sábado, outubro 07, 2023

Malick, Scorsese, Pollack
— era uma vez 1973...

Sissy Spacek em Badlands: uma imagem com 50 anos

Meio século depois, há filmes que nos ensinam a rever as aventuras do que somos ou pensámos ser — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 outubro).

Na edição de setembro, Le Monde Diplomatique recua meio século para reorganizar algumas memórias políticas. “1973, o ano dos choques” é o título de um dossier que, além de lembrar o facto objectivo, agora contaminado por uma incómoda ironia, de o Reino Unido ter entrado na CEE no dia 1 de janeiro daquele ano, evoca dois acontecimentos fulcrais: o golpe de Augusto Pinochet no Chile (leia-se o belo texto de Régis Debray, intitulado “Lições”, sobre Salvador Allende) e a Guerra do Yom Kippur, travada entre Israel e os exércitos do Egipto e da Síria.
Curiosamente, ambos os acontecimentos estão na actualidade cinematográfica, graças ao lançamento de Golda, de Guy Nattiv, e O Conde, de Pablo Larraín (este apenas disponível na Netflix). São filmes que, ao retratarem figuras proeminentes em tais acontecimentos — Golda Meir, chefe do governo israelita, e o próprio Pinochet —, resistem a modelos correntes de biografia. O primeiro porque, de acordo com as intenções expressas pelo próprio Nattiv, tenta libertar Golda Meir de uma certa esquematização moral no interior de Israel que, segundo o seu ponto de vista, simplifica as convulsões políticas e militares do momento; o segundo conseguindo a proeza, tão desconcertante quanto fascinante, de representar Pinochet como uma vampiro de longa vida, desconsolado com o facto de os chilenos não mostrarem especial admiração pela sua ditadura.
A memória conduziu-me a uma sugestiva confluência de referências cinéfilas. Assim, foi também há 50 anos, no mês de outubro de 1973, que foram lançados três títulos emblemáticos do cinema dos EUA, bem diversos nos temas e linguagens, todos com chancela de grandes estúdios de Hollywood (dois da Warner, o terceiro da Columbia): Mean Streets, de Martin Scorsese, sobre os circuitos do crime no bairro de Little Italy, em Nova Iorque, primeira colaboração de Scorsese com Robert De Niro; Badlands, estreia na realização de Terrence Malick, uma reinvenção da estética “noir” centrada na trajectória violenta de um par interpretado por Martin Sheen e Sissy Spacek; e The Way We Were, de Sydney Pollack, melodrama em torno de um par — Barbra Streisand/Robert Redford — que vive uma história de amor em ambiente universitário, tendo por pano de fundo as perseguições da época “maccartista” e, em particular, a criação na década de 1950 de uma “lista negra” de profissionais que foram afastados de Hollywood.
Estreados em Portugal entre 1973 e 1979, os três filmes ajudam a definir um imaginário “made in USA” em que, na altura, todos nos reconhecemos… Enfim, evitemos o panegírico mediático, prática comum dos dias acelerados que agora vamos vivendo: direi antes em que eu me reconheci, ao mesmo tempo que algumas das suas componentes se revelavam transversais a várias gerações de espectadores. Que estava em jogo, então? Algo que, por certo, na altura eu não formulei (nem saberia formular) e que agora me surge através de uma interrogação que, sendo filosófica, não deixa de reflectir, em primeiríssimo lugar, uma demanda de natureza afectiva. A saber: que significa pertencer a um lugar ou a uma família?
Com o passar das décadas, os filmes vão evoluindo no interior daquilo que, com eles e através deles, sentimos e pensamos. Mean Streets, sobretudo através das relações das personagens de De Niro e Harvey Keitel (que, em 1967, já protagonizara a primeira longa-metragem de Scorsese, Who’s That Knocking at My Door), encena uma teia de ligações em que pressentimos as leis de uma cumplicidade fraterna, e também as suas perversas contradições. Badlands tem qualquer coisa de um “western” clássico virado do avesso, quanto mais não seja porque a personagem de Sissy Spacek, com 15 anos de idade (a actriz tinha 22), é um testemunho exemplar da reconfiguração do feminino no cinema de Hollywood dos anos 1960/70 — só mesmo o militantismo mais ignorante acredita que antes do #MeToo não havia mundo. Enfim, The Way We Were foi muito sub-avaliado (inclusive por mim) porque Pollack, cineasta de uma subtileza emocional nem sempre reconhecida, sabia como poucos aplicar as matrizes melodramáticas para expor as clivagens políticas e ideológicas do tecido social americano.
Entre nós, os três filmes partilham uma espécie de maldição comercial que, como bem sabemos, tem uma história recheada de exemplos mais ou menos delirantes. Assim, foram lançados em Portugal com títulos especialmente “criativos”: Mean Streets estreou-se como Os Cavaleiros do Asfalto; Badlands foi Os Noivos Sangrentos; The Way We Were bate os recordes de imaginação e surgiu apelidado de O Nosso Amor de Ontem. Confesso que, depois de todas estas décadas, são títulos em que reconheço uma paradoxal alegria cinéfila — será uma suave lição pedagógica ou talvez o sinal de uma tímida falência nostálgica.