quarta-feira, janeiro 01, 2014

"Weekend"/Godard em 2013

Nas memórias cinéfilas de 2013, a edição do lendário Weekend (1967), de Jean-Luc Godard, ficou como momento marcante no mercado do DVD — este texto foi publicado na edição de balanço do ano do suplemento "QI", do Diário de Notícias (21 Dezembro), com o título 'Entre o cosmos e o ferro-velho'.

Por vezes, o filme Fim de Semana, de Jean-Luc Godard, é citado como um objecto revelador da crise de Maio 68 que abalou a França. Estão lá as marcas de uma notória crise civilizacional: o consumismo desenfreado, a decomposição cultural da classe média, enfim, o esvaziamento afectivo das relações humanas.
Que Fim de Semana tenha reaparecido em DVD (Films4You), eis uma ironia que os mais perversos avaliarão, talvez, como um comentário ambíguo aos nossos tempos difíceis. Seja como for, vale a pena lembrar que a própria caracterização do filme como painel crítico de Maio 68 carece de pertinência... cronológica. De facto, a sua estreia em Paris ocorreu a 29 de Dezembro de 1967, o que lhe confere uma perturbante energia premonitória – Godard filmava o weekend de um típico casal parisiense (Jean Yanne/Mireille Darc), deparando com a monstruosidade de uma existência desbaratada entre os gadgets da sociedade de consumo e a mais radical incapacidade de qualquer gesto genuinamente amoroso.
Nada disso era novo na metodologia com que Godard observava a sociedade francesa. 2 ou 3 Coisas sobre Ela (1966) já fizera o retrato real e surreal das famílias dos novos agregados suburbanos, enquanto La Chinoise (1967) propunha uma visão terna e cruel do quotidiano dos jovens “maoístas”. A sensação de estarmos perante um universo à deriva, sintoma de uma sociedade carente de valores, começa na emblemática legenda de abertura de Fim de Semana: “Um filme perdido no cosmos”. Depois, em poucos segundos, percebemos que há uma casal, um adultério e uma família minada pelo ódio, para outra legenda nos informar: “Um filme encontrado no ferro-velho”.
Que se passa entre uma coisa e outra? Pois bem, a hipótese desesperada, mas pedagógica, de aplicar o cinema como um derradeiro instrumento de olhar e pensar, capaz de resistir à formatação dos discursos dominantes, emergindo a publicidade como o modelo mais sistemático de normalização de ideias e comportamentos.
Há, assim, uma fúria apocalíptica que perpassa em todos os elementos de Fim de Semana (lembremos o célebre plano de um engarrafamento monstruoso, desembocando num acidente brutal). Para Godard, tratava-se também de colocar um ponto final na lógica experimental em que existira a Nova Vaga. A partir daí, na sua “fase militante”, começaria o inventário de temas e traumas de uma Europa confrontada com um outro apocalipse: o das ideologias que, para o melhor e para o pior, tinham desenhado o mapa das ilusões e desilusões do nosso século XX.