sexta-feira, setembro 30, 2022

Ser ou não ser David Bowie

David Bowie revisto e reinventado por um filme invulgar

Infelizmente, Moonage Daydream só esteve uma semana em exibição. Foi no ecrã gigante que pudemos descobrir esse admirável trabalho sobre David Bowie: mais do que um documentário biográfico, estamos perante uma experiência “imersiva” capaz de revalorizar a magia primitiva do espectáculo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 setembro).

Foi um dos grandes acontecimentos do último Festival de Cannes (extra-competição) e ficará, por certo, como um dos filmes fulcrais de 2022: Moonage Daydream, de Brett Morgen, está [esteve] a partir de hoje [dia 15], e durante uma semana, em salas IMAX. O retrato épico de David Bowie (1947-2016) suscita também várias edições das respectivas canções: a banda sonora estará disponível em formato digital a partir de amanhã [dia 16]; em duplo CD surgirá no dia 18 de novembro; e em triplo LP no início de 2023.
Este calendário poderá suscitar a ideia equívoca de que se trata do registo de um concerto, porventura inédito, “multiplicado” pelas respectivas variações discográficas. De facto, não é disso que se trata, mas sim de uma visão do criador de Life on Mars? que tem tanto de antologia como de reinvenção formal.
Também não estamos perante uma lógica de reportagem, por exemplo à maneira do clássico Dont Look Back (1967), de D. A. Pennebaker, sobre a lendária digressão britânica de Bob Dylan, em 1965. Seja como for, é um facto que Moonage Daydream integra diversos materiais da “Zigg Stardust Tour” (1972-73), provenientes sobretudo do filme Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, também assinado por Pennebaker, dedicado ao derradeiro concerto dessa digressão, realizado a 3 de julho de 1973 no Hammersmith Odeon de Londres.

Camaleão?

De que se trata, então? Por uma vez, podemos dizer que a promoção de um filme sabe ser fiel ao seu “espírito”. Quando no respectivo trailer se diz que se trata de uma experiência “imersiva”, só podemos concordar: o espectador é convocado, não para uma “playlist” de sucessos, mas sim para uma viagem através do mundo de Bowie, algures entre o real e o imaginário — ou num território que está para lá da sua mecânica oposição.
O título do filme retoma o título de uma canção de Bowie, precisamente do álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972). Nela se apresenta a personagem central da fábula de ficção científica que o álbum propõe: Ziggy Stardust, figura alienígena, símbolo visceral da energia do rock, está no nosso planeta para nos salvar do apocalipse… Além do mais, distinguindo-se por uma identidade festivamente ambígua — ou como se diz num dos versos, anunciando a chega de Ziggy: “I'm a mama-papa comin' for you”.
Claro que Ziggy, o seu álbum e as suas performances estão muito longe de esgotar o esplendor dos 140 minutos da realização de Morgen. Em todo o caso, a sua escolha como “capítulo zero” do próprio filme não tem nada de arbitrário, ajudando o espectador a resistir ao rótulo convencional (ainda que elogioso) do poder “camaleónico” de Bowie. Na verdade, o camaleão muda de cor para se confundir com o cenário em que se movimenta, no limite desaparecendo. Ora, Bowie sempre foi o rigoroso contrário disso mesmo: um artista que soube cultivar a ousadia de novas formas e diferentes performances, emergindo como “coisa” diferente em qualquer cenário.
Moonage Daydream consegue, assim, algo de raro e precioso, superando as fronteiras tradicionais de um registo que, para todos os efeitos, tem o seu quê de biográfico — é mesmo, oficialmente, o primeiro documentário dedicado a Bowie produzido com autorização dos herdeiros e gestores do seu património artístico.

Brett Morgen
Vida e morte

Pormenor sintomático: não encontramos, aqui, uma daqueles vozes off mais ou menos “descritivas”, redundantes e monótonas, que acabam por reduzir os materiais de arquivo a lugares-comuns “enciclopédicos”. O efeito imersivo provém de uma lógica narrativa que, não sendo temporalmente linear, também não tem nada de arbitrário. Deambulamos, por exemplo, dos álbuns berlinenses de Bowie no final da década de 1970 (Low, “Heroes” e Lodger) para o seu envolvimento com o cinema, o teatro e a pintura, sem que isso nos faça perder o essencial: o génio de um criador em permanente reavaliação crítica da sua identidade — ser ou não ser, eis a questão.
Na trajectória de Morgen, Moonage Daydream é, claramente, um objecto cúmplice do seu Cobain: Montage of Heck (2015), retrato de Kurt Cobain (1967-1994) em que as memórias musicais dos Nirvana se cruzam com muitos desenhos e documentos inéditos. Segundo o próprio realizador, em entrevista à BBC (por altura da passagem do filme em Cannes), durante o seu trabalho de cinco anos teve acesso a nada mais nada menos que cinco milhões de “documentos” (“assets”) directa ou indirectamente relacionados com a obra e a personalidade de Bowie.
Tal envolvimento não é alheio às convulsões da sua vida pessoal. Desde logo, porque a paixão pela música de Bowie começou na adolescência — Morgen nasceu em Los Angeles, em 1968. Depois, porque quando estava a começar a trabalhar em Moonage Daydream sofreu um violento ataque cardíaco que, como ele sublinha, o levou a repensar toda a sua existência e a herança que poderia deixar aos seus três filhos: “Precisei de aprender a viver outra vez e foi nessa altura, aos 47 anos, que David Bowie, realmente, voltou a entrar na minha vida.”

quarta-feira, setembro 28, 2022

Luca Guadagnino
— o realismo é uma questão de pele

Jordan Kristine Siamón e Jack Dylan Grazer:
ser ou não ser, eis a questão

Quantos realismos existem? Para Luca Guadagnino, na série We Are Who We Are, trata-se de questionar os mistérios da identidade: depois da HBO Max, chega agora à plataforma Filmin — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 setembro).

O cineasta italiano Luca Guadagnino filmou a mini-série We Are Who We Are (à letra: “Somos quem somos”) com a Red Gemini 5K, uma sofisticada câmara digital, usando lentes Leica da série Summicron. São referências técnicas cuja actualidade os especialistas da fotografia saberão explicar na sua imensa sofisticação e, mais do que isso, contextualizar na prodigiosa evolução do registo das imagens em movimento. Acontece que nada disso é alheio a uma proeza — visual, dramatúrgica e simbólica — que o trabalho de Guadagnino concretiza de modo fascinante, raro no actual contexto televisivo e cinematográfico. A saber: a procura de um realismo com tanto de intensidade como de pudor a que corro risco de atribuir o “rótulo” de à flor da pele.
Daí a pergunta: de que falamos quando falamos de realismo? Lembremos apenas a pluralidade que a questão atrai. Não há “um” realismo, mas muitos desejos de realismo que a história dos filmes integra através de objectos tão diversos como Greed (1924), de Eric von Stroheim, Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, ou Platoon (1986), de Oliver Stone.
Mesmo quando o cinema se aventura por labirintos espirituais — penso no exemplo sublime de A Palavra (1955), de Carl Th. Dreyer, e na sua encenação de um milagre —, talvez possamos dizer que a perturbação realista envolve uma obstinada paixão pela matéria. Ou se preferirem: pelo esplendor esquecido das coisas concretas. Tudo tem valor, tudo é singular e irredutível, tudo apela à disponibilidade do olhar: a rugosidade da pele, a textura de uma peça de roupa, a nitidez paradoxal da água, o brilho fugaz de uma onda, a brancura de um piano, a presença vigilante de uma nuvem lá ao fundo, etc., etc., etc.
O contexto em que Guadagnino situa a acção desafia a própria transparência do concreto, até porque, resumindo (e muito…), se dirá que a teia dramática de We Are Who We Are propõe uma fábula contemporânea sobra a noção de pertença. No sentido individual: quem sou eu, de onde venho, a que lugar pertenço? E também no plano colectivo: que acontece, ou pode acontecer, para que a infinita diversidade dos indivíduos produza, ou possa produzir, um laço afectivo de pertença?
Tudo se passa numa base militar americana (fictícia), situada nas imediações de Chioggia, cidade italiana (verídica) na região de Veneza. Somos introduzidos nesse universo paradoxal — muitas regras de organização colectiva, muitos “desvios” individuais de comportamento — através de alguns jovens cujos pais e mães desempenham funções na hierarquia militar. Duas personagens vão destacar-se: Fraser e Caitlin (interpretados pelos magníficos Jack Dylan Grazer e Jordan Kristine Siamón, respectivamente), ambos algo à deriva no interior dos respectivos universos familiares, vivendo as ambiguidades da sua sexualidade num misto de solidão e partilha, euforia e angústia.
Por aqui perpassam variados elementos críticos do modo como vivemos (ou julgamos viver) neste atribulado século XXI: a decomposição dos laços familiares tradicionais, o lugar das mulheres em universos marcados por uma pesada herança masculina (Sarah, a mãe de Fraser, interpretada por Chloë Sevigny, é a comandante da base), o conflito entre modelos tradicionais de responsabilização e uma cultura da gratificação imediata… O certo é que nada disso adquire o determinismo de muitas ficções contemporâneas que, em boa verdade, se limitam a inventariar “temas” na moda para se auto-proclamarem como elementos de inquestionável “progresso” social.
Tal como nos seus filmes, Guadagnino filma as dores e alegrias do ser (ou não ser). Cada personagem vive num ziguezague impossível de tipificar, muito menos generalizar — entre uma identidade que resulta da sua inscrição num determinado estatuto ou modelo de comportamento e as convulsões de um ego povoado de identidades instáveis. O realismo de Guadagnino não é programático nem moralista: uma cena de conflito familiar pode ser tão reveladora quanto uma canção de Blood Orange (que, aliás, participa no derradeiro episódio), a luz cristalina do areal possui algo de tão comovente quanto o mais secreto momento de intimidade.
A série foi programada pela Quinzena dos Realizadores, em Cannes, na edição de 2020 que, devido à pandemia, acabou por não se realizar. Entretanto, os seus oito episódios andam por aí. Entre nós, podem ser vistos na HBO Max [e na Filmin]. Infelizmente, na ficha da HBO Max nem sequer se propõe qualquer informação sobre o facto de Guadagnino ser também o autor de dois filmes de peculiar impacto comercial como Eu Sou o Amor (2009) e Chama-me pelo Teu Nome (2017), isto apesar de ambos estarem disponíveis na própria HBO Max — o primeiro também pode ser visto na Filmin; outro título mais recente de Guadagnino, Suspiria (2019), está na Prime Video. Enfim, We Are Who We Are existe como um objecto de identidade ambígua: série, mini-série, produção para o streaming, narrativa de sensibilidade cinematográfica… Para mim, é um belíssimo filme com oito horas de duração.

domingo, setembro 25, 2022

Pharoah Sanders (1940 - 2022)

Lenda do jazz — assim se escreveu em todas as notícias. E com total fundamento. O saxofonista americano Pharoah Sanders foi um protagonista de eleição de seis décadas de música, quer a solo, quer através de muitas e frutuosas colaborações: faleceu no dia 23 de setembro, na sua casa de Los Angeles — contava 81 anos.
A sua discografia como líder inicia-se em 1965, com Pharoah's First, tendo tido um dos seus derradeiros e esplendorosos momentos com a edição em 2020 de um concerto inédito em Paris, em 1975. Sanders trabalhou com John Coltrane, nomeadamente nos álbuns Ascension e Meditations (ambos com data de 1966). Colaborou, entre muitos outros, com Don Cherry, Ornette Coleman, Alice Coltrane, Kenny Garrett e McCoy Tyner. O seu estilo, pontuado por muitas memórias, integra uma invulgar energia experimental que envolve também uma obstinada demanda espiritual. Em 2020, colaborou com o produtor de música electrónica Sam Shepherd (nome artístico: Floating Points) e a London Symphony Orchestra para concretizar Promises, um dos grandes álbuns deste nosso século XXI.

>>> Três momentos de Pharoah Sanders:
— em concerto no Festival France (1968);
— Love Is Here 2, do álbum Live in Paris (1975), Lost ORTF Recordings, editado em 2020;
— extracto de Movement 1, do álbum Promises (2021).






>>> Obituário: NPR + DownBeat.
>>> Site oficial de Pharoah Sanders.

Rain, remix

Rain faz parte do álbum Erotica, lançado por Madonna há quase trinta anos (20 outubro de 1992). Agora, surge uma longa e mangífica remistura da canção, com assinatura de Dubtronic (nome artístico do inglês Jeremy Sylvester): chama-se 'Dubtronic Wash Away Remix' e não integra o recente Finally Enough Love: 50 Number Ones — a sua apresentação visual é também uma remistura, neste caso do belíssimo teledisco original, assinado por Mark Romanek.

A grande aventura de Can Xue

 


O mínimo que se pode dizer de O Amor no Novo Milénio, romance da chinesa Can Xue (agora editado pela Quetzal, com tradução de Helder Moura Pereira), é que a sua estrutura desafia qualquer descrição. Em boa verdade, porquê e para quê descrever um romance? Não será a sua existência descrição q. b.?
Claro que a identidade da autora não será estranha às singularidades da sua escrita. Como se recorda na nota biográfica que acompanha o livro: "Can Xue, pseudónimo de Deng Xiaohua, nasceu em 1953, na província de Hunan, na China. Os seus pais conheceram as prisões políticas, antes e durante a Revolução Cultural, e Can Xue, que contraiu tuberculose na adolescência, pôde apenas frequentar o ensino fundamental. Descobriu a literatura como autodidata (...)"
Ao mesmo tempo, tais informações, por certo relevantes, não esgotam, nem podem esgotar, a grande aventura da escrita de alguém que aposta, justamente, na metódica decomposição de qualquer forma tradicional de biografia. Como? Testando tal hipótese nas próprias personagens que nos vai apresentando. Como está escrito num dos parágrafos de abertura do primeiro capítulo a propósito das duas primeiras personagens: "Cuilan e Wei Bo conheceram-se há mais ou menos um ano num spa que incluía sexo na sua oferta de serviços."
Dir-se-ia que temos o "essencial": personagens e um contexto. Mas também uma inesperada vacilação das coordenadas temporais: há mais ou menos um ano... Assim, no capítulo 2, cerca de uma centena de páginas mais à frente, o mesmo Wei Bo surge enredado numa incerteza insólita, geográfica e existencial: "Na memória de Wei Bo, a Lua tinha uma luz mais forte do que na cidade e era tão grande como a bacia de cobre para lavar as mãos. A sua terra natal, portanto, era no campo?"
Can Xue
Ainda lá mais para a frente, no capítulo 9, já passadas as três centenas de páginas, Yuan Hei e A Si divagam por uma região sem mapa, denominada "zona franca" (ainda que reconhecendo os pressupostos bem diversos, poderemos pensar nas ambivalências dos cenários de Andrei Tarkovski): "Quando passaram os dois pela porta envidraçada, Yuan Hei ouviu um estrondo semelhante ao de uma bolha que tivesse rebentado. Perguntou a A Si qual a origem daquele barulho. Ela respondeu que eram fragmentos de matéria que andam dispersos no ar e entram por vezes em choque."
A sedução de um certo fantástico, inclassificável segundo os padrões correntes, não será desprezável. Em qualquer caso, nesse processo de contínua fragmentação — que a estrutura narrativa do romance assume como genuíno programa narrativo e simbólico — não pode ser asbstraído das suas vivências muito concretas. São fragmentos de matéria, quer dizer, cenas contrastadas de uma paisagem existencial em que cada humano existe sempre através de um metódico paradoxo: a sua solidão só se pode descrever (aliás, escrever) através das histórias dos outros.
Com calculada contenção, Can Xue vai pontuando O Amor no Novo Milénio com sinais de uma história mais geral que as peripécias individuais ecoam: sentimos e pressentimos a vulnerabilidade das mulheres e dos homens, as ameaças de uma ordem social, talvez política, que parece pairar como um céu plúmbeo, enfim, com desconcertante alegria, deparamos também com a possibilidade do amor no novo milénio. Já perto do final, alguém pergunta: "Porque para fazer parte da História tem de haver consciência disso, não acham?"
Dir-se-ia que o título de um filme clássico do italiano Marco Bellocchio — A China Está Próxima (1967) — poderá condensar a intimidade para que O Amor no Novo Milénio nos convoca. A sua matéria confunde-se com o labor da escrita e o seu discreto esplendor. A certa altura, na pág. 268 da edição portuguesa, alguém pergunta: "Vem dos templos sagrados e está de regresso à revolução, não é verdade, Sr. Dr.?"

Louise Fletcher (1934 - 2022)

Voando Sobre um Ninho de Cucos (1975)

Um só filme, Voando Sobre um Ninho de Cucos, valeu-lhe um Oscar, um Globo de Ouro e um BAFTA: a americana Louise Fletcher faleceu no dia 23 de setembro, na sua casa em Montdurausse, França — contava 88 anos.
A vibrante interpretação da implacável enfermeira Ratched, em Voando Sobre um Ninho de Cucos (1975), sob a direcção de Milos Forman, foi para ela uma consagração e uma maldição artística [trailer]. De facto, para o melhor e quase sempre para o pior, passou a ser mobilizada para papéis de personagens mais ou menos "antipáticas" ou "perversas", obviamente limitando a expressão das suas qualidades. Entre os seus títulos mais significativos encontramos Exorcista II: O Herege (1977), de John Boorman, Na Selva de Chicago (1979), de Lewis Teague, ou O Jogador (1992), de Robert Altman. A sua carreira começou na televisão, na transição das décadas de 1950/60, nomeadamente em séries como Maverick ou Perry Mason. Entre os seus derradeiros trabalhos incluem-se o telefilme Mentes em Conflito (2012), de Jim O'Hanlon, e o filme A Perfect Man (2013), de Kees Van Oostrum.


>>> Obituário no Variety.

sábado, setembro 24, 2022

João Botelho
— retrospectiva / entrevista [2/2]

© Paulo Alexandrino/Global Imagens

A primeira longa-metragem de João Botelho, Conversa Acabada, surgiu em 1981. Daí até ao recente Um Filme em Forma de Assim, o cineasta percorreu um caminho em que as formas do cinema nascem, quase sempre, de uma relação criativa com a literatura. Agora que a sua obra pode ser vista em retrospectiva na Cinemateca (até ao final de setembro), revisitamos com ele temas e silêncios da história portuguesa — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (3 setembro), com o título '“Aprendi com o Sr. Pessoa que a minha pátria é a língua portuguesa”'.

[ 1 ]


Diz-se, por vezes, que esse regresso aos textos [literários] pode contribuir para que as pessoas leiam mais. Será assim?
Sem dúvida: com Os Maias, foram mais 50 mil exemplares que se venderam.
Toda essa integração de textos justifica que se diga que, enquanto cineasta, és também um historiador. Podemos lembrar o exemplo de Um Adeus Português, em 1986...
Com esse filme, fui pioneiro na abordagem da Guerra Colonial. Mas não é exactamente sobre a guerra… é sobre o luto da morte e o silêncio dos portugueses.
Silêncio?
Quando há acontecimentos graves, os portugueses não gritam — calam-se. Tive experiências dessas na minha família, não se falar de quem morreu. Os portugueses metem o luto cá para dentro. Já não é bem assim, mas a nossa história é feita muito disso, desse silêncio. Não gosto dos filmes de consolação, gosto dos filmes que inquietam, capazes de colocar perguntas — quem responde são as pessoas que vão ver os filmes.
Faz sentido dizer que aquilo que filmas é também um certo luto por um Portugal utópico que não vai voltar?
Para mim, sim. Quando fiz a Conversa Acabada, o que era importante para um puto como eu, que estava a começar, era o modernismo português: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Amadeo de Souza Cardoso, Almada Negreiros. Eram minoritários, mas tudo aquilo tinha qualquer coisa de grandioso, em paralelo com o que se estava a passar na Europa. Depois, aprendi com o Sr. Pessoa que a minha pátria é a língua portuguesa.
É verdade que, além da literatura, a pintura, a matéria pictórica, é para ti igualmente importante?
Sim, claro. No início, o facto de eu ter sido também gráfico, podia funcionar como uma espécie de acusação... Acontece que o ecrã é como uma folha branca: temos de pôr coisas lá dentro. Censuravam-me o facto de os planos serem tão concebidos, a ponto de se perder a sequência. Mas isso tinha também que ver com os actores: eu gostava mais dos não-actores, tinha medo dos actores — agora já não tenho, ponho-lhes a mão, abraço-os, mas dantes tinha medo. Seja como for, sempre me defini como um cineasta do tempo e da palavra, não da montagem nem da acção. Na verdade, a minha montagem faz-se logo durante a filmagem: aquilo só cola de uma maneira, se um plano está mal, a sequência vai toda ao ar! Quando escrevo um argumento, já sei como vou filmar — o que tem também que ver com a economia, com aquilo que chamo o processo teatral. Não vale a pena filmar, filmar, filmar... Faço como no teatro: ensaio primeiro, trabalho um mês com os actores e filmo rapidamente — torna tudo mais barato.
A partir de certa altura, esse sistema de fazer filmes parece tornar-se indissociável do produtor Alexandre Oliveira e da empresa Ar de Filmes?
É verdade. Existe entre nós um acordo pensado em função dos limites dos orçamentos e das necessidades de cada filme. Eu inventei uma ideia de serviço público no cinema português. Se só há filmes com o apoio do Estado, então temos de devolver alguma coisa. Por exemplo, com o Filme do Desassossego, feito a partir de Fernando Pessoa, andei de terra em terra, fiz 170 projecções... Com os mais jovens, fiz apresentações que não eram exactamente para explicar o filme, mas sim para os ajudar a perceber o que é o cinema.
Que futuro podemos esperar?
Lembro-me, quando apareceu a televisão, de ver coisas colectivamente. Depois, cada um começou a ter a sua televisão no quarto. Depois, vieram os computadores, agora temos os telemóveis e isso produziu uma certa uniformização da imagem e do som. Os jovens vão ver filmes com 3000 planos... Será que ainda vês algum plano? Não vês nada. E os 10 mil efeitos sonoros? Não ouves nada. Agora, o que mais me inquieta é que a relação de muitos jovens com o ecrã não é com o cinema, mas os telemóveis. Já me aconteceu ir a uma sala de cinema e há quem não esteja a olhar para o ecrã, mas para “isto”... Têm medo daquela coisa grande que é o ecrã.
Agora, na retrospectiva da Cinemateca, há uma secção (“Carta Branca”) para a qual escolheste uma série de filmes de cineastas que te marcaram especialmente: John Ford, Robert Rossellini, Manoel de Oliveira, Jean-Luc Godard, etc. Que aprendeste com esta gente toda?
Aprendi muito. A começar pelo Sr. Oliveira que me ensinou que, não havendo dinheiro para a carruagem, então filmas a roda... mas filmas bem a roda! Ou o Ford, cm quem aprendi que, se mexes a câmara, não mexas os cavalos, senão distrais as pessoas... É a ideia de filmar o essencial — gosto dos ascetas.

Casablanca aqui tão perto

Humphrey Bogart e Ingrid Bergman
na despedida que encerra o filme Casablanca

O filme clássico de 1942 inspira um romance de João Céu e Silva assombrado por factos, e também por algumas feridas, da história de Portugal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 setembro).

Eis uma cena que todos os cinéfilos conhecem, gostam de citar e escalpelizar. É no final do clássico Casablanca (1942), de Michael Curtiz: Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, aliás, Ilsa Lund e Rick Blaine despedem-se no aeroporto daquela cidade marroquina. No desenlace de uma aventura romântica iniciada alguns anos antes em Paris, agora dramaticamente transfigurada pelas convulsões da Segunda Guerra Mundial, ela vai sair de Casablanca com o marido, Victor Laszlo (interpretado por Paul Henreid), líder da resistência checa perseguido pelos alemães. O seu destino: Lisboa, capital de um país que manteve a sua neutralidade.
Será possível prolongar este desenlace num novo filme, algo como um Casablanca II? Uma sugestiva hipótese poderá começar assim:
“Cena 1: Ilsa Lund e Rick Blaine despedem-se no Aeroporto de Casablanca.
“Cena 2: O avião parte em direcção a Lisboa e está confirmada a separação definitiva dos dois amantes.
“Cena 3: Rick está de volta ao seu bar. Encostado ao balcão, pede uma bebida. O pianista aproxima-se e informa-o de que se sente na obrigação de tocar uma música que lhe está proibida. Rick responde que sim, nada de pior lhe pode acontecer. “Cena 4: Enquanto se ouve As Time Goes By, Rick recebe um telefonema e sorri abertamente porque alguém o informa de que o avião onde seguia Ilsa está de regresso a Marrocos. Rick pergunta: — O que é que se passou?”
A hipótese está formulada num romance recentemente editado, um minucioso e envolvente jogo de espelhos entre história vivida e história imaginada. Chama-se Adeus, Casablanca (ed. Guerra e Paz) e tem assinatura de João Céu e Silva, jornalista e colaborador do Diário de Notícias que, metodicamente, aqui prolonga o seu gosto pela investigação literária e histórica.
Entenda-se: as cenas citadas, retiradas de um eventual guião para Casablanca II, não surgem como uma proposta “directa” de quem escreveu o livro. São apontamentos que nos chegam através da personagem de Diana Gellhorn, empenhada numa investigação que lhe permita elaborar um argumento cinematográfico para um estúdio americano, prolongando a odisseia de Ilsa e Rick. Na sua demanda, nos primeiros anos do século XXI, Diana vai encontrar-se com Laura num local de Casablanca que ostenta o mesmo nome do clube noturno gerido por Rick no filme de 1942: Rick’s Café (“Como é que se percebe que, entre 1942 e 2004, ninguém se tenha metido num negócio que só poderia dar certo!?”).
Ponto importante: em 1961, Laura viveu em Casablanca, acompanhando o marido, destacado para uma missão diplomática em Marrocos que, em boa verdade, envolvia uma estratégia de espionagem montada pelo governo de Salazar. Mais ainda: durante esse período, ocorre o desvio de uma avião da TAP em protesto contra a ditadura do Estado Novo, golpe verídico (organizado por Henrique Galvão) que aqui renasce em matéria romanesca, enredando-se com a crise conjugal de Laura e, algumas décadas mais tarde, a investigação cinematográfica de Diana…
Não estamos perante um exemplo da moda das ficções “alternativas” que, em qualquer caso, tem gerado alguns fascinantes objectos literários — penso, por exemplo, nesse livro prodigioso de Philip Roth que é A Conspiração Contra a América (ed. Dom Quixote). O que João Céu e Silva propõe decorre de uma ambivalência de outro teor: Laura é, afinal, uma peça imaginária de uma conjuntura portuguesa muito concreta de que a intensificação da acção repressiva da PIDE e o início da guerra nas “províncias ultramarinas” serão os sinais mais eloquentes.
Assim, a crónica histórica, inerente ao projecto de Adeus, Casablanca, não se esgota na inventariação das principais linhas de força daquela conjuntura e dos seus ecos no tempo presente (do romance). Laura, Diana, o marido de Laura ou os envolvidos no desvio do avião são personagens que, de um modo ou de outro, vivem assombrados por feridas históricas que o seu mútuo afastamento não sarou — nesse labirinto, a própria Diana irá descobrir que não há formas neutras de construir uma narrativa. Há qualquer coisa de cinematográfico nesse ziguezague de factos e imaginações, justificando que se diga que Adeus, Casablanca, não sendo um livro especificamente sobre cinema, possa ser classificado como um romance cinéfilo.

Love Over Gold, 40 anos

Foi no dia 24 de setembro de 1982 que os Dire Straits lançaram o álbum Love Over Gold — faz hoje 40 anos.
Mais do que empolar as clivagens que a banda de Mark Knopfler sempre gerou (who didn't?...), talvez seja interessante evitar a facilidade dos maniqueísmos e escutar os sons de um universo que, em boa verdade, parece definir um capítulo autónomo no interior da própria história da música popular — algures entre a orfandade do rock "progressivo" (adjectivo de eterna e deliciosa ambiguidade) e as derivações mais ou menos jazzísticas comandadas pela guitarra de Knopfler.
Para não nos esquecermos da energia de algumas dessas coisas "antigas", aqui fica o tema Private Investigations, na sua sereníssima encenação kitsch — ou que agora pode parecer kitsch...
 

sexta-feira, setembro 23, 2022

Beth Orton, opus 7

Será para isto que foi inventada a palavra "veterania"? Entenda-se: uma humilde fidelidade às raízes (folk, neste caso, dizem as biografias...), nunca encerrada num método repetitivo ou sistema fechado. Assim é, assim continua a ser, a inglesa Beth Orton, propondo um sétimo álbum de estúdio, Weather Alive, algures entre o confessionalismo e... a dança. Ou a sua imóvel imaginação. A prova: em formato de ambíguo auto-retrato, eis Friday Night.
 

João Botelho
— retrospectiva / entrevista [1/2]

© Paulo Alexandrino/Global Imagens

A primeira longa-metragem de João Botelho, Conversa Acabada, surgiu em 1981. Daí até ao recente Um Filme em Forma de Assim, o cineasta percorreu um caminho em que as formas do cinema nascem, quase sempre, de uma relação criativa com a literatura. Agora que a sua obra pode ser vista em retrospectiva na Cinemateca (até ao final de setembro), revisitamos com ele temas e silêncios da história portuguesa — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (3 setembro), com o título '“Aprendi com o Sr. Pessoa que a minha pátria é a língua portuguesa”'.

A retrospectiva dos teus filmes na Cinemateca tem um título que tu próprio escolheste: “Os filmes são histórias, o cinema é o modo de as filmar” — queres explicar?
Quero, é muito simples. Cito sempre o exemplo da Madame Bovary. Conheço várias adaptações ao cinema do romance de Gustave Flaubert: uma do Renoir, outra do Minnelli, outra ainda do Oliveira (a “Bovary do Douro”, ou seja, Vale Abraão). São filmes maravilhosos e são filmes diferentes, tendo o mesmo texto como ponto de partida. Portanto, o cinema é, não as histórias, mas o modo de filmar as histórias. Gosto do cinema que se distancia das histórias, filtrando-as de maneira diferente.
Hoje em dia, face aos filmes é comum as pessoas citarem imensos pormenores de uma história, sem referir, por exemplo que a certa altura vemos um rosto em grande plano ou um plano geral de uma paisagem...
… ou onde está a câmara, ou que tipo de luz há neste ou naquele espaço. Nos meus filmes, a partir de certa altura, tive o cuidado de mostrar o artifício. Por exemplo, na abertura de Os Maias, tenho o Jorge Vaz de Carvalho — e não é gratuitamente que tenho um cantor de ópera — a ler o início do romance, mostrando atrás dele a parafranélia que vou utilizar no filme: desenhos, guarda-roupa, cabeleiras... Está tudo exposto. Tenho sempre o cuidado de mostrar que aquilo é um espectáculo, tudo o que está no ecrã é falso: já matei uma série de personagens nos meus filmes... e depois tomo café com eles.
É suposto o espectador saber que é um espectáculo?
Sim, e por isso tenho uma enorme inveja da ópera, em que todo o artifício do espectáculo está exposto: podes ter uma senhora de 100 quilos, com 60 anos, a interpretar uma adolescente — se cantar bem, se representar bem, vais às lágrimas! Isso tem-me levado a experimentar coisas como, por exemplo, filmar o canto, não em “playback”, mas em directo.
Foi o que aconteceu na longa-metragem mais recente, Um Filme em Forma de Assim.
Exactamente. A música foi filmada em directo, em planos-sequência — a música não está “por baixo”, passa a ser a matéria mais importante. Isso é uma derivação de uma ideia que em tempos formulei e à qual me mantenho fiel: a palavra como matéria, o texto como personagem.
Já adaptaste, entre outros, Almeida Garrett (Quem És Tu?), Agustina Bessa-Luís (A Corte do Norte), Eça de Queirós (Os Maias) — alguma vez sentiste que o próprio texto resistia à tua vontade de o transformar em coisa cinematográfica?
Sempre, o texto ganha sempre.
Ganha? Em que sentido?
O texto é sempre mais forte que o cinema. A única coisa que eu posso fazer é uma apropriação, uma espécie de violação do próprio texto. Por exemplo, houve quem achasse que, em Os Maias, a minha Maria Eduarda era muito frágil, como se estivessem à espera da Laura Antonelli a fazer uma personagem intensamente sexual. O certo é que, para mim, essa fragilidade era mais violenta, tornando o incesto ainda mais obsceno. Ao mesmo tempo, nos últimos filmes, por exemplo com o texto do Alexandre O’Neill em Um Filme em Forma de Assim, não acrescentei uma palavra — é um trabalho de “corta e cola”...
Há aí um paradoxo: preservas o texto, mas reconheces que aquilo que estás a criar é totalmente outra coisa. O que pode dar origem a outro paradoxo: não receias que os puristas considerem que atraiçoaste o texto?
Não atraiçoei. Cortei e colei, fiz o meu filme. Por exemplo, quando fiz Tempos Difíceis, segundo Charles Dickens, tirei-lhe a carne, ficou o osso: tudo o que era melodrama desapareceu, ficou a luta de classes.
É um trabalho semelhante à montagem?
É igual — aprendi com o Sr. Godard.

Hitchcock em grande plano

James Stewart filmado por Hitchcock:
o grande plano "é como a música"

Quando vemos um rosto em grande plano, algo muda na nossa relação com o ecrã: o cinema descobriu isso muito antes das “selfies” do Instagram — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 agosto).

Um velho e persistente lugar-comum sugere que as imagens de rostos em grande plano são uma marca específica da televisão. Mais ainda: cada vez que um rosto enche o nosso ecrã caseiro, isso significaria que estabelecemos um elo privilegiado de “intimidade” com a pessoa (ou personagem) representada.
Alfred Hitchcock
Além de dispensar qualquer reflexão sobre cada contexto de comunicação, tal caracterização reflecte uma cândida ignorância da história do cinema, dos pioneiros do mudo, há mais de um século, até à nossa actualidade — de David W. Griffith a David Lynch ou Martin Scorsese. Mas não há dúvida que a celebração dos grandes planos televisivos é sintomática de uma convenção de linguagem que aplicamos de modo mecânico, ao mesmo tempo que a vamos mantendo afastada do nosso pensamento. Que convenção é essa? Pois bem, a que resulta da associação do grande plano ao olhar directo (entenda-se: directamente para nós) da pessoa televisiva que surge no ecrã — aceitamos e, num certo sentido, agradecemos que essa pessoa esteja a falar para nós quando, de facto, não só não nos vê como está “apenas” a contemplar o olho frio de uma câmara.
Como é óbvio, não se trata de classificar quem está no ecrã em função de uma oposição simplista de “verdade” e “mentira”. As considerações do parágrafo anterior são apenas evidências de La Palice que nos podem ajudar a perceber a desvalorização, ou melhor, o esvaziamento dos olhares em que todos os dias, melhor ou pior, desempenhamos os papéis de espectadores ou agentes do espectáculo.
Basta observarmos 99,9% dos videos que cidadãos comuns (qualquer um de nós…) colocam no YouTube ou muitas das “selfies” do Instagram. Que acontece? Alguém se expõe em grande plano, olhando para quem está do lado de cá (eu, tu, ele…), utilizando o olhar como se fosse um instrumento automático, porventura neutro, de transmissão, sem sobressaltos nem ambiguidades.
Há outra maneira de dizer isto: a maior parte dos olhares que trocamos passou a ser mediada por algum tipo de ecrã. Essa mediação deixou de ser pensada como sistema que condiciona quase todas as relações humanas, para passar a ser reconhecida — e, mais do que isso, aplicada — como elemento “natural” dessas mesmas relações. Em boa verdade, a proliferação de comunicações Zoom ou Skype, favorecida pelo contexto pandémico, não passou do reforço de um modelo de relação consolidado ao logo de algumas décadas de vida no mundo virtual.
O cinema (enfim, algum cinema…) e a televisão (uma pequena parte) continuam a não desistir de explorar as muitas e fascinantes ambivalências dessa “proximidade” em grande plano que as imagens podem conter. Para ficar por um belíssimo simbolismo feminino, exterior a qualquer militância feminista, lembro dois pares de exemplos que, curiosamente, resultam de adaptações de romances escritos por mulheres. Penso, antes do mais, nos filmes Uma Paixão Simples (2020), de Danielle Arbid, e O Acontecimento (2021), de Audrey Diwan, inspirados nos livros de Annie Ernaux; e depois nas séries Normal People (2020) e Conversations with Friends (2022), a partir de obras de Sally Rooney (os filmes estão nos canais TVCine, as séries na plataforma HBO Max).
A impressionante multiplicação de grandes planos em qualquer desses objectos decorre, afinal, de uma herança que teve em Alfred Hitchcock (1899-1980) um dos seus génios criativos. Num livro de entrevistas com grandes nomes da “idade de ouro” de Hollywood, promovidas pelo American Film Institute (coligidas em 2006 por George Stevens Jr.), Hitchcock lembrava a importância de pensar e aplicar o grande plano, não como uma banal “ampliação” da personagem, como acontece de modo simplista e redundante em qualquer telenovela, mas sim como um elemento narrativo que estabelece algum tipo de relação com o plano que o precede.
Usando uma deliciosa metáfora a propósito da cena da morte do detective (Martin Balsam) em Psico (1960), Hitchcock dizia que o grande plano “é como a música — não vale a pena usar o som vibrante de um instrumento de sopro antes de precisarmos dele.” Trata-se de um metódico jogo de contrastes: “A enorme cabeça [da personagem] não tem impacto, a não ser que o plano anterior tenha sido muito mais distante.”
Por vezes, Hitchcock aplica o seu método a objectos — exemplo emblemático será a carteira de fósforos de Cary Grant em Intriga Internacional (1959). Mas quase sempre trata-se de colocar em cena o rosto humano como uma paisagem de inusitadas, porventura indecifráveis, significações. Lembremos o misto de beleza e nobreza dos olhos azuis de James Stewart, um dos actores “fetiche” de Hitchcock. Numa cena num mercado de rua, em Marraqueche, o actor aproxima-se do homem (Daniel Gélin) que acabou de ser apunhalado nas costas; apesar de agonizante, ele poderá dar-lhe uma informação vital: os olhos de James Stewart envolvem a certeza de que ficou a saber mais do que sabia, mesmo se esse é um saber imperfeito, paradoxal, porventura perigoso — foi em 1956 e o filme chama-se O Homem que Sabia Demais.

quinta-feira, setembro 22, 2022

A IMAGEM: Nicole Tung, 2022

NICOLE TUNG
Shevchenkov / Ucrânia
The New York Times, 2022

O melodrama ainda é o que era

Sasha Lane e Alison Oliver em Conversations with Friends:
a juventude representada para lá dos clichés mediáticos

Duas magníficas séries disponíveis na plataforma HBO Max — Normal People e Conversations with Friends — evocam estilos, histórias e personagens do cinema clássico: na sua origem estão os romances homónimos da irlandesa Sally Rooney — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 agosto).

No meio do ruído circundante de aventuras mais ou menos virtuais, em formato de jogo ou filme, continuamos a ser (des)educados para encarar a palavra “melodrama” como uma curiosidade pitoresca e dispensável, ou mesmo um disparate de tempos antigos. E, no entanto, a ironia aí está: quem olhar com alguma atenção e disponibilidade para as zonas menos óbvias do império televisivo, incluindo as suas ramificações em “streaming”, poderá encontrar vários legítimos e talentosos herdeiros da grande tradição melodramática. É o caso das mini-séries Normal People e Conversations with Friends (disponíveis na plataforma HBO Max), ambas com doze episódios de meia hora.
O que une estas duas produções é, antes do mais, a sua inspiração literária: ambas resultam de adaptações de romances da irlandesa Sally Rooney (o primeiro está editado entre nós, pela Relógio D’Água, com o título Pessoas Normais). São produções com chancela da BBC 3, associada a uma televisão irlandesa (RTÉ One) e a um serviço de streaming dos EUA (Hulu).
O melodrama, entenda-se, está longe de se reduzir a qualquer noção banalmente sentimental, ainda que não possamos esquecer a sua histórica ambivalência: tempos houve em que a palavra “sentimento” sugeria alguma proximidade com os segredos mais fascinantes do comportamento humano (da nossa alma, diziam os mais empenhados); hoje em dia, tristemente, no nosso mundo de ligações aceleradas, tudo isso tem fraca cotação mediática.

Elogio dos actores

Pois bem, vale a pena pararmos para olhar à nossa volta. Ou, pelo menos, prestar um mínimo de atenção aos espantosos actores que podemos encontrar nestas duas ficções. Sim, porque a verdade interior do melodrama tem sempre que ver com os seus intérpretes, mais exactamente com o misto de intensidade e vulnerabilidade com que sabem representar as infinitas nuances das relações humanas. Para nos ficarmos pela inspiração dos clássicos, lembremos o cinema do americano Elia Kazan ou do francês François Truffaut — e recordemos filmes tão especiais como Esplendor na Relva (1961), do primeiro, ou A Sereia do Mississipi (1969), do segundo.
Normal People apresenta Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal como estudantes de uma escola secundária de Sligo, pequena cidade costeira no no norte da Irlanda — segundo o censo de 2016, tinha 20 mil habitantes. Por eles passam as convulsões de um amor de paradoxal vibração, sistematicamente posto em causa pela própria transparência moral que o fundamenta.
Aspecto nada secundário é a delicada encenação das muitas cenas de sexo que a série integra. Valeria a pena compreender (e, se não for pedir muito, sentir) que, ao contrário do que está consagrado no imaginário das telenovelas, a intensidade dessas cenas não decorre dos centímetros de pele nua que são mostrados ao espectador. Nelas encontrarmos, não uma performance pueril, mais ou menos acrobática, mas sim pessoas vivas habitadas por uma intermitência de prazer e angústia, revelação e ocultação.
Em Conversations with Friends, as personagens centrais, interpretadas por Alison Oliver e Sasha Lane, são duas amigas estudantes de Dublin. Toda a sua existência — da relação que mantêm até à percepção dos outros — vai ser transfigurada por um casal um pouco mais velho (uma poetisa e um actor). No labirinto que assim se instala, a banalidade eventualmente associada ao próprio título é desmentida pela própria acção: as “conversas entre amigos” estão longe de ser a mera expressão de uma amizade consolidada ou de um qualquer impulso amoroso… Conversar é, em última instância, refazer os equilíbrios e desequilíbrios do mundo, numa dinâmica, sensual e filosófica, em que as palavras podem ser tão radicais, e também tão enigmáticas, como os corpos que se tocam.

Redescobrir a juventude

Ligado a ambas as séries surge o nome de Lenny Abrahamson, cineasta irlandês que conhecemos, em particular, através de dois filmes verdadeiramente invulgares: Frank (2014), com Michael Fassbender, e Quarto (2015), com Brie Larson no papel que lhe valeu o Oscar de melhor actriz. Em Normal People, cujo lançamento ocorreu em 2020, Abrahamson reparte a realização dos episódios com Hettie Macdonald; em Conversations with Friends, já com data deste ano, o trabalho é dividido com Leanne Welham.
A energia melodramática de ambas as produções é tanto mais surpreendente quanto o domínio das séries, em especial na imensa e poderosa galáxia do “streaming”, está dominado por projectos bem diferentes — ou talvez devamos dizer que esse domínio, sendo industrial, é todos os dias sustentado por um marketing que pouco ou nada se interessa por produtos como Normal People e Conversations with Friends.
A sua filiação na história e no património narrativo do melodrama possui uma dimensão genuinamente universal — para nos ficarmos pelo domínio britânico, lembremos apenas nomes de realizadores como Michael Powell, David Lean, Stephen Frears, Terence Davies ou mesmo esse inclassificável autor “melodramático” que é Peter Greenaway. No caso particular destas narrativas, com um complemento que está longe de ser indiferente. A saber: a recusa dos clichés (cinematográficos e televisivos) de representação das personagens mais jovens.
Assim, não encontramos aqui a “juventude” reduzida a uma espécie de ilha existencial, alheia às atribulações do resto do mundo. E não deixa de ser significativo que, tal como na escrita de Sally Rooney, todos os dados existenciais — da vida sexual às diferenças de estatuto social, passando pelo valor prático e simbólico do dinheiro —, tudo se contamine e enrede. A certa altura, em Normal People, Connell (a personagem interpretada por Paul Mescal), escreve estas palavras de amarga e luminosa poesia: “Para mim, é estranho que os animais fiquem parados porque parecem tão inteligentes. Mas isso é, talvez, porque associo a pausa ao pensamento.”

terça-feira, setembro 20, 2022

O Jovem Cunhal
— para lá da ficção e do documentário

Subitamente, em tempos de banalização mediática da juventude, a palavra “jovem” recupera uma emoção antiga. O filme O Jovem Cunhal, de João Botelho, não é uma evocação enciclopédica de Álvaro Cunhal (1913-2005), muito menos uma “profecia” dos tempos que estavam por vir. Acompanhamos dois actores/narradores (João Pedro Vaz, Margarida Vila-Nova) que nos fazem ver que a história existe como uma obstinada revisitação e reinvenção das suas narrativas.
A resistência de Cunhal ao salazarismo leva Botelho a redescobrir a vibração humanista do cinema: “Encontrar o modo certo de filmar o percurso de um jovem complexo e corajoso foi tão difícil como fascinante. Para mim, não há documentários nem ficções, há cinema. E o cinema pode nestes tempos de perigos e ameaças ajudar as pessoas a serem mais corajosas e mais humanas.”
Não sendo objecto de uma estreia convencional, O Jovem Cunhal já teve sessões em vários locais, nomeadamente em Loulé (Cineteatro Louletano) e Lisboa (Nimas), em ambos os casos com a presença do realizador. Será também apresentado na Cinemateca (dia 30, 19h00) na sessão de encerramento da actual retrospectiva de João Botelho.

domingo, setembro 18, 2022

Brasil na FNAC — imagens e sons

O rosto de Othon Bastos no clássico de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) serviu de "emblema" para a nossa sessão na FNAC dedicada ao Brasil (dia 17). Aqui ficam alguns dos videos que pontuaram a sessão:
— Chico Buarque, Fado Tropical (filme para TV Uma Palavra, 2006);
— Carlos Diegues, abertura do filme A Grande Cidade (1966);
— Marisa Monte, Beija Eu (álbum Mais, 1991).





sábado, setembro 17, 2022

Para Godard a guerra acabou

Godard filmado por Godard em Atenção à Direita (1987)

Dos tempos heróicos da Nova Vaga francesa até à sábia integração de técnicas e linguagens da televisão, Jean-Luc Godard é um dos nomes maiores da história moderna do cinema: faleceu em Rolle, na Suíça, aos 91 anos de idade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 setembro).

O cineasta que em 2014 deu ao seu filme em 3D o título Adeus à Linguagem disse adeus à vida aos 91 anos: Jean-Luc Godard faleceu no dia 13 de setembro em sua casa, na vila suíça de Rolle, nas margens do Lago Léman.
Nascido em Paris, a 30 de dezembro de 1930, o autor de títulos lendários da Nova Vaga francesa como O Acossado (1959), O Desprezo (1963) ou Pedro, o Louco (1965) optou por um processo de morte assistida, prática cuja possibilidade está enquadrada pelo sistema de leis da Suíça. Segundo o jornal Libération, a notícia foi divulgada pela cineasta Anne-Marie Miéville, sua mulher, e outros familiares de Godard, acrescentando que “faleceu pacificamente em sua casa, rodeado pelos seus próximos.” Um amigo da família declarou que esta “era a sua decisão e era importante para ele que se soubesse.”
Em 2014, numa emissão da RTS (Rádio Televisão Suíça), a propósito da passagem de Adeus à Linguagem na competição do Festival de Cannes, Godard fora questionado sobre o legado que seria o seu “para além da morte”, considerando que a questão não se poderia colocar apenas em função da vontade de “morrer o mais tarde possível”. O moderador da conversa contrapôs que, por certo, ele “não tinha pressa de morrer”, tendo obtido esta resposta: “Não me sinto ansioso por continuar a qualquer preço. Se estiver demasiado doente, não tenho qualquer desejo de andar empurrado num carrinho… De maneira nenhuma.”

Nova Vaga & etc.

Talvez se possa dizer que, não apenas Godard, mas os autores da geração que com ele definiram os caminhos e valores da Nova Vaga — François Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Rivette, etc. — nasceram para o cinema num labirinto paradoxal, pontuado pelas sombras históricas da morte e pelo desejo radical de novos modos de viver o cinema, com o cinema e para o cinema.
A morte significava, neste caso, antes de tudo o mais, a trágica herança da Segunda Guerra Mundial e dos crimes do Holocausto. Não por acaso, a questão da representação desses crimes vai pontuando, de forma directa ou implícita, a obra de Godard, acabando por adquirir uma importância decisiva na última parte desse monumental filme/video que é História(s) do Cinema (1989-1999). Numa emissão radiofónica da France Culture, em 2016, em diálogo com o escritor e cineasta Noël Simsolo, Godard sublinhava mesmo aquilo que considerava como uma escassez de filmes capazes de lidar com tal herança, citando as excepções de Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, e Noite e Nevoeiro (1956), de Alain Resnais.
Para os protagonistas da Nova Vaga, a energia vital provinha da tenacidade com que defendiam, nomeadamente na revista Cahiers du Cinéma, os grandes criadores do cinema clássico, por vezes os mais menosprezados (Howard Hawks, Alfred Hitchcock, etc.), apostando na possibilidade de uma genuína revolução de linguagens. No caso de Godard, esse foi um processo vivido de modo cada vez mais dramático — porque mais severo em relação aos valores da “sociedade de consumo” —, desembocando num violento cepticismo social. Veja-se e reveja-se o apocalipse conjugal e familiar de Fim de Semana, ou o retrato, entre didactismo e burlesco, dos estudantes maoístas em La Chinoise.
O desencanto visceral destes títulos, ambos de 1967, valeram-lhes o rótulo de objectos “premonitórios” de Maio de 68. Será um exagero simbólico — Godard sempre escolheu o presente contra qualquer pretensão “profética” —, mas é um facto que se seguiu uma “fase militante” em que as convulsões políticas do mundo (das heranças marxistas à Guerra do Vietname) encontraram ecos vários em títulos como One + One (1968), tendo como ponto de partida os Rolling Stones e as gravações do álbum Beggars Banquet, ou Le Gai Savoir (1969), inspirado no Émile, de Rousseau.
Essa digressão “militante” gerou títulos pedagógicos como Lotte in Italia (1969) ou Vladimir et Rosa (1971), mas foi vivida com crescente desilusão, já que várias estações de televisão que financiaram os filmes não os quiseram difundir. Efeito prático: um regresso crítico à grande indústria com Tudo Vai Bem (1972). Dominado pela presença de duas estrelas — Yves Montand e Jane Fonda —, o filme tem um lugar decisivo nas transformações temáticas e estéticas de Godard, até porque seria a partir daí que, por novo e fascinante paradoxo, ele começa a usar as novíssimas câmaras de video: Número Dois (1975), sobre a desagregação do espaço familiar e o poder crescente da televisão, foi a “bandeira” desse processo.

Televisão, meu amor

Salve-se quem Puder (1980) emerge, assim, como um momento decisivo, não apenas na evolução do seu realizador, mas para toda a história do cinema nas décadas finais do século XX. Aí encontramos o gosto de integrar formas de manipulação técnica das imagens que, ironicamente ou não, provêm do espaço televisivo, ao mesmo tempo que uma metódica contemplação da decomposição das relações humanas, porventura ansiando por algum resgate de natureza metafísica.
Paixão (1982), Nome: Carmen (1983), Eu Vos Saúdo, Maria (1985) ou Atenção à Direita (1987) são alguns dos capítulos emblemáticos dessa fase, com Godard, em alguns deles, em tom de calculada ironia, a assumir também funções de actor secundário. O desenlace de tudo isso tem o título, naturalmente ambíguo, de Nouvelle Vague (1990), numa espécie de espelho de um romantismo para sempre perdido, ainda que dolorosamente “reinventado” através do par formado por Alain Delon e Domiziana Giordano (a actriz italiana que Andrei Tarkovski revelara, em 1983, no seu Nostalgia).
Os trabalhos finais de Godard — Filme Socialismo (2010), o já citado Adeus à Linguagem e O Livro de Imagem (2018) — exprimem o fulgor de um artista liberto de todas as barreiras de “estilo” ou “género”, continuando a aplicar com alegria algumas alternativas técnicas ligadas ao espaço televisivo. Godard protagonizou, assim, uma verdadeira guerra de linguagens que faz dele um dos poucos a revolucionar a história da própria televisão. Resta saber o que podemos, ou sabemos, fazer com a sua herança.