segunda-feira, abril 07, 2014

No centenário de Duras (3/3)

4 de Abril de 2014: Marguerite Duras nasceu há exactamente um século, em Saigão, na então Indochina francesa. A sua obra literária, imensa e obsessiva, existe também como uma ante-câmara do seu trabalho cinematográfico — este texto foi publicado no suplemento "Qi", do Diário de Notícias (29 Março), com o título 'A mulher que viu tudo'.

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Poucos anos mais tarde, em 1980, Jean-Luc Godard (3) convidou Duras para participar, ao lado de Jacques Dutronc, numa sequência do seu filme Sauve Qui Peut (La Vie), entre nós conhecido como Salve-se Quem Puder. Por circunstâncias vagas (que, em todo o caso, o filme não esclarece), Duras aceitou o convite mas, depois, não apareceu nas filmagens. Godard constrói, então, uma cena, numa sala de aula, em que Dutronc, cineasta convidado para falar aos alunos, lê estas palavras de Duras: “Faço filmes para ocupar o meu tempo. Se tivesse a força para nada fazer, nada faria. É porque não tenho a força para nada fazer que faço filmes, e é essa a única razão — eis a coisa mais verdadeira que consigo dizer sobre o meu trabalho.”
O que se desvanece, assim, é a própria noção de autor: Duras coloca-se na posição, não de quem faz filmes, mas sim de quem utiliza o cinema como pontuação da dificuldade de dizer o mundo, ou melhor, de o habitar dizendo o que nele ocorre — em boa verdade, em Le Camion, é essa desencantada obstinação que ela devolve ao seu ouvinte, o desamparado Depardieu, mostrando-lhe e mostrando-nos que o cinema acontece apesar da nossa impotência para, com ele, resgatarmos as fronteiras do real. No final da cena “falhada” de Sauve Qui Peut (La Vie), Godard coloca estas palavras na boca de Dutronc: “Cada vez que virem passar um camião, pensem que se trata de uma palavra de mulher que está a passar.”
No seu derradeiro filme, Les Enfants, lançado no mesmo ano (1985) do livro A Dor, Duras legou-nos uma irónica parábola sobre estes ziguezagues do conhecimento e desconhecimento, encenando Ernesto, uma criança de sete anos, através de Axel Bogousslavsky, um actor de trinta. Ele é protagonista de uma resistência de poética insensatez: não quer que lhe ensinem coisas que ele não sabe...
No plano específico do trabalho — da escrita e do cinema —, a postura de Ernesto talvez se possa resumir através de um princípio ético que, hoje em dia, nas nossas sociedades intoxicadas pela “transparência” televisiva, envolve qualquer coisa de escândalo contra o bem comum: o poder da linguagem não é o de transcrever o mundo, mas sim o de diversificar e ampliar as forças de significação que nele pressentimos. De acordo com uma lei cruel, mas essencial: a pluralidade da significação é o contrário da ditadura do sentido. Godard, ainda ele, o disse no seu filme Duas ou Três Coisas Sobre Ela (1967): “(...) os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.”
India Song representa, de alguma maneira, a súmula de tudo isso na obra de Duras. Escrito em 1972, a pedido de Peter Hall, na altura director do National Theatre (Londres), começou por existir como texto teatral (ed. Quetzal). A autora define-o como “ a história de um amor vivido nas Índias, nos anos 30, numa cidade superpovoada das margens do Ganges.” Ao transformá-lo em filme, em 1975, Duras terá querido extrapolar ao máximo a violência romântica do amor protagonizado por Anne.Marie Stretter (Delphine Seyrig), a mulher do embaixador de França — India Song, objecto de cinema, entrega-se ao teatro como se este fosse uma virose formal, gerando um espaço/tempo em que todas as coordenadas se reconvertem em direcção a um ponto de fuga que, em última instância, é o próprio desejo do espectador fascinado ou perdido (vai dar ao mesmo) pelo enigma nunca esgotado da paixão humana.
Nas suas indicações para a encenação Peter Hall, Duras fala de vozes “sem rosto”, sublinhando que “não se sabe, em nenhum momento, quem são essas vozes”. Terá sido essa procura de um sistema coral arquitectado por vozes sem corpos que a levou a filmar India Song duas vezes, ou melhor, a fazer dois filmes com o mesmo texto: Son Non de Venise dans Calcutta Désert (1976) retoma o texto — isto é, as vozes —, expondo-nos agora a uma galeria de cenários de estranha quietude, sem actores, onde podemos pressentir o desgaste da própria história que se conta, transferindo-se da memória dos corpos para a pura imaterialidade dos desejos. Talvez que o cinema tenha servido a Duras para concretizar o desejo de ver aquilo a sua escrita queria transportar e, num certo sentido, possuir. Ou seja: tudo.
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(3) JEAN-LUC GODARD (n. 1930) – Nome central na dinâmica da Nova Vaga francesa, estreou-se na longa-metragem com O Acossado (1959), é um dos grandes experimentadores das linguagens cinematográficas. Entre os seus trabalhos mais recentes, incluem-se A Nossa Música (2004) e Filme Socialismo (2010).