sábado, setembro 24, 2022

Casablanca aqui tão perto

Humphrey Bogart e Ingrid Bergman
na despedida que encerra o filme Casablanca

O filme clássico de 1942 inspira um romance de João Céu e Silva assombrado por factos, e também por algumas feridas, da história de Portugal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 setembro).

Eis uma cena que todos os cinéfilos conhecem, gostam de citar e escalpelizar. É no final do clássico Casablanca (1942), de Michael Curtiz: Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, aliás, Ilsa Lund e Rick Blaine despedem-se no aeroporto daquela cidade marroquina. No desenlace de uma aventura romântica iniciada alguns anos antes em Paris, agora dramaticamente transfigurada pelas convulsões da Segunda Guerra Mundial, ela vai sair de Casablanca com o marido, Victor Laszlo (interpretado por Paul Henreid), líder da resistência checa perseguido pelos alemães. O seu destino: Lisboa, capital de um país que manteve a sua neutralidade.
Será possível prolongar este desenlace num novo filme, algo como um Casablanca II? Uma sugestiva hipótese poderá começar assim:
“Cena 1: Ilsa Lund e Rick Blaine despedem-se no Aeroporto de Casablanca.
“Cena 2: O avião parte em direcção a Lisboa e está confirmada a separação definitiva dos dois amantes.
“Cena 3: Rick está de volta ao seu bar. Encostado ao balcão, pede uma bebida. O pianista aproxima-se e informa-o de que se sente na obrigação de tocar uma música que lhe está proibida. Rick responde que sim, nada de pior lhe pode acontecer. “Cena 4: Enquanto se ouve As Time Goes By, Rick recebe um telefonema e sorri abertamente porque alguém o informa de que o avião onde seguia Ilsa está de regresso a Marrocos. Rick pergunta: — O que é que se passou?”
A hipótese está formulada num romance recentemente editado, um minucioso e envolvente jogo de espelhos entre história vivida e história imaginada. Chama-se Adeus, Casablanca (ed. Guerra e Paz) e tem assinatura de João Céu e Silva, jornalista e colaborador do Diário de Notícias que, metodicamente, aqui prolonga o seu gosto pela investigação literária e histórica.
Entenda-se: as cenas citadas, retiradas de um eventual guião para Casablanca II, não surgem como uma proposta “directa” de quem escreveu o livro. São apontamentos que nos chegam através da personagem de Diana Gellhorn, empenhada numa investigação que lhe permita elaborar um argumento cinematográfico para um estúdio americano, prolongando a odisseia de Ilsa e Rick. Na sua demanda, nos primeiros anos do século XXI, Diana vai encontrar-se com Laura num local de Casablanca que ostenta o mesmo nome do clube noturno gerido por Rick no filme de 1942: Rick’s Café (“Como é que se percebe que, entre 1942 e 2004, ninguém se tenha metido num negócio que só poderia dar certo!?”).
Ponto importante: em 1961, Laura viveu em Casablanca, acompanhando o marido, destacado para uma missão diplomática em Marrocos que, em boa verdade, envolvia uma estratégia de espionagem montada pelo governo de Salazar. Mais ainda: durante esse período, ocorre o desvio de uma avião da TAP em protesto contra a ditadura do Estado Novo, golpe verídico (organizado por Henrique Galvão) que aqui renasce em matéria romanesca, enredando-se com a crise conjugal de Laura e, algumas décadas mais tarde, a investigação cinematográfica de Diana…
Não estamos perante um exemplo da moda das ficções “alternativas” que, em qualquer caso, tem gerado alguns fascinantes objectos literários — penso, por exemplo, nesse livro prodigioso de Philip Roth que é A Conspiração Contra a América (ed. Dom Quixote). O que João Céu e Silva propõe decorre de uma ambivalência de outro teor: Laura é, afinal, uma peça imaginária de uma conjuntura portuguesa muito concreta de que a intensificação da acção repressiva da PIDE e o início da guerra nas “províncias ultramarinas” serão os sinais mais eloquentes.
Assim, a crónica histórica, inerente ao projecto de Adeus, Casablanca, não se esgota na inventariação das principais linhas de força daquela conjuntura e dos seus ecos no tempo presente (do romance). Laura, Diana, o marido de Laura ou os envolvidos no desvio do avião são personagens que, de um modo ou de outro, vivem assombrados por feridas históricas que o seu mútuo afastamento não sarou — nesse labirinto, a própria Diana irá descobrir que não há formas neutras de construir uma narrativa. Há qualquer coisa de cinematográfico nesse ziguezague de factos e imaginações, justificando que se diga que Adeus, Casablanca, não sendo um livro especificamente sobre cinema, possa ser classificado como um romance cinéfilo.