domingo, outubro 29, 2023

Assassinos da Lua das Flores
— a cor do dinheiro

Lily Gladstone em Assassinos da Lua das Flores:
que cor é esta?

Martin Scorsese volta a enfrentar as convulsões históricas do seu país, perguntando: quem está a narrar a própria história? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 outubro).

No novo filme de Martin Scorsese, Assassinos da Lua das Flores, na primeira conversa entre Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), o veterano da Primeira Guerra Mundial que regressa ao Oklahoma, e Mollie (Lily Gladstone), uma mulher da tribo dos índios Osage, ele contempla demoradamente o rosto dela: “Tens uma linda cor de pele.” E pergunta-lhe: “Que cor é essa?”. Ao que Mollie responde: “É a minha cor.”
Na sua singeleza, as palavras de Mollie expõem a banalidade do racismo em que Ernest se move, em particular através da influência do tio William Hale (Robert De Niro). Podemos até supor que a crueldade mansa da sua pergunta se duplica pelo facto insólito, literalmente irracional, de permanecer fora da sua consciência moral. Talvez Assassinos da Lua das Flores se possa mesmo resumir como a história do esvaziamento moral do próprio Ernest, a ponto de encarar como natural o modo como explicita o seu fascínio por Mollie — qualquer ideologia discriminatória procura alguma forma de “naturalização”.
Ao dizer apenas “é a minha cor”, Mollie atrai um genuíno paradoxo. Como? Esvaziando a própria possibilidade de identificar essa cor através de um nome de… cor. Naquela circunstância, se o fizesse, se desse um nome à sua cor, mesmo de uma forma a que poderíamos chamar realista, estaria a inscrever-se num território humano totalmente encerrado na sua codificação “colorida”. Dito de outro modo: aceitaria definir-se como uma unidade intermutável, sem peso específico, diluída num grupo definido a partir da cor da pele.
A riqueza da textura dramática de Assassinos da Lua das Flores, a par da complexidade das suas implicações simbólicas, aconselha a que não tratemos o filme como banal “ilustração” de uma colecção de “temas” que justificariam a sua própria existência. Scorsese não é, nem de longe nem de perto, um oportunista a explorar a moda pueril da história politicamente correcta. Nada a ver, portanto, com essas narrativas que reduzem o passado a um jogo maniqueísta entre “inocentes”, mais ou menos incautos, e “culpados” sempre iguais entre si — tão estupidamente iguais que são tratados como clones que nasceram para alimentar a boa consciência dos espectadores (incluindo os críticos, se for caso disso).


Na edição de outubro da revista Sight and Sound, numa entrevista com Philip Horne, Scorsese chama a atenção para as tensões que definem a personagem de DiCaprio: “Ele é fraco, e é perigoso, mas há amor por ali. E isso é perturbante, mas ao mesmo tempo humano. Somos assim.” Digamos que o episódio citado, algo como o capítulo zero da história do casamento de Ernest e Mollie, envolve uma pergunta cuja perturbação existencial atravessa muitos momentos da história cultural da América — pontuando, ao longo das décadas, de John Ford a Steven Spielberg, o grande cinema de Hollywood. A saber: que nome posso dar à tua diferença?
São muitos os exemplos da cultura popular americana em que podemos encontrar ecos de tal problemática, incluindo a derivação poética contida na canção Black or White, de Michael Jackson, do álbum Dangerous (1991). “Não importa se és branco ou preto”, diz-se na canção, abrindo para uma lógica em que, obviamente, não se trata de escamotear as formas de racismo que encontramos na história dos EUA (bem pelo contrário), mas de desafiar os limites das linguagens com que essa mesma história se encontra coligida — e, mais do que isso, é transmitida.



[Real.: John Landis]

Há outra maneira de dizer isto, tanto mais significativa quanto se demarca de qualquer discurso piedoso, não poucas vezes procurando legitimar os mais variados disparates artísticos. Assim, não se trata de multiplicar as formas de vitimização, mas de recusar a menorização do “outro” que é alvo de violência física ou opressão paternalista. Scorsese cita mesmo uma afirmação que escutou durante a sua longa convivência com o povo Osage: “Não queremos ser retratados como vítimas.”
A saga dos Osage, convém não esquecer, é uma tragédia gerada pela ganância: as mortes suspeitas dos seus elementos (que são, na verdade, assassínios friamente premeditados) começam a acontecer quando as suas terras se revelam ricas em petróleo. O que Scorsese encena está longe de se reduzir a um mero inventário de factos e “reconstituições”. Por amor da América, aquilo que o seu filme pergunta envolve a própria cristalização da história em memória colectiva: quem protagoniza essa história e, mais do que isso, quem está a narrá-la?
Até porque cedo compreendemos o factor primordial das convulsões históricas evocadas, quando William Hale diz ao sobrinho que “o dinheiro circula livremente por aqui.” Sendo um factor de riqueza, a sua circulação é cúmplice de uma tragédia humana.