sexta-feira, setembro 23, 2022

João Botelho
— retrospectiva / entrevista [1/2]

© Paulo Alexandrino/Global Imagens

A primeira longa-metragem de João Botelho, Conversa Acabada, surgiu em 1981. Daí até ao recente Um Filme em Forma de Assim, o cineasta percorreu um caminho em que as formas do cinema nascem, quase sempre, de uma relação criativa com a literatura. Agora que a sua obra pode ser vista em retrospectiva na Cinemateca (até ao final de setembro), revisitamos com ele temas e silêncios da história portuguesa — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (3 setembro), com o título '“Aprendi com o Sr. Pessoa que a minha pátria é a língua portuguesa”'.

A retrospectiva dos teus filmes na Cinemateca tem um título que tu próprio escolheste: “Os filmes são histórias, o cinema é o modo de as filmar” — queres explicar?
Quero, é muito simples. Cito sempre o exemplo da Madame Bovary. Conheço várias adaptações ao cinema do romance de Gustave Flaubert: uma do Renoir, outra do Minnelli, outra ainda do Oliveira (a “Bovary do Douro”, ou seja, Vale Abraão). São filmes maravilhosos e são filmes diferentes, tendo o mesmo texto como ponto de partida. Portanto, o cinema é, não as histórias, mas o modo de filmar as histórias. Gosto do cinema que se distancia das histórias, filtrando-as de maneira diferente.
Hoje em dia, face aos filmes é comum as pessoas citarem imensos pormenores de uma história, sem referir, por exemplo que a certa altura vemos um rosto em grande plano ou um plano geral de uma paisagem...
… ou onde está a câmara, ou que tipo de luz há neste ou naquele espaço. Nos meus filmes, a partir de certa altura, tive o cuidado de mostrar o artifício. Por exemplo, na abertura de Os Maias, tenho o Jorge Vaz de Carvalho — e não é gratuitamente que tenho um cantor de ópera — a ler o início do romance, mostrando atrás dele a parafranélia que vou utilizar no filme: desenhos, guarda-roupa, cabeleiras... Está tudo exposto. Tenho sempre o cuidado de mostrar que aquilo é um espectáculo, tudo o que está no ecrã é falso: já matei uma série de personagens nos meus filmes... e depois tomo café com eles.
É suposto o espectador saber que é um espectáculo?
Sim, e por isso tenho uma enorme inveja da ópera, em que todo o artifício do espectáculo está exposto: podes ter uma senhora de 100 quilos, com 60 anos, a interpretar uma adolescente — se cantar bem, se representar bem, vais às lágrimas! Isso tem-me levado a experimentar coisas como, por exemplo, filmar o canto, não em “playback”, mas em directo.
Foi o que aconteceu na longa-metragem mais recente, Um Filme em Forma de Assim.
Exactamente. A música foi filmada em directo, em planos-sequência — a música não está “por baixo”, passa a ser a matéria mais importante. Isso é uma derivação de uma ideia que em tempos formulei e à qual me mantenho fiel: a palavra como matéria, o texto como personagem.
Já adaptaste, entre outros, Almeida Garrett (Quem És Tu?), Agustina Bessa-Luís (A Corte do Norte), Eça de Queirós (Os Maias) — alguma vez sentiste que o próprio texto resistia à tua vontade de o transformar em coisa cinematográfica?
Sempre, o texto ganha sempre.
Ganha? Em que sentido?
O texto é sempre mais forte que o cinema. A única coisa que eu posso fazer é uma apropriação, uma espécie de violação do próprio texto. Por exemplo, houve quem achasse que, em Os Maias, a minha Maria Eduarda era muito frágil, como se estivessem à espera da Laura Antonelli a fazer uma personagem intensamente sexual. O certo é que, para mim, essa fragilidade era mais violenta, tornando o incesto ainda mais obsceno. Ao mesmo tempo, nos últimos filmes, por exemplo com o texto do Alexandre O’Neill em Um Filme em Forma de Assim, não acrescentei uma palavra — é um trabalho de “corta e cola”...
Há aí um paradoxo: preservas o texto, mas reconheces que aquilo que estás a criar é totalmente outra coisa. O que pode dar origem a outro paradoxo: não receias que os puristas considerem que atraiçoaste o texto?
Não atraiçoei. Cortei e colei, fiz o meu filme. Por exemplo, quando fiz Tempos Difíceis, segundo Charles Dickens, tirei-lhe a carne, ficou o osso: tudo o que era melodrama desapareceu, ficou a luta de classes.
É um trabalho semelhante à montagem?
É igual — aprendi com o Sr. Godard.