Pessoa interpretado por Miguel Borges: viver num mundo de imagens |
No labirinto herdado de Fernando Pessoa, Não Sou Nada é um filme que refaz a herança do poeta, ao mesmo tempo que questiona a relação do cinema com o seu espectador: um programa aliciante e envolvente — ste texto foi publicado no Diário de Notícias (25 outubro).
A palavra “aventura” joga bem com um filme como Não Sou Nada. Sobretudo se a aplicarmos para lá dos clichés preguiçosos que celebram os efeitos especiais que vão acompanhando os super-heróis. Aliás, o impulso aventuroso nem sequer se esgota na saga de Fernando Pessoa (1888-1935), escrito e imaginado, perdido e achado, através dos seus heterónimos e da presença paradoxal, porque tendencialmente abstracta, da sua Ofélia. Dito de outro modo: homenagear o poeta não é o mesmo que retomar a retórica dos discursos oficiais.
Porventura a maior aventura é, aqui, a do próprio cinema. A realização de Edgar Pêra arrisca mesmo tratar Pessoa como uma antologia de personagens (os heterónimos, obviamente) que convivem num “escritório” que parece confirmar todas as rotinas de um espaço desse género, ao mesmo tempo que escapa a qualquer mapa racional de comportamentos. Elementos como a fotografia, a cenografia e o guarda-roupa — da responsabilidade de Jorge Quintela, Ricardo Preto e Susana Abreu, respectivamente — servem, não para “reconstituir” um mundo, antes para fabricar um mundo alternativo que, paradoxalmente ou não, nos leva a questionar os nossos modos de viver, sentir e pensar a herança de Pessoa. Ou apenas os nossos modos de viver, sentir e pensar.
Se quisermos prolongar a metáfora para lá do filme (coisa que, aliás, ele nos pede com a intransigência própria do impulso poético) diremos que, nestes dias atribulados que vivemos, o cinema passou a existir como uma entidade “pessoana”. À letra: como se o cinema “não fosse nada”.
Assim, os filmes podem aparecer-nos em todo o lado, das salas tradicionais às plataformas de streaming, passando pela obscenidade estética dos telemóveis, como se já não servissem para confirmar que somos humanos, bastando sermos consumidores em série (e de séries). Sintoma esclarecedor deste estado das coisas: os novos profissionais do marketing parecem desconhecer o amor dos filmes, já que a maior parte deles põem um ar muito sério, ligeiramente angustiado, e em vez de “filmes” dizem “produtos”... E ao dizê-lo parecem esperar o nosso acomodado assentimento.
Tudo isto passa, naturalmente, pelos actores, mesmo se aquilo que está em jogo é a discussão das formas consagradas de naturalidade e naturalismo. Citando apenas os exemplos mais imediatos, repare-se como Miguel Borges, Albano Jerónimo e Victoria Guerra — respectivamente como Pessoa, Álvaro de Campos e Ofélia — circulam pelo ecrã como seres de esplendorosa ambiguidade: são encarnações vivas das palavras que foram escritas, ao mesmo tempo que circulam como fantasmas de uma narrativa que o poeta lançou e o cineasta transfigurou.
Nessa ambiguidade estará, talvez, um dos mais belos desafios de Não Sou Nada e do melhor cinema contemporâneo, vanguardista ou nostálgico: repensar o trabalho dos actores, repensando o conceito de personagem. Sem esquecer que uma vanguarda que se preze não dispensa o culto de alguma nostalgia.