Para Jean-Luc Godard, o mundo em que vivemos tem SMS a mais e comunicação a menos: o seu filme Adeus à Linguagem é um produto directo dessa tragédia das imagens e dos sons — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 janeiro), com o título 'O pintor, o cineasta, a sua televisão e o fantasma dela'.
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Há no olhar de Godard componentes que poderemos aproximar de uma certa lógica jornalística. Obcecado pelas convulsões de qualquer tempo presente — desde as marcas contraditórias de Maio 68 até, em tempos mais próximos, à decomposição simbólica da identidade europeia —, ele é um “repórter cinematográfico” que se obriga, não apenas a relatar o que está a acontecer, mas sobretudo a cumprir o que se afigura sempre deontologicamente mais difícil. Que é como quem diz: compreender como está a acontecer.
Nesta perspectiva, podemos considerar o trabalho do cineasta como uma derivação da arte dos pintores — e escusado será sublinhar que, de Velazquez a Picasso, passando por Rembrandt, Van Gogh ou Renoir, o património pictórico encontra um importante lugar, figurativo e simbólico, no interior de muitas das suas narrativas. Tal como acontece em Adeus à Linguagem, o tratamento da paisagem (também no sentido urbano da palavra) parece corresponder aos esboços do bloco-notas de alguém que, com a ansiedade de ver e compreender que define o verdadeiro repórter, já não se exprime através de uma tela e dos seus pincéis, mas usando uma câmara.
Godard é, assim, conduzido a uma deambulação que envolve uma dimensão auto-biográfica. Não no sentido de contar a história da sua vida, mas sim de dar a ver o lugar onde vive. Literalmente: há vários anos que os seus filmes integram muitas imagens da sua zona da Suíça (Rolle, nas imediações do Lago Léman), por vezes revelando os aspectos mais inusitados do seu quotidiano. Em várias cenas de Adeus à Linguagem, o cão de Godard, de nome Roxy, é mesmo a personagem central, ilustrando uma máxima formulada por Buffon, no séc. XVIII, citada por Darwin: “O cão é o único animal na Terra que nos ama mais do que se ama a si próprio”.
Curiosamente, nos últimos tempos, tudo isto se cruza com a progressiva integração de técnicas de vídeo, como se Godard tivesse inventado uma televisão que vive assombrada pelo fantasma da globalização de imagens e sons. Aliás, Adeus à Linguagem utiliza muitos fragmentos de registo “caseiro”, nomeadamente com telemóveis. Daí que o possamos descrever também como um home movie em que assistimos à interrogação do nosso viver quotidiano saturado de SMS e outras mensagens, mas tão carente de comunicação.