Foi há 50 anos que os Rolling Stones lançaram o seu álbum Beggars Banquet... e Jean-Luc Godard estava lá para os filmar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Dezembro), com o título 'O “Diabo” dos Rolling Stones já tem 50 anos'.
Uma das grandes efemérides musicais deste final de ano é o cinquentenário do álbum Beggars Banquet, dos Rolling Stones (tendo, aliás, surgido no mercado uma edição comemorativa). Lançado a 6 de Dezembro de 1968, entrou para a história como um retorno da banda de Mick Jagger e Keith Richards aos valores mais primitivos do rock, depois das derivações psicadélicas que tinham marcado o registo anterior, Their Satanic Majesties Request (1967).
Quase sempre esquecido é o facto de existir um filme sobre as sessões de gravação de Beggars Banquet, peça central na estética e no imaginário político de finais da atribulada década de 60. Chama-se One Plus One e corresponde a uma das primeiras derivações experimentais de Jean-Luc Godard na ressaca de Maio de 68. Mais exactamente, Godard esteve em Londres, nos Olympic Sound Studios, registando, em particular, os ensaios daquela que viria a ser a faixa nº 1 do disco, transformando-se numa das canções mais emblemáticas dos Stones, com Jagger a encarnar um “Diabo” em pose cavalheiresca: Sympathy for the Devil.
O filme possui um precioso valor de testemunho. Nele encontramos, de facto, algumas das derradeiras imagens de Brian Jones, que viria a falecer a 3 de Julho de 1969, contava 27 anos (Bill Wyman e Charlie Watts completavam, na altura, a formação da banda). Mais do que isso: em vez de fazer um registo mais ou menos apologético e decorativista das suas “vedetas”, Godard encara os Stones através de uma das fundamentais linhas de força de todo o seu universo criativo. A saber: os gestos do trabalho.
Brian Jones + Keith Richards + Mick Jagger |
One plus One apresenta-se, assim, como um registo do trabalho através do qual nasce uma canção. Para Godard, tal registo correspondia também à possibilidade de reagir ao desencanto gerado por Maio, recomeçando a partir do zero (o título original sugere mesmo o arranque de uma nova aritmética artística: “um mais um”).
Assim, as cenas documentais vão alternando com momentos fortemente teatralizados em que são tratados temas quentes da época, desde as guerrilhas armadas até à proliferação de uma sub-cultura de banda desenhada e livros policiais mais ou menos “eróticos”. Por vezes, as referências do presente surgem transfiguradas através de elementos de bizarro simbolismo — num dos quadros do filme, Anne Wiazemsky (então casada com Godard) surge a interpretar uma personagem que tem algo de oráculo primitivo, sendo o seu nome “Eva Democracia”.
Num tempo como o nosso em que as imagens das actividades políticas surgem tantas vezes formatadas pela “aceleração” televisiva, ou reduzidas à vertigem fácil de muitos directos, One Plus One permanece como um exemplar exercício pedagógico: conhecer o mundo através das imagens é (também) discutir a sua ilusória transparência.
Para a história, registe-se o conflito que sempre acompanhou o título deste filme: nos circuitos internacionais passou a ser designado como Sympathy for the Devil, mas Godard nunca abdicou de o considerar o seu One plus One.