sexta-feira, julho 26, 2024

Lady Gaga, olimpicamente

Paris, 26 de julho de 2024: Mon Truc en Plumes, o clássico de Zizi Jeanmaire renasceu nos palcos dos Jogos Olímpicos através da performance de Lady Gaga.
Ou como a música e a iconografia da música popular transcendem as épocas, reinventando as suas formas, renovando a sua magia — dois videos: a versão de Gaga e, em baixo, Zizi Jeanmaire num registo da ORTF, datado de 18 de dezembro de 1968.



quarta-feira, julho 24, 2024

Do Fundo do Coração
— o cinema é uma arte utópica

Do Fundo do Coração: Teri Garr caminhando nos espaços dos estúdios Zoetrope

Estreado em 1982, Do Fundo do Coração, de Francis Ford Coppola, regressou às salas de cinema numa esplendorosa cópia restaurada. Transfigurando a herança do musical, nele se reflecte a capacidade de invenção do seu realizador também como produtor — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 julho).

Francis Ford Coppola
Assim se faz e refaz a história do cinema: de regresso às salas, One From the Heart/Do Fundo do Coração, de Francis Ford Coppola, é um daqueles filmes cujo génio se revela capaz de baralhar os tempos em que o vemos ou revemos. Rodado em 1981, a sua energia experimental não exclui, antes reforça, a singular nostalgia cinéfila que o faz mover — aconteceu em 1982, na altura da sua estreia; volta a acontecer agora, através de uma reposição em cópia restaurada.
Coppola é mesmo um criador que encara com naturalidade (não confundir com naturalismo) a possibilidade de um filme existir como um objecto ciclicamente à procura da sua forma ideal ou, pelo menos, através de uma organização narrativa sempre em aberto. Assim aconteceu, afinal, com Apocalypse Now que, em 1979, ganhou a Palma de Ouro de Cannes (ex-aequo com O Tambor, de Volker Schlöndorff), ainda apresentado como um “work in progress”. Seria reposto duas vezes: primeiro com mais 49 minutos, Apocalypse Now Redux (2001); depois numa duração intermédia naquela que será a versão definitiva, Apocalypse Now Final Cut (2019), a preferida do realizador.
Deparamos agora algumas pequenas diferenças de montagem — a cópia do primeiro restauro de Do Fundo do Coração, lançada em 2003, durava 99 minutos, a nova versão fica-se pelos 94. Em todo o caso, para lá dessas diferenças, Coppola terá também querido passar a “mensagem” de uma disponibilidade criativa que, neste momento, encontra a sua rima perfeita no assombroso e desconcertante filme que é Megalopolis, revelado em maio na competição oficial de Cannes (tendo ficado fora do palmarés). Num caso como noutro, o cinema apresenta-se como uma arte utópica, sempre à procura de um futuro tecido de linguagens que mantêm os mais inusitados laços nostálgicos com o passado.

O projecto Zoetrope

Em 1982, o aparatoso falhanço comercial de Do Fundo do Coração talvez se possa resumir através de um problema que, em boa verdade, através das mais diversas configurações, pontua todas as épocas (a começar pelo período mudo) da história de Hollywood. A saber: fiel a um espírito genuinamente independente, Coppola apostou numa espectacular reconversão técnica e estética na produção do seu filme, ao mesmo tempo que se alheava das suas formas de promoção e difusão.
Notícias recentes permitem perceber que ele está a lidar de forma diferente com Megalopolis, filme de fabricação ainda “mais” independente, uma vez que foi o próprio Coppola a assumir a totalidade do seu orçamento (120 milhões de dólares). Agora, o acordo com a empresa Lionsgate para a respectiva distribuição no mercado americano (EUA e Canadá) só foi concluído depois de Coppola aceitar custear as acções de marketing — a estreia está marcada para 27 de setembro (nas salas portuguesas surgirá, em princípio, no mês de outubro).
Na época da sua estreia, Do Fundo do Coração era um verdadeiro “ovni” industrial — a começar pela sua concepção financeira. Lembremos a chamada linguagem fria dos números: a produção do filme de Coppola resultou de um investimento de 26 milhões de dólares (liderado pela Columbia), enquanto o mítico fenómeno do mesmo ano de 1982 — E.T., o Extraterrestre, de Steven Spielberg — se fez com apenas 10,5 milhões. Consultando o “box office” americano, isto significa que o filme de Spielberg acumulou receitas equivalentes a 40 vezes o seu custo, enquanto Do Fundo do Coração “rendeu” 40 vezes menos do que o valor nele investido.
Coppola não estava apostado em fazer apenas um filme diferente das tendências espectaculares do momento, estranho aos valores de “entertainment” que estavam na moda. A sua ambição era mais cristalina e inequivocamente mais radical: ele queria criar um espaço de produção que possuísse a magnitude de um estúdio clássico de Hollywood, mas sem as suas limitações estruturais, e também os seus vícios administrativos.
Do Fundo do Coração surgiu, assim, como a produção mais ambiciosa da Zoetrope Studios, empresa fundada em 1969, em São Francisco, por Coppola e o seu amigo George Lucas, na origem com o nome de American Zoetrope. Na altura de Do Fundo do Coração, Lucas já tinha sido bafejado pelo sucesso planetário da saga Star Wars (cujo primeiro título datava de 1977), além de estar envolvido na criação da personagem de Indiana Jones (Os Salteadores da Arca Perdida, sob a direcção de Spielberg, estreara-se em 1981).
A Zoetrope era mais, muito mais, do que uma “duplicação” dos estúdios clássicos de Hollywood (MGM, Warner, Columbia, etc.). Para Coppola, tratava-se mesmo de inventar um novo ambiente criativo, qualquer coisa como uma grandiosa oficina artesanal, integrando os seus profissionais contratados (actores, argumentistas, realizadores) a trabalhar num espaço diversificado cujos recursos de filmagem (também disponíveis para outros artistas) funcionariam como verdadeiros laboratórios experimentais. Era uma verdadeira “cidade do cinema” albergando salas com exibições regulares, uma biblioteca e restaurantes; Coppola pensava mesmo alugar o Pilot Light Theatre de Los Angeles, para ensaios durante o dia e espectáculos à noite.

Um artesão clássico

A Zoetrope não desapareceu do mapa, tendo recuperado, em 1990, a designação de American Zoetrope. Aliás, as linhas simbólicas que podem ligar Do Fundo do Coração e Megalopolis começam por aí: o primeiro filme surge com chancela Zoetrope Studios, o segundo como uma produção da American Zoetrope, ambos remetendo para a mesma utopia cinéfila.
No património da Zoetrope Studios/American Zoetrope encontramos uma colecção invejável de “filmes de autor”, materializando um conceito de pluralidade criativa capaz de atravessar as mais diversas fronteiras culturais e geográficas. Eis alguns exemplos: THX 1138 (1971), parábola de ficção científica e primeira longa-metragem de George Lucas; Koyaanisqatsi (1982), etapa inaugural da colaboração do realizador Godfrey Reggio com o compositor Philip Glass; As Virgens Suicidas (1999), com Coppola a produzir a estreia na realização de sua filha, Sofia Coppola. Isto sem esquecer as participações em produções “estrangeiras”, por vezes assumindo também a sua distribuição nas salas dos EUA, como Hitler: Um Filme da Alemanha (1977), de Hans-Jürgen Syberberg, Salve-se quem Puder (1980), de Jean-Luc Godard, ou Kagemusha (1980), de Akira Kurosawa.
Foi, aliás, com a marca da sua produtora que, depois do desastre comercial de Do Fundo do Coração, Coppola “renasceu” em 1983 com dois admiráveis filmes “juvenis” baseados em romances de S.E. Hinton: Os Marginais e Rumble Fish. Dito de outro modo: na sua espantosa versatilidade criativa, coleccionando sucessos ou desastres comerciais, Coppola é um legítimo herdeiro dos artesãos clássicos de Hollywood.

terça-feira, julho 23, 2024

Para redescobrir Underground

O regresso de Underground (1995), de Emir Kusturica, aos ecrãs portugueses — reposição em cópia restaurada, 4K — é mais um excelente exemplo de (re)consolidação de uma tradição que, em tempos cinematograficamente mais radiosos, contribuiu para a educação de várias gerações de espectadores. A saber: a reposição de filmes de aura clássica durante o verão.
Afinal de contas, há mesmo alternativas para a lógica de acumulação/confusão que as plataformas de streaming cultivam, sem que ninguém, no seu interior, pense ao menos no interesse comercial daquilo que (não) andam a fazer...
Enfim, lembremos que o filme de Kusturica revê a história da Jugoslávia — Era uma vez um país..., diz o subtítulo — através de uma amargura poética que ficou também inscrita num inusitado calendário: a apresentação do filme em Cannes, em maio de 1995, onde ganhou a Palma de Ouro, antecedeu em poucos meses o fim da Guerra da Bósnia, oficializado pelos Acordos de Dayton, assinados em dezembro do mesmo ano.
 

Trump como marca

REUTERS / Elizabeth Frantz, Andrew Kelly, Marco Bello, Brian Snyder e Mike Segar

Como se mede a fidelidade de uma multidão a um líder?
Eis uma pergunta que vale a pena repetir face à moda, efémera, que marcou a Convenção Nacional do Partido Republicano, em Milwaukee: pensos na orelha direita, "duplicando" o modo como Donald Trump surgiu, cerca de 48 depois de ter sobrevivido a uma tentativa de assassinato.
Que fidelidade é esta? Estranhamente (ou talvez não), envolve uma pueril desdramatização da própria entidade que se homenageia. Como se Trump fosse um líder que se definisse, menos pelo sistema de ideias, mais pela iconografia que o seu corpo pode expor e, num certo sentido, sustentar. O que, em última instância, o desqualifica enquanto sujeito, aproximando-o da condição de uma marca — provavelmente, é esse novo poder político que Kamala Harris irá enfrentar.

segunda-feira, julho 22, 2024

Jónsi, nova música, novo álbum

Notícias da Islândia: Jónsi, membro dos Sigur Rós, anuncia novo álbum a solo: First Light tem lançamento marcado para 30 de agosto. Eis um dos temas a descobrir: Cherry Blossom.

sábado, julho 20, 2024

Salman Rushdie
— o olho direito da Lua

Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès: a memória que persiste

Através de palavras concisas, Salman Rushdie ajuda-nos a lidar com os erros cometidos pela morte — este texto foi publicado foi publicado no Diário de Notícias (30 junho).

Nas últimas semanas tenho sido acompanhado pelas palavras de Salman Rushdie no seu livro Faca (edição D. Quixote, tradução de J. Teixeira de Aguilar). Estamos perante um exercício radical de memória, embora transcendendo a mera inventariação de factos. O que, evidentemente, não banaliza a perturbação inerente a tais factos, assim resumidos na contracapa: “A 12 de agosto de 2022, trinta e três anos depois da fatwa contra ele decretada pelo aiatola Khomeini, assim que subiu ao palco do anfiteatro de Chautauqua, Nova Iorque, para falar sobre a importância de manter os escritores fora de perigo, Salman Rushide foi atacado, e quase morto, por um jovem com uma faca.”
Salman Rushdie
O desafio do escritor poderá resumir-se através do enraizamento literário, político e simbólico a que, justamente, as suas palavras tentam responder e corresponder. Na certeza de que o labor da escrita está muito para lá do falacioso conceito corrente — entenda-se: televisivo — de “descrição” do mundo.
Com objectividade e ironia, Rushdie refere o “modo de livre associação” da sua mente. Cita até os seus pensamentos cruzados na noite de 11 de agosto, essa “última noite inocente”. Face ao esplendor da “lua cheia que brilhava sobre o lago”, pensou, entre outras coisas, no instante em que Neil Armstrong pisou a Lua, numa história de Italo Calvino e, por fim, no “momento mais famoso” do filme Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès (evocado através da reprodução do respectivo fotograma). E acrescenta: “Não fazia ideia, ao recordar a imagem da nave a ferir o olho direito da Lua, daquilo que a manhã seguinte reservava ao meu próprio olho direito.”
O atentado de que foi alvo suscita-lhe outras associações cinéfilas, incluindo os “sonhos que eram reminiscências” de Un Chien Andalou (1929), de Luis Buñuel e Salvador Dalí, filme “em que uma nuvem que corta a lua cheia se converte numa lâmina a cortar um olho”. Para desembocar na tragédia consumada pelos erros estúpidos da morte: “Uma das razões pelas quais o filme Psycho, de Alfred Hitchcock, é tão assustador é morrerem as pessoas erradas. A maior estrela do filme, Janet Leigh, morre passado cerca de meia hora. Aparece o seguro e avuncular detetive Martin Balsam, tipo deixem-isso-comigo e, mal damos por isso, morre também. É aterrador. Era assim que eu começava a sentir-me. A morte estava a apresentar-se nas moradas erradas.”
Há uma mensagem implícita nestas palavras: o naturalismo pueril da mais formatada linguagem televisiva pode dominar (e, de facto, domina) as trocas informativas em que vivemos, mas revela-se irremediavelmente escasso para lidar com a complexidade da experiência humana. E há também em tudo isto uma tragédia de comunicação que o escritor não sabe como resolver (e o leitor ainda menos): como lidar com o próprio autor do atentado?
Escreve Rushdie, designando-o por “A.”: “Como hei de abordá-lo, o detentor da faca? Circundo-o na minha mente, penso em maneiras de iniciar a conversa.” E também: “Não quero ser demasiado amistoso. Não me sinto amistoso. Mas também não quero ser demasiado hostil. Quero abri-lo, se puder. Como um encontro real é improvável — digamos impossível —, tenho de imaginar a maneira de entrar na sua cabeça. Tenho de tentar construí-lo, torná-lo real. Não sei se conseguirei.”
Ao longo de quarenta páginas, Rushdie arrisca mesmo um exercício teatral em que redige esse diálogo “improvável/impossível” com o homem que tentou matá-lo. Quase no fim, diz-lhe: “Começo a perceber. Você quer ser um servo. Andou à procura de um amo ou de uma ideia que fosse maior que você e perante a qual pudesse curvar-se. Não queria ser livre. Queria submeter-se.” Que acontece, então? O agente da morte responde: “Ainda não percebeu. Só a submissão conduz à liberdade. Essa é que é a porra da questão.”
Subitamente, o nosso tão fútil idealismo colectivo encontra a questão que sempre lá esteve, mas que teimamos em iludir ou menosprezar: a palavra “liberdade” não tem uma significação unívoca, nem é uma moeda de troca universal.

terça-feira, julho 16, 2024

Perry Blake
* Death of a Society Girl (2024)

É um dos segredos mais bem guardados da música da Irlanda: Perry Blake, cantor e compositor que trabalha a secreta aliança entre melancolia e sofisticação. Por vezes, com cumplicidades bem reveladoras da sua postura criativa: por exemplo, as duas canções (Moments e So Many Things) que compôs para Françoise Hardy, incluídas no álbum Tant de Belles Choses (2004).
Sem qualquer edição nos últimos três anos, Blake está de volta com o magnífico Death of a Society Girl — o tema-título conta com a colaboração do actor inglês Paul McGann, especialmente conhecido do público britânico através da série Doctor Who.
 

Apocalipse em forma de novela

Peter Finch em Network (1976): "A televisão não é a verdade!"

Fazer televisão não é reproduzir o mundo, mas representá-lo: o cinema ajuda-nos a pensar a urgência de tal questão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 junho).

Em 1976, no filme Network (entre nós lançado como Escândalo na TV), o realizador Sidney Lumet, partindo de um argumento de Paddy Chayefsky, colocou em cena a personagem bizarra de Howard Beale. Despedido devido à queda de audiências do seu programa, Beale vive as duas semanas finais do seu trabalho transfigurado em mensageiro do apocalipse. Não uma tragédia bíblica, mas um apocalipse televisivo. A ponto de fazer proclamações deste teor: “Escutem-me: a televisão não é a verdade! A televisão é um perverso parque de diversões! A televisão é um circo, um carnaval, um grupo itinerante de acrobatas, contadores de histórias, bailarinos, cantores, malabaristas, aberrações marginais, domadores de leões e jogadores de futebol.”
O filme está disponível na Apple TV+. Será salutar redescobri-lo evitando a estupidez analítica alimentada por algumas ideias feitas (mal feitas, sem dúvida) sobre as histórias que os filmes contam. Assim, reconhecer o fascínio dramático da personagem de Beale (que valeu um Oscar póstumo a Peter Finch) não é o mesmo que reduzir as suas palavras a um sentido literal, aplicável a qualquer contexto. Ainda menos esquecer que a televisão não se esgota em nenhum padrão estável, de tal modo que nela podemos encontrar, todos os dias, manifestações contraditórias das maravilhas do humano e da sua obscena violentação.
Trata-se apenas de reconhecer que tais palavras transportam uma evidência rudimentar que continua a ser metodicamente recalcada por muitos agentes mediáticos e políticos. A saber: a televisão não é um espelho virginal do mundo — televisão é encenação.
O exemplo português contém algumas preciosas lições. Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974, uma das primeiras medidas do Movimento das Forças Armadas foi mesmo a ocupação dos estúdios da RTP, em Lisboa. Pouco depois das seis horas da tarde, Fernando Balsinha anunciava uma edição especial do Telejornal com esta clareza: “Atenção, senhores espectadores, muito boa tarde: a partir deste momento, o Movimento das Forças Armadas controla totalmente a rede emissora da Rádio Televisão Portuguesa.”
Há uma dedução rudimentar a extrair desta memória. Transporta uma lição que nem mesmo os 50 anos do 25 de Abril conseguiram devolver à consciência pública: o poder televisivo (poder de emitir, poder de representar e narrar) não é estranho ao exercício do poder político. Sabemo-lo há meio século e, quase sempre, comportamo-nos como se isso fosse indiferente para os nossos valores e o nosso entendimento do mundo.
Roberto Rossellini
O bloqueio de consciencialização não pode ser entendido, nem sequer descrito, a partir de qualquer hipótese apenas moral, tendencialmente moralista. Depois de 50 anos de democracia, a complexidade desafia-nos: das ninharias mais ridículas à seriedade dos temas mais graves da nossa existência comum, passando pela histeria nacionalista que se cola ao futebol, todos os aspectos da nossa vida colectiva parecem depender das mensagens televisivas, ou mesmo de alguma legitimação vinda do pequeno ecrã. A televisão como sistema global de partilha informativa é mesmo apresentada (e, de algum modo, vivida) como aparato transparente e cristalino de “reprodução” do mundo à nossa volta.
Ora, nenhuma imagem reproduz apenas (nem sobretudo) o que quer que seja. Criar e fazer circular imagens é sempre gerar narrativas, acrescentar mundos ao mundo, num processo ancestral que tem um nome interessante: cultura.
Cultura é circulação de valores e, nessa medida, confronto de muitos valores diversos e, no limite, inconciliáveis. De tal modo que pensar, discutir e configurar o território televisivo envolve uma urgência quotidiana. Recordo Roberto Rossellini: “Devemos exigir que se abra, no seio das televisões europeias, um autêntico debate sobre a missão da televisão, sobre as pesquisas a desenvolver para inventar as novas linguagens que, em função de um grande número de sinais, somos levados a pensar que são aguardadas pela sociedade contemporânea.”
São palavras de um texto ainda mais antigo que o filme Network (publicado na revista Il Tempo, 26 maio 1972), discutindo, em particular, aquilo que, numa Europa obviamente muito diferente, poderia ser uma “televisão do Estado”. São, sobretudo, palavras que nos recordam que não é possível pensar a televisão sem alguma metodologia ideológica. Agora, a palavra “ideologia” vive escondida num assombramento fúnebre. Políticos de todas as cores nela pressentem a ameaça de um desejo de pensamento que pode abalar o seu próprio estatuto. Na prática, os protagonistas da cena política aceitam circular de ecrã em ecrã, como se fossem intérpretes incautos de uma novela que, em boa verdade, ajudam a produzir.