domingo, outubro 15, 2023

Woody Allen
— escutando a música das palavras

Niels Schneider e Lou de Laâge:
Paris visto por Woody Allen

Woody Allen muda de cenário, mas prossegue a metódica observação das relações homens/mulheres: Golpe de Sorte é uma história de Paris, falada em francês, com a contribuição essencial de Vittorio Storaro na direcção fotográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 outubro).

O novíssimo filme escrito e dirigido por Woody Allen, Golpe de Sorte, tem sido apresentado através de referências e coordenadas da sua própria obra. O que, bem entendido, faz todo o sentido: as memórias da teia melodramática de Match Point (2005) ecoam, agora, nas atribulações do casal Fanny/Jean (Lou de Laâge/Melvil Poupaud) e no misto de sedução e traição que Alain (Niels Schneider), antigo colega de liceu de Fanny, vai introduzir na felicidade liofilizada do seu casamento.
Estamos, então, perante uma variante cinéfila do tradicional “triângulo amoroso”? A resposta é também afirmativa, embora carecendo de uma precisão essencial. Assim, há muito cinema contemporâneo, dos mais variados géneros, em que a consciência das heranças dos modelos clássicos gera “citações” mais ou menos maneiristas, no limite pouco disponíveis para a vida das próprias personagens. Não é esse o caminho de Woody Allen: ele assume-se como herdeiro de um património (melodramático, justamente) que o conduz a permanentes variações sobre as “coisas”, ora transparentes, ora obscuras, de que são feitas as relações entre homens e mulheres.
Woody Allen tem dito que o facto de ter rodado Golpe de Sorte em Paris (trata-se mesmo de uma produção sem participação americana) não envolve qualquer mudança significativa no seu trabalho. Em boa verdade, os estúdios de Hollywood foram deixando de o financiar, mas, para ele, Paris e Nova Iorque são mesmo cidades “muito parecidas”. Dito de outro modo: as matrizes narrativas não mudaram.
De tal modo que, com desarmante naturalidade (nada a ver com naturalismo), Golpe de Sorte consegue uma proeza tão cristalina que quase nos esquecemos dela. A saber: a musicalidade das palavras escritas por Woody Allen está presente em todo o seu esplendor, mesmo com diálogos totalmente em francês.
À maneira de muitos grandes artistas (não apenas do cinema), o seu labor segue uma lógica obsessiva em que, também com inevitáveis sugestões musicais, somos convocados para uma festiva exposição de temas e variações. E se, como bem sabemos, tal lógica não é estranha a ficções de dilaceradas emoções — pelo menos a partir do prodigioso e muito esquecido Interiors/Intimidade (1978) —, a sua evolução nunca menosprezou as nuances da comédia dramática, agora de novo na sua máxima depuração nesta história de desejos malignos, destinos fatais e acasos quase divinos.
Há em tudo isto uma assumida filiação na herança de Ingmar Bergman — lembremos esse filme “bergmaniano” por excelência, central na evolução da filmografia de Woody Allen, que é Maridos e Mulheres (1992). Com um factor que perverte os próprios fundamentos de tal herança: mesmo nas histórias mais urbanas de Woody Allen, deparamos com a nostalgia de uma pureza natural que, através das árvores e dos jardins, se imiscui nos automatismos da cidade. Neste caso, através da admirável direcção fotográfica de Vittorio Storaro, um trabalho de luz e cor que, se o destino fosse fiável, seria um Oscar antecipado.