terça-feira, janeiro 25, 2022

O cinema corpo a corpo

Anamaria Vartolomei: não "todas" as mulheres,
mas a irredutibilidade de uma mulher

Com o filme O Acontecimento, de Audrey Diwan, o cinema francês reencontra uma dimensão eminentemente física da arte de filmar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 janeiro).

No cinema, e sobre o cinema, circula um discurso normativo que tende a valorizar os filmes apenas em função dos “temas” que abordam, menosprezando as narrativas que, melhor ou pior, trabalham tais “temas”. Na prática, isso envolve uma automática desvalorização do trabalho crítico. Porquê? Porque a crítica, também melhor ou pior, tenta reconhecer e pensar a especificidade narrativa de cada filme.
Aliás, não simplifiquemos. Esta valorização dos “temas” está longe de ser um assunto particular do espaço cinematográfico. Em boa verdade, decorre de uma lógica dominante, por vezes chantagista, de “purificação” das narrativas, lógica que tem vindo a contaminar todas as dinâmicas culturais. Em tempos recentes, entre os seus motores estão as muitas atribulações em torno dos “temas” femininos e afro-americanos, na certeza de que o simples reconhecimento de tal facto continua a desencadear as paixões mais desencontradas.
Lembremos apenas o mais sensato, que é também, a meu ver, o mais produtivo: não se trata (bem pelo contrário!) de desvalorizar a importância política de tais “temas” e, mais do que isso, o seu insubstituível valor em diversas dinâmicas sociais deste nosso século XXI. Trata-se, isso sim, de não ceder ao endeusamento pueril das respectivas narrativas e à automática desresponsabilização dos seus agentes — a não ser que estejamos dispostos a aceitar, por exemplo, que o tratamento do “tema” do adultério pode colocar no mesmo plano a miséria narrativa (entenda-se: as rotinas de imagens e sons) de uma telenovela e os prodígios da escrita de Tolstoi em Anna Karenina.
São questões que, desde o seu triunfo no Festival de Veneza, têm acompanhado o filme francês O Acontecimento (Leão de Ouro em Veneza, há dias estreado em Portugal). Realizado por Audrey Diwan, tendo como base o romance autobiográfico de Annie Ernaux, nele seguimos a experiência dramática de uma jovem que, na França de 1963, em vésperas de entrar para a universidade, engravida e tenta fazer um aborto — na certeza de que, para lá da convulsão emocional da sua situação, pode ir parar à prisão.
Dizer que se trata de um filme “sobre” o aborto é uma preguiçosa facilidade. Desde logo, por uma questão básica de contextualização. A própria realizadora tem tido o cuidado de chamar a atenção para tal facto: “Um aborto clandestino nos anos 1960 nada tem a ver com o que se passa hoje. É de loucos pensar que não sabemos nada desse antigo processo” (entrevista a Rui Pedro Tendinha, publicada no DN, 5 janeiro).
Do mesmo modo, considerar que se trata de um filme sobre a “ilegalidade” do aborto é uma simplificação que o filme combate, ponto por ponto. Claro que o aborto que Anne quer fazer vai contra as regras do mundo em que vive a sua juventude, regras que decorrem não apenas das leis do Estado, mas também, como é óbvio, das normas morais socialmente dominantes. Em qualquer caso, isso não significa que o filme seja uma telenovela sobre uma personagem imaculada contra a “maldade” dos outros. Do ponto de vista político, O Acontecimento é mesmo um filme capaz de encenar o drama de Anne como uma tragédia que circula através de TODOS os discursos sociais, desde o espaço familiar ao exercício da medicina, incluindo o próprio pensamento “interior” de Anne.
Neste tempo dominado pelos rugidos de super-heróis digitais, literalmente sem corpo (ou virtualmente corporizados), a Anne filmada por Diwan é, em tudo e por tudo, uma raridade. E também um prodígio cinematográfico — criado pelos meios de uma narrativa cinematográfica, quero eu dizer.
Em anos recentes, poucas vezes temos podido descobrir algo semelhante, em intensidade e subtileza, à composição de Anne por Anamaria Vartolomei (actriz francesa nascida em 1999, em Bacau, Roménia). A vibração emocional da sua personagem não pode ser desligada da dimensão eminentemente física do seu trabalho, dando-nos a ver uma verdade identitária que, sendo feminina, nada tem a ver com a redução de uma personagem de mulher a símbolo, muito menos bandeira, de “todas” as mulheres — é a sua irredutibilidade que circula pelo filme e, no limite, constrói o filme.
No interior da história do cinema francês, reencontramos, assim, a beleza trémula dos corpos que não podem ser reduzidos a nenhum padrão universal, seja ele de género, social ou político. Há em O Acontecimento o retomar de uma via de expressão que encontra um modelo essencial na filmografia de Maurice Pialat (1925-2003). E, neste caso, confesso que não posso deixar de ceder à tentação simbólica: Sandrine Bonnaire, que aos 16 anos protagonizou o admirável Aos Nossos Amores (1983), de Pialat, surge em O Acontecimento como a mãe de Anne. A história não se repete, mas continua.