinema — cinema francês na origem, cinema universal na sua identidade e no seu apelo simbólico. Sem esquecer que são também filmes de três autores — Jacques Demy, Luis Buñuel e François Truffaut, respectivamente — decisivos na afirmação de uma actriz que, serenamente, sempre soube desafiar os limites da sua própria imagem.
De seu nome Catherine Fabienne Dorléac (no campo artístico, adoptou o apelido de solteira da mãe), Deneuve nasceu em Paris no dia 22 de outubro de 1943 — celebra hoje o seu 80º aniversário.

>>> Hotel des Amériques/O Segredo do Amor (1981), de André Téchiné — com Patrick Dewaere.

 
>>> Nunca estreado em Portugal, Drôle d'endroit pour une rencontre (1988), de François Dupeyron, é um dos títulos mais surpreendentes da trajectória de Catherine Deneuve — eis a cena do seu encontro com Gérard Depardieu.


>>> Conversa televisiva com Pierre Lescure (Beau Geste, emissão de 24 set. 2023).
 

sábado, outubro 21, 2023

"História do dia" [citação]

>>> (...) segundo o sociólogo francês Christian Salmon, foi o ex-jornalista David Gergen, na qualidade de consultor de Ronald Reagan, que criou a noção crucial de "história do dia", a ser apresentada já pronta aos media para ser difundida, comentada, disseminada. Isso continua a existir através de formas cada vez mais virulentas, já que os decisores consideram que controlar a narrativa dos media é tudo aquilo que significa governar.

PETER BROOKS
Seduced by Story - The use and abuse of narrative

Gaga + Stones

Mais um encontro de Lady Gaga com os Rolling Stones — não exactamente em Hackney Diamonds, mas ao vivo... sob o signo do novo álbum. Foi no Racket NYC: a banda deu um concerto surpresa, interpretando sete canções e Lady Gaga estava lá — para quem não esteve lá, é possível, apesar de tudo, saborear estes 50 segundos.

sexta-feira, outubro 20, 2023

Rolling Stones na Antena 1 [hoje, dia 20]

Por aqui já escutámos as duas primeiras canções — Angry e Sweet Sounds of Heaven — do novo álbum dos Rolling Stones, Hackney Diamonds, hoje posto à venda.
Também hoje, no nosso programa da Antena 1, "Duas ou três coisas" [disponível na RTP Play], damos a ouvir mais cinco temas de uma obra que consegue a proeza de revisitar todas as raízes da banda, de modo vibrante, colado às convulsões do presente, sem nunca ceder a qualquer piedade banalmente nostálgica. Para além desse quinteto, aqui fica mais um título: Bite My Head Off, com Paul McCartney no baixo.

O tempo dos amadores
— ou Chaplin e o futebol

Caldas da Rainha: os Pavilhões do Parque

A defesa do património é uma ilusão: a cultura dominante na sociedade portuguesa é o futebol — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 outubro), com o título 'O tempo dos amadores'.

Ao ler no DN de ontem (7 out.) o excelente artigo de Jorge Mangorrinha sobre “Os Pavilhões do Parque das Caldas da Rainha” não pude deixar de pensar na sala de cinema que existiu ao lado desses pavilhões, “prolongando” a sua iconografia: o Salão Ibéria. Assim mesmo, com a saborosa palavra ancestral, “Salão”, a remeter-nos para um tempo em que ir ao cinema era um genuíno ritual social, não uma correria histérica à mais recente produção da Marvel que, de um dia para o outro, ocupa não uma meia dúzia de salas, mas 20 por cento do mercado cinematográfico.
Através de um amargo simbolismo, o artigo recorda o longo processo de degradação dos Pavilhões: “Quando um património arde, ardemos todos nós”. Isto porque, há dias, essa degradação foi “confirmada” pelo fogo que, segundo a Gazeta das Caldas (28 set.), consumiu “o último piso do primeiro pavilhão, mas rápida acção evitou o pior”.
Recordo-me do último filme que vi no Ibéria, em meados da década de 1970, na companhia dos meus pais: Luzes da Ribalta [Limelight], a desencantada obra-prima de Charlie Chaplin com data de 1952, na altura em reposição em cópia nova. Ficámos no balcão, esse mesmo balcão que ruiu numa noite de chuva — foi a 9 de outubro de 1978. O Ibéria nunca mais funcionou.
Sabe-se que existe um projecto para a reconversão dos edifícios: “Os Pavilhões, que são património do Estado cedido à autarquia, foram, em 2017, concessionados à Visabeira para construir um hotel 5 estrelas, num investimento de 16 milhões de euros”, lê-se na mesma notícia da Gazeta das Caldas. O projecto deveria estar concluído em finais de 2023, mas as obras só terão começado há pouco tempo (Jornal de Leiria, 7 agosto). Há uma dedução simples a extrair da secura destes factos: apesar dos inequívocos sinais de degradação dos Pavilhões, durante quase meio século nada aconteceu no sentido de evitar a actual situação.
Não pretendo distribuir “culpas” ou “fulanizar” os problemas em causa — até porque estou longe de conhecer as nuances de tudo aquilo que aconteceu (e, sobretudo, do que não aconteceu) ao longo de 50 anos. Por isso mesmo, espero que se compreenda também que a tristeza com que recordo o Ibéria não pode ser resumida através da frase feita segundo a qual tudo isto reflecte um grande “desinvestimento” na cultura.
'Restos de Colecção'
Nada disso. Embora sabendo que o meu ponto de vista é radicalmente minoritário, para mim a palavra “cultura” não se refere a uma entidade única e unívoca. Tentando ser tão claro quanto os limites da minha linguagem mo permitem, entendo que a questão não decorre de qualquer tipo de unicidade: não há cultura, mas culturas — plural. E na sociedade portuguesa a cultura dominante é o futebol.
De tal modo que os “Ibérias” deste país vão desaparecendo — veja-se o horror em que transformaram o Cine-Teatro Eden, em pleno centro de Lisboa, ou o escândalo da destruição do velho Monumental, também na capital do país. Ao mesmo tempo, agora, perante a placidez de todas as forças políticas, de todos os quadrantes ideológicos, somos organizadores de um Mundial de Futebol.
Não é, de facto, uma questão de “culpas”. Antes fosse… Nem se trata de alimentar uma gritaria pueril entre os que “gostam” de futebol (sou um deles) e os que “não gostam”. É, isso sim, a “futebolização” de uma sociedade ferida por um esvaziamento de valores que faz com que a indiferença pela história e pelo património seja mais poderosa do que as energias que a arte pode transportar. Veja-se um outro exemplo que também conheço directamente: as ruínas do Teatro Rosa Damasceno de Santarém, sala indissociável das primeiras edições do Festival de Cinema da cidade (também há cerca de 50 anos).
A saga do Rosa Damasceno tem, pelo menos, duas décadas. Há cerca de um ano, o jornal O Mirante (6 nov. 2022) resumia a situação num artigo com um título esclarecedor: “Antigo Teatro Rosa Damasceno é a vergonha do centro histórico de Santarém”. As suas ruínas continuam a servir de cartão de visita para turistas ou locais que passam a caminho das Portas do Sol… Entretanto, por estes dias, também em Santarém, a obra que avança com mais celeridade está em pleno centro da cidade, no Jardim da Liberdade. Que obra é essa? Pois bem, uma Casa do Benfica!
O leitor que teve a paciência de me ler até aqui poderá, com toda a legitimidade, discordar dos meus pontos de vista, mas espero ser poupado à insinuação de que há uma qualquer componente clubista na anterior observação. A questão é outra. E é, sobretudo, bem diferente. Ninguém discute o valor desportivo, muito menos o lugar social, dos clubes de futebol. Fosse qual fosse o clube a ocupar um espaço central no tecido urbano de Santarém (ou em qualquer outra cidade), o que fica claro é o facto de, socialmente, o futebol funcionar como uma prioridade autárquica — e, nessa medida, política — que não é partilhada por nenhum outro domínio cultural.
As lágrimas do velho Calvero, interpretado por Chaplin em Luzes da Ribalta [trailer], arrastam um perturbante simbolismo: ele sabe que os palcos em que foi rei já não o acolhem, a não ser através de um cinismo paternalista. Daí que, por ágil paradoxo, as suas palavras tristes envolvam uma alegria pedagógica que muitas formas de poder tendem a desconhecer: “Somos todos amadores. Não vivemos tempo suficiente para sermos outra coisa.”

quinta-feira, outubro 19, 2023

Rolling Stones na FNAC
(à espera de Madonna...)

A nossa próxima sessão na FNAC já tem data e tema:

MADONNA: OS CONCERTOS
FNAC Chiado / Lisboa
18 novembro, 17h00

Entretanto, na última sessão (15 out.), o novíssimo álbum dos Rolling Stones, Hackney Diamonds, foi pretexto para uma revisitação de alguns momentos emblemáticos da banda — eis duas dessas memórias.

>>> Waiting on a Friend (1981), de Michael Lindsay-Hogg.


>>> As Tears Go By, do filme Shine a Light (2008), de Martin Scorsese.


* * * * *
A sessão terminou com a evocação de A Little Night Music, o musical de Stephen Sondheim que está a fazer 50 anos — escutámos Barbra Streisand a interpretar a sua canção mais célebre, Send in the Clowns.

quarta-feira, outubro 18, 2023

Encontro na Gulbenkian:
Ligeti + Nancarrow + Ligeti

Quatuor Béla

Quatuor Béla
Julien Dieudegard, Violino
Frédéric Aurier, Violino
Paul-Julian Quillier, Viola
Luc Dedreuil, Violoncelo

György Ligeti
Quarteto para Cordas n.º 1, Metamorfoses Noturnas

Conlon Nancarrow
Quarteto para Cordas n.º 1

György Ligeti
Quarteto para Cordas n.º 2
_____

Fundação Calouste Gulbenkian
14 out 2023 - 19:00

Como escreveu Bernardo Mariano no programa do concerto, o americano Colon Nancarrow (1912-1997), além de ser uma "figura absolutamente singular na música do século XX", ficou a dever a sua notoriedade (tardia, é verdade) ao facto de o húngaro György Ligeti (1923-2006) o ter descoberto em 1980, empenhado-se pessoalmente em "promover o seu nome e a sua obra na Europa e nos EUA."
Verdadeiro ovni na história musical do século passado (para mim, pelo menos), Nancarrow surgiu através de uma superior performance dos franceses do Quatuor Béla, por assim dizer enquadrado por duas peças de Ligeti (de quem se assinala este ano o centenário do nascimento). Assim, entre as "metamorfoses" e a "micropolifonia" das duas composições de Ligeti, o quarteto de Nancarrow — "polifonia do tempo", lembra também Bernardo Mariano — pareceu desenhar uma ponte formal e, de alguma maneira, afectiva em que, em última instância, se reavaliam as possibilidades de coexistência das sensibilidades, memórias e técnicas das diferentes cordas.
Daí a estranheza, propriamente poética, do evento. Assim, é verdade que as obras interpretadas provêm de um tempo situado entre 1945 (Nancarrow) e 1953-1968 (Ligeti), mas não é menos verdade que a sua singular energia parece enunciar a possibilidade de um futuro que continua por cumprir — como se a música fosse, ou pudesse ser, também um desmentido prático de qualquer calendário cultural.

>>> Metamorfoses noturnas, de Ligeti — álbum do Quatuor Béla, de 2013.


>>> Sobre a participação do Quatuor Béla no Festival de Aix-en-Provence de 2015.
 

Carla Bley (1936 - 2023)

[ Downbeat ]

Celebremos a depuração formal e a vibração emocional de Carla Bley — símbolo nuclear do freejazz dos anos 60, o seu legado de pianista, compositora e líder de várias formações transcende qualquer enquadramento formal, afirmando uma liberdade criativa que, em boa verdade, nunca deixa de nos transmitir a alegria inclassificável do instinto.
Atingida já há algum tempo por um cancro no cérebro, Carla Bley faleceu no dia 17 de outubro, na sua casa em Willow, Nova Iorque — contava 87 anos.

>>>
Lawns, do álbum Sextet (1987).


>>> Tema-título do álbum Life Goes On (2020), com Andy Sheppard (saxofone) e Steve Swallow (baixo).


>>> Em 2015, quando foi distinguida com um Jazz Master Award pelo National Endowment for the Arts.


>>> Obituário na NPR.
>>> Conversa com Steve Swallow (ECM, 2019).
>>> Página de Carla Bley na ECM.

terça-feira, outubro 17, 2023

Scorsese na CBS

Eis uma boa introdução a Assassinos da Lua das Flores [estreia: 19 outubro], incluindo conversas com Martin Scorsese, vários elementos do elenco e David Grann, autor do livro em que o filme se baseia — um pouco menos de 10 minutos da última edição do programa CBS Sunday Morning.

domingo, outubro 15, 2023

Piper Laurie (1932 - 2023)

[ jjlr_lopes ]

Foi uma daquelas eternas secundárias... Senhora de requintada presença e subtil versatilidade, Piper Laurie (nascida Rosetta Jacobs) ganhou evidência no interior de Hollywood, ironicamente, com uma nomeação para o Oscar de melhor actriz: aconteceu graças à sua composição em The Hustler/A Vida É um Jogo (1961), do grande e tão esquecido Robert Rossen, contracenando com Paul Newman [foto]. Seria nomeada mais duas vezes, agora como secundária, graças a Carrie (1976), de Brian de Palma, e Flhos de um Deus Menor (1986), de Randa Haines.
Para muitos espectadores, terá sido apenas a Catherine Martell de Twin Peaks (1989-1991), o que não deixa de envolver um amargo simbolismo: como muitos outros talentos da sua geração, Piper Laurie foi sendo esquecida pelos grandes estúdios, cumprindo, a partir de meados dos anos 80, uma carreira sobretudo televisiva — que, valha a verdade, começou ainda na década de 60.
Nascida em Detroit, Piper Laurie faleceu no dia 14 de outubro, em Los Angeles — contava 91 anos.

>>> Com Paul Newman, A Vida É um Jogo.


>>> Com Sissy Spacek, Carrie.


>>> Recebendo um Globo de Ouro de actriz secundária por Twin Peaks (19 jan. 1991).


>>> Obituário no Variety.
>>> Entrevista na Television Academy.

SOUND+VISION Magazine
* Rolling Stones [HOJE, dia 15]

Woody Allen
— escutando a música das palavras

Niels Schneider e Lou de Laâge:
Paris visto por Woody Allen

Woody Allen muda de cenário, mas prossegue a metódica observação das relações homens/mulheres: Golpe de Sorte é uma história de Paris, falada em francês, com a contribuição essencial de Vittorio Storaro na direcção fotográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 outubro).

O novíssimo filme escrito e dirigido por Woody Allen, Golpe de Sorte, tem sido apresentado através de referências e coordenadas da sua própria obra. O que, bem entendido, faz todo o sentido: as memórias da teia melodramática de Match Point (2005) ecoam, agora, nas atribulações do casal Fanny/Jean (Lou de Laâge/Melvil Poupaud) e no misto de sedução e traição que Alain (Niels Schneider), antigo colega de liceu de Fanny, vai introduzir na felicidade liofilizada do seu casamento.
Estamos, então, perante uma variante cinéfila do tradicional “triângulo amoroso”? A resposta é também afirmativa, embora carecendo de uma precisão essencial. Assim, há muito cinema contemporâneo, dos mais variados géneros, em que a consciência das heranças dos modelos clássicos gera “citações” mais ou menos maneiristas, no limite pouco disponíveis para a vida das próprias personagens. Não é esse o caminho de Woody Allen: ele assume-se como herdeiro de um património (melodramático, justamente) que o conduz a permanentes variações sobre as “coisas”, ora transparentes, ora obscuras, de que são feitas as relações entre homens e mulheres.
Woody Allen tem dito que o facto de ter rodado Golpe de Sorte em Paris (trata-se mesmo de uma produção sem participação americana) não envolve qualquer mudança significativa no seu trabalho. Em boa verdade, os estúdios de Hollywood foram deixando de o financiar, mas, para ele, Paris e Nova Iorque são mesmo cidades “muito parecidas”. Dito de outro modo: as matrizes narrativas não mudaram.
De tal modo que, com desarmante naturalidade (nada a ver com naturalismo), Golpe de Sorte consegue uma proeza tão cristalina que quase nos esquecemos dela. A saber: a musicalidade das palavras escritas por Woody Allen está presente em todo o seu esplendor, mesmo com diálogos totalmente em francês.
À maneira de muitos grandes artistas (não apenas do cinema), o seu labor segue uma lógica obsessiva em que, também com inevitáveis sugestões musicais, somos convocados para uma festiva exposição de temas e variações. E se, como bem sabemos, tal lógica não é estranha a ficções de dilaceradas emoções — pelo menos a partir do prodigioso e muito esquecido Interiors/Intimidade (1978) —, a sua evolução nunca menosprezou as nuances da comédia dramática, agora de novo na sua máxima depuração nesta história de desejos malignos, destinos fatais e acasos quase divinos.
Há em tudo isto uma assumida filiação na herança de Ingmar Bergman — lembremos esse filme “bergmaniano” por excelência, central na evolução da filmografia de Woody Allen, que é Maridos e Mulheres (1992). Com um factor que perverte os próprios fundamentos de tal herança: mesmo nas histórias mais urbanas de Woody Allen, deparamos com a nostalgia de uma pureza natural que, através das árvores e dos jardins, se imiscui nos automatismos da cidade. Neste caso, através da admirável direcção fotográfica de Vittorio Storaro, um trabalho de luz e cor que, se o destino fosse fiável, seria um Oscar antecipado.

quarta-feira, outubro 11, 2023

Berlioz na Gulbenkian, ao fim da tarde

John Nelson

HECTOR BERLIOZ
Romeu e Julieta, op. 17

Coro Gulbenkian
Orquestra Gulbenkian
John Nelson, Maestro
Beth Taylor, Meio-Soprano
Julien Henric, Tenor
Vincent Le Texier, Barítono

Fundação Calouste Gulbenkian
06 out 2023 - 19:00

No final da belíssima "Scène d'amour" do Romeu e Julieta, de Hector Berlioz, o próprio maestro, John Nelson, achou por bem quebrar o protocolo e, com um gesto simples mas eloquente, solicitar as palmas dos espectadores para a Orquestra Gulbenkian. Não era caso para menos: para lá da competência dos solistas, a excelência da Orquestra e do Coro Gulbenkian permitiram uma (re)descoberta de uma obra a que apetece chamar "híbrida", de tal modo a sua revisitação de Shakespeare acontece através de um desvio espiritual que, em última instância, suspende o assombramento trágico para convocar o público para uma redenção inequivocamente religiosa.
Nas notas do programa, José Bruto da Costa chamava a atenção para essa pluralidade interior, citando o próprio Berlioz: "Que não haja dúvida ou erro quanto ao género desta obra. Embora vozes sejam utilizadas amiúde, não se trata de uma ópera em versão concerto ou de uma cantata, mas sim de uma sinfonia coral”.
Daí a perene sedução de uma composição cuja primeira interpretação pública ocorreu em Paris, no dia 24 de novembro de 1839 — o mesmo ano da Ballade nº 2, de Chopin. Há nela essa dialéctica fascinante que nasce de uma exposição metódica, "narrativa", quase neutra, que se transfigura em acontecimento celebratório. Com a noite a cair na janela de fundo do Grande Auditório.

JL

>>> "Scène d'amour" (Romeu e Julieta, Berlioz), também sob a direcção de John Nelson, também com o Coro Gulbenkian, num registo da Orquestra Filarmónica de Estrasburgo (Erato, 2023).

segunda-feira, outubro 09, 2023

Patti Smith: "lágrimas
pelo nosso mundo conturbado"

John Lennon nasceu no dia 9 de outubro de 1940 — faria hoje 83 anos. Patti Smith evoca a data com "lágrimas pelo nosso mundo conturbado", recordando a canção Peaceable Kingdom, do seu álbum Trampin' (2004) — o registo é do Festival de Montreux de 2005 (3 julho).

A guerra em Israel
[três fotos publicadas pela NPR]

Sáb, 7 out.: oficiais da polícia evacuam uma mulher e uma criança
de um local atingido por um rocket disparado da Faixa de Gaza,
em Ashkelon, no sul de Israel
Tsafrir Abayov/AP
Seg., 9 out.: Uma criança palestiniana ferida
depois dos ataques aéreos israelitas
ao campo de refugiados al-Shati, na Faixa de Gaza
Ali Jadallah/Anadolu Agency/Getty Images
Dom., 8 out.: Um míssil israelita lançado do sistema de defesa Iron Dome
tenta interceptar um rocket disparado da Faixa de Gaza,
sobre a cidade de Netivot, no sul de Israel
Gil Cohen-Magen/AFP via Getty Images

Número de mortos ultrapassa 1100

23 out. 2023, El Pais

Mais de 1000 mortos em Israel

9 out. 2023, The Guardian

Israel, 7 outubro 2023

9 out. 2023 / Libération

sábado, outubro 07, 2023

Malick, Scorsese, Pollack
— era uma vez 1973...

Sissy Spacek em Badlands: uma imagem com 50 anos

Meio século depois, há filmes que nos ensinam a rever as aventuras do que somos ou pensámos ser — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 outubro).

Na edição de setembro, Le Monde Diplomatique recua meio século para reorganizar algumas memórias políticas. “1973, o ano dos choques” é o título de um dossier que, além de lembrar o facto objectivo, agora contaminado por uma incómoda ironia, de o Reino Unido ter entrado na CEE no dia 1 de janeiro daquele ano, evoca dois acontecimentos fulcrais: o golpe de Augusto Pinochet no Chile (leia-se o belo texto de Régis Debray, intitulado “Lições”, sobre Salvador Allende) e a Guerra do Yom Kippur, travada entre Israel e os exércitos do Egipto e da Síria.
Curiosamente, ambos os acontecimentos estão na actualidade cinematográfica, graças ao lançamento de Golda, de Guy Nattiv, e O Conde, de Pablo Larraín (este apenas disponível na Netflix). São filmes que, ao retratarem figuras proeminentes em tais acontecimentos — Golda Meir, chefe do governo israelita, e o próprio Pinochet —, resistem a modelos correntes de biografia. O primeiro porque, de acordo com as intenções expressas pelo próprio Nattiv, tenta libertar Golda Meir de uma certa esquematização moral no interior de Israel que, segundo o seu ponto de vista, simplifica as convulsões políticas e militares do momento; o segundo conseguindo a proeza, tão desconcertante quanto fascinante, de representar Pinochet como uma vampiro de longa vida, desconsolado com o facto de os chilenos não mostrarem especial admiração pela sua ditadura.
A memória conduziu-me a uma sugestiva confluência de referências cinéfilas. Assim, foi também há 50 anos, no mês de outubro de 1973, que foram lançados três títulos emblemáticos do cinema dos EUA, bem diversos nos temas e linguagens, todos com chancela de grandes estúdios de Hollywood (dois da Warner, o terceiro da Columbia): Mean Streets, de Martin Scorsese, sobre os circuitos do crime no bairro de Little Italy, em Nova Iorque, primeira colaboração de Scorsese com Robert De Niro; Badlands, estreia na realização de Terrence Malick, uma reinvenção da estética “noir” centrada na trajectória violenta de um par interpretado por Martin Sheen e Sissy Spacek; e The Way We Were, de Sydney Pollack, melodrama em torno de um par — Barbra Streisand/Robert Redford — que vive uma história de amor em ambiente universitário, tendo por pano de fundo as perseguições da época “maccartista” e, em particular, a criação na década de 1950 de uma “lista negra” de profissionais que foram afastados de Hollywood.
Estreados em Portugal entre 1973 e 1979, os três filmes ajudam a definir um imaginário “made in USA” em que, na altura, todos nos reconhecemos… Enfim, evitemos o panegírico mediático, prática comum dos dias acelerados que agora vamos vivendo: direi antes em que eu me reconheci, ao mesmo tempo que algumas das suas componentes se revelavam transversais a várias gerações de espectadores. Que estava em jogo, então? Algo que, por certo, na altura eu não formulei (nem saberia formular) e que agora me surge através de uma interrogação que, sendo filosófica, não deixa de reflectir, em primeiríssimo lugar, uma demanda de natureza afectiva. A saber: que significa pertencer a um lugar ou a uma família?
Com o passar das décadas, os filmes vão evoluindo no interior daquilo que, com eles e através deles, sentimos e pensamos. Mean Streets, sobretudo através das relações das personagens de De Niro e Harvey Keitel (que, em 1967, já protagonizara a primeira longa-metragem de Scorsese, Who’s That Knocking at My Door), encena uma teia de ligações em que pressentimos as leis de uma cumplicidade fraterna, e também as suas perversas contradições. Badlands tem qualquer coisa de um “western” clássico virado do avesso, quanto mais não seja porque a personagem de Sissy Spacek, com 15 anos de idade (a actriz tinha 22), é um testemunho exemplar da reconfiguração do feminino no cinema de Hollywood dos anos 1960/70 — só mesmo o militantismo mais ignorante acredita que antes do #MeToo não havia mundo. Enfim, The Way We Were foi muito sub-avaliado (inclusive por mim) porque Pollack, cineasta de uma subtileza emocional nem sempre reconhecida, sabia como poucos aplicar as matrizes melodramáticas para expor as clivagens políticas e ideológicas do tecido social americano.
Entre nós, os três filmes partilham uma espécie de maldição comercial que, como bem sabemos, tem uma história recheada de exemplos mais ou menos delirantes. Assim, foram lançados em Portugal com títulos especialmente “criativos”: Mean Streets estreou-se como Os Cavaleiros do Asfalto; Badlands foi Os Noivos Sangrentos; The Way We Were bate os recordes de imaginação e surgiu apelidado de O Nosso Amor de Ontem. Confesso que, depois de todas estas décadas, são títulos em que reconheço uma paradoxal alegria cinéfila — será uma suave lição pedagógica ou talvez o sinal de uma tímida falência nostálgica.