O Livro de Imagem |
Grande acontecimento cinéfilo: a estreia do mais recente filme de Jean-Luc Godard, O Livro de Imagem, acontece em paralelo com a reposição de dois dos seus clássicos dos tempos da Nova Vaga — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Novembro).
Digamos, para simplificar, que O Livro de Imagem, de Jean-Luc Godard, não se parece com nenhum outro filme que o leitor/espectador possa encontrar entre as estreias deste ano. Talvez com a excepção de O Outro Lado do Vento, obra póstuma de Orson Welles que a Netflix está a difundir. Em ambos os casos, sentimos a vertigem e o prazer de uma experiência cinematográfica que se afasta de todos os cânones de consumo, desafiando mesmo as matrizes clássicas da própria história do cinema.
Dizer que estamos perante um objecto experimental é quase uma redundância. De facto, só mesmo o cinéfilo mais distraído (ou apenas desinteressado) ignorará que, desde os tempos heróicos da Nova Vaga, Godard é alguém que pratica um cinema de reinvenção de linguagens que, precisamente, porque sabe reinventar, nunca menospreza o pedagógico culto da memória — recordemos a sua primeira longa-metragem, O Acossado (1959), uma aventura parisiense em que Jean-Paul Belmondo vivia a ironia, plena de angústia, de não poder duplicar a mitologia de Humphrey Bogart.
Em boa verdade, O Livro de Imagem surge como um capítulo mais numa trajectória que Godard iniciou em 1988, com a produção das suas monumentais História(s) do Cinema, concluídas uma década mais tarde. Trata-se de aplicar as técnicas videográficas de integração e manipulação das imagens (e sons) para construir narrativas que são reflexões sobre o nosso presente, sempre ancoradas no passado que os filmes transportam e, de alguma maneira, actualizam.
Regressam, assim, os temas obsessivos que pontuam décadas do seu trabalho. A saber: a herança do século XX do Holocausto, o triunfo da sociedade como comunidade de consumidores, enfim, o apagamento da memória dos clássicos (filmes, livros, etc.) face ao triunfo de uma cultura da gratificação imediata.
Um velho cliché preconceituoso tenta promover a ideia segundo a qual, no seu experimentalismo, o labor criativo de Godard não passa de um sistema de elucubrações abstractas geradas por uma mente desligada do mundo. Em boa verdade, é o contrário que acontece. Se os filmes de Godard podem ser tão intensos, é porque neles encontramos os sinais mais radicais, e também mais perturbantes, da nossa contemporaneidade.
Para Godard, o espaço cultural em que os filmes surgem nunca se aquieta. É mesmo um espaço em que se trava a mais bela das guerras. A saber: a guerra da cultura. Nela se confrontam, não armas de fogo, mas ideias. Não se trata de fazer vítimas, mas de pensar como vivemos e como queremos viver.
Daí que seja importante sublinhar a possibilidade de ver O Livro de Imagem lado a lado com dois títulos emblemáticos da filmografia godardiana. Assim, em paralelo com esta estreia, o cinema Ideal propõe, em cópias restauradas, o já citado O Acossado e ainda Pedro, o Louco (1965), com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina (sem esquecer que as História(s) do Cinema voltam a estar disponíveis em DVD).
Pedro, o Louco, em particular, é um filme de estranha actualidade, em que contemplamos a decomposição de todas as ilusões românticas. Por vezes, com a ironia de uma canção como Ma Ligne de Chance — Karina e Belmondo parecem os sobreviventes de um musical da MGM.