NÚMERO DOIS (1975), de Jean-Luc Godard |
Um ecrã o que é?... O que é essa coisa que mostra e não mostra, e pode estar em todo o lado? E o que vemos, realmente, num ecrã? Eis algumas perguntas que se renovam face à ligeireza pueril com que a televisão (não) pensa os seus ecrãs — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 de Novembro), com o título 'O ecrã do nosso descontentamento'.
A televisão é um fenómeno de ecrã. Pelo que se justifica perguntar: quem faz televisão, que conceito tem de “ecrã”? E como se lida com a proliferação de ecrãs, não apenas no interior da televisão mas, em boa verdade, em todo o tecido social? Afinal de contas, passámos a encontrar ecrãs em quase todos os lugares públicos, desde as lojas de roupa até ao interior dos taxis...
São perguntas que decorrem também de um fenómeno que se intensificou (nas televisões de todo o mundo): a crescente utilização de ecrãs nos espaços informativos. A primeira e incontornável resposta dá-nos conta de um padrão dominante que importa reter e questionar. Assim, o ecrã da informação, quase sempre atrás ou ao lado da figura do pivot (sentado ou de pé), é tratado como um oráculo absoluto de verdade.
Integrar um ecrã no interior de uma imagem pode ser um saudável processo de distanciamento e reflexão. Há pelo menos 35 anos que sabemos isso graças às experiências iniciadas por Jean-Luc Godard com a integração do video (lembremos o filme Número Dois, datado de 1975). Em tal caso, a amostragem do ecrã serve para fazer passar uma fundamental noção crítica: “Isto é uma imagem”. Em televisão, com frequência, o ecrã funciona como banal caução discursiva: “Isto é a verdade”.
Daí algumas situações involuntariamente caricaturais em que o ecrã emerge como inquestionável altar. Por exemplo, o pivot diz qualquer coisa como “A crise está para durar”, ao mesmo tempo que o ecrã dá a ver a mesmíssima frase (“A crise está para durar”). Passo seguinte: com olhar demonstrativo, o pivot olha para o ecrã, depois para a câmara. Mensagem: “Como vêem, é verdade”.
Já nem se trata de abrir uma janela para o mundo, mas de criar um visor virtual sobre o próprio discurso que se enuncia: a validação do discurso decorre do efeito de espelho que nele se encena. Na prática, a televisão submete-se ao primado do texto (questão para a qual Godard não tem deixado de nos alertar), dispensando-nos de pensar o artifício inerente a qualquer imagem. O ecrã, dispositivo de amostragem, transforma-se, assim, em agente de uma cegueira socialmente partilhada.
>>> ANDREW ROOT: Did the TV kill meaning?
>>> LEV MANOVICH: An Archeology of a Computer Screen
>>> REYNOLD HUMPHRIES: Godard’s synthesis: politics and the personal