domingo, setembro 25, 2022

A grande aventura de Can Xue

 


O mínimo que se pode dizer de O Amor no Novo Milénio, romance da chinesa Can Xue (agora editado pela Quetzal, com tradução de Helder Moura Pereira), é que a sua estrutura desafia qualquer descrição. Em boa verdade, porquê e para quê descrever um romance? Não será a sua existência descrição q. b.?
Claro que a identidade da autora não será estranha às singularidades da sua escrita. Como se recorda na nota biográfica que acompanha o livro: "Can Xue, pseudónimo de Deng Xiaohua, nasceu em 1953, na província de Hunan, na China. Os seus pais conheceram as prisões políticas, antes e durante a Revolução Cultural, e Can Xue, que contraiu tuberculose na adolescência, pôde apenas frequentar o ensino fundamental. Descobriu a literatura como autodidata (...)"
Ao mesmo tempo, tais informações, por certo relevantes, não esgotam, nem podem esgotar, a grande aventura da escrita de alguém que aposta, justamente, na metódica decomposição de qualquer forma tradicional de biografia. Como? Testando tal hipótese nas próprias personagens que nos vai apresentando. Como está escrito num dos parágrafos de abertura do primeiro capítulo a propósito das duas primeiras personagens: "Cuilan e Wei Bo conheceram-se há mais ou menos um ano num spa que incluía sexo na sua oferta de serviços."
Dir-se-ia que temos o "essencial": personagens e um contexto. Mas também uma inesperada vacilação das coordenadas temporais: há mais ou menos um ano... Assim, no capítulo 2, cerca de uma centena de páginas mais à frente, o mesmo Wei Bo surge enredado numa incerteza insólita, geográfica e existencial: "Na memória de Wei Bo, a Lua tinha uma luz mais forte do que na cidade e era tão grande como a bacia de cobre para lavar as mãos. A sua terra natal, portanto, era no campo?"
Can Xue
Ainda lá mais para a frente, no capítulo 9, já passadas as três centenas de páginas, Yuan Hei e A Si divagam por uma região sem mapa, denominada "zona franca" (ainda que reconhecendo os pressupostos bem diversos, poderemos pensar nas ambivalências dos cenários de Andrei Tarkovski): "Quando passaram os dois pela porta envidraçada, Yuan Hei ouviu um estrondo semelhante ao de uma bolha que tivesse rebentado. Perguntou a A Si qual a origem daquele barulho. Ela respondeu que eram fragmentos de matéria que andam dispersos no ar e entram por vezes em choque."
A sedução de um certo fantástico, inclassificável segundo os padrões correntes, não será desprezável. Em qualquer caso, nesse processo de contínua fragmentação — que a estrutura narrativa do romance assume como genuíno programa narrativo e simbólico — não pode ser asbstraído das suas vivências muito concretas. São fragmentos de matéria, quer dizer, cenas contrastadas de uma paisagem existencial em que cada humano existe sempre através de um metódico paradoxo: a sua solidão só se pode descrever (aliás, escrever) através das histórias dos outros.
Com calculada contenção, Can Xue vai pontuando O Amor no Novo Milénio com sinais de uma história mais geral que as peripécias individuais ecoam: sentimos e pressentimos a vulnerabilidade das mulheres e dos homens, as ameaças de uma ordem social, talvez política, que parece pairar como um céu plúmbeo, enfim, com desconcertante alegria, deparamos também com a possibilidade do amor no novo milénio. Já perto do final, alguém pergunta: "Porque para fazer parte da História tem de haver consciência disso, não acham?"
Dir-se-ia que o título de um filme clássico do italiano Marco Bellocchio — A China Está Próxima (1967) — poderá condensar a intimidade para que O Amor no Novo Milénio nos convoca. A sua matéria confunde-se com o labor da escrita e o seu discreto esplendor. A certa altura, na pág. 268 da edição portuguesa, alguém pergunta: "Vem dos templos sagrados e está de regresso à revolução, não é verdade, Sr. Dr.?"