sexta-feira, outubro 20, 2023

O tempo dos amadores
— ou Chaplin e o futebol

Caldas da Rainha: os Pavilhões do Parque

A defesa do património é uma ilusão: a cultura dominante na sociedade portuguesa é o futebol — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 outubro), com o título 'O tempo dos amadores'.

Ao ler no DN de ontem (7 out.) o excelente artigo de Jorge Mangorrinha sobre “Os Pavilhões do Parque das Caldas da Rainha” não pude deixar de pensar na sala de cinema que existiu ao lado desses pavilhões, “prolongando” a sua iconografia: o Salão Ibéria. Assim mesmo, com a saborosa palavra ancestral, “Salão”, a remeter-nos para um tempo em que ir ao cinema era um genuíno ritual social, não uma correria histérica à mais recente produção da Marvel que, de um dia para o outro, ocupa não uma meia dúzia de salas, mas 20 por cento do mercado cinematográfico.
Através de um amargo simbolismo, o artigo recorda o longo processo de degradação dos Pavilhões: “Quando um património arde, ardemos todos nós”. Isto porque, há dias, essa degradação foi “confirmada” pelo fogo que, segundo a Gazeta das Caldas (28 set.), consumiu “o último piso do primeiro pavilhão, mas rápida acção evitou o pior”.
Recordo-me do último filme que vi no Ibéria, em meados da década de 1970, na companhia dos meus pais: Luzes da Ribalta [Limelight], a desencantada obra-prima de Charlie Chaplin com data de 1952, na altura em reposição em cópia nova. Ficámos no balcão, esse mesmo balcão que ruiu numa noite de chuva — foi a 9 de outubro de 1978. O Ibéria nunca mais funcionou.
Sabe-se que existe um projecto para a reconversão dos edifícios: “Os Pavilhões, que são património do Estado cedido à autarquia, foram, em 2017, concessionados à Visabeira para construir um hotel 5 estrelas, num investimento de 16 milhões de euros”, lê-se na mesma notícia da Gazeta das Caldas. O projecto deveria estar concluído em finais de 2023, mas as obras só terão começado há pouco tempo (Jornal de Leiria, 7 agosto). Há uma dedução simples a extrair da secura destes factos: apesar dos inequívocos sinais de degradação dos Pavilhões, durante quase meio século nada aconteceu no sentido de evitar a actual situação.
Não pretendo distribuir “culpas” ou “fulanizar” os problemas em causa — até porque estou longe de conhecer as nuances de tudo aquilo que aconteceu (e, sobretudo, do que não aconteceu) ao longo de 50 anos. Por isso mesmo, espero que se compreenda também que a tristeza com que recordo o Ibéria não pode ser resumida através da frase feita segundo a qual tudo isto reflecte um grande “desinvestimento” na cultura.
'Restos de Colecção'
Nada disso. Embora sabendo que o meu ponto de vista é radicalmente minoritário, para mim a palavra “cultura” não se refere a uma entidade única e unívoca. Tentando ser tão claro quanto os limites da minha linguagem mo permitem, entendo que a questão não decorre de qualquer tipo de unicidade: não há cultura, mas culturas — plural. E na sociedade portuguesa a cultura dominante é o futebol.
De tal modo que os “Ibérias” deste país vão desaparecendo — veja-se o horror em que transformaram o Cine-Teatro Eden, em pleno centro de Lisboa, ou o escândalo da destruição do velho Monumental, também na capital do país. Ao mesmo tempo, agora, perante a placidez de todas as forças políticas, de todos os quadrantes ideológicos, somos organizadores de um Mundial de Futebol.
Não é, de facto, uma questão de “culpas”. Antes fosse… Nem se trata de alimentar uma gritaria pueril entre os que “gostam” de futebol (sou um deles) e os que “não gostam”. É, isso sim, a “futebolização” de uma sociedade ferida por um esvaziamento de valores que faz com que a indiferença pela história e pelo património seja mais poderosa do que as energias que a arte pode transportar. Veja-se um outro exemplo que também conheço directamente: as ruínas do Teatro Rosa Damasceno de Santarém, sala indissociável das primeiras edições do Festival de Cinema da cidade (também há cerca de 50 anos).
A saga do Rosa Damasceno tem, pelo menos, duas décadas. Há cerca de um ano, o jornal O Mirante (6 nov. 2022) resumia a situação num artigo com um título esclarecedor: “Antigo Teatro Rosa Damasceno é a vergonha do centro histórico de Santarém”. As suas ruínas continuam a servir de cartão de visita para turistas ou locais que passam a caminho das Portas do Sol… Entretanto, por estes dias, também em Santarém, a obra que avança com mais celeridade está em pleno centro da cidade, no Jardim da Liberdade. Que obra é essa? Pois bem, uma Casa do Benfica!
O leitor que teve a paciência de me ler até aqui poderá, com toda a legitimidade, discordar dos meus pontos de vista, mas espero ser poupado à insinuação de que há uma qualquer componente clubista na anterior observação. A questão é outra. E é, sobretudo, bem diferente. Ninguém discute o valor desportivo, muito menos o lugar social, dos clubes de futebol. Fosse qual fosse o clube a ocupar um espaço central no tecido urbano de Santarém (ou em qualquer outra cidade), o que fica claro é o facto de, socialmente, o futebol funcionar como uma prioridade autárquica — e, nessa medida, política — que não é partilhada por nenhum outro domínio cultural.
As lágrimas do velho Calvero, interpretado por Chaplin em Luzes da Ribalta [trailer], arrastam um perturbante simbolismo: ele sabe que os palcos em que foi rei já não o acolhem, a não ser através de um cinismo paternalista. Daí que, por ágil paradoxo, as suas palavras tristes envolvam uma alegria pedagógica que muitas formas de poder tendem a desconhecer: “Somos todos amadores. Não vivemos tempo suficiente para sermos outra coisa.”