quarta-feira, setembro 28, 2022

Luca Guadagnino
— o realismo é uma questão de pele

Jordan Kristine Siamón e Jack Dylan Grazer:
ser ou não ser, eis a questão

Quantos realismos existem? Para Luca Guadagnino, na série We Are Who We Are, trata-se de questionar os mistérios da identidade: depois da HBO Max, chega agora à plataforma Filmin — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 setembro).

O cineasta italiano Luca Guadagnino filmou a mini-série We Are Who We Are (à letra: “Somos quem somos”) com a Red Gemini 5K, uma sofisticada câmara digital, usando lentes Leica da série Summicron. São referências técnicas cuja actualidade os especialistas da fotografia saberão explicar na sua imensa sofisticação e, mais do que isso, contextualizar na prodigiosa evolução do registo das imagens em movimento. Acontece que nada disso é alheio a uma proeza — visual, dramatúrgica e simbólica — que o trabalho de Guadagnino concretiza de modo fascinante, raro no actual contexto televisivo e cinematográfico. A saber: a procura de um realismo com tanto de intensidade como de pudor a que corro risco de atribuir o “rótulo” de à flor da pele.
Daí a pergunta: de que falamos quando falamos de realismo? Lembremos apenas a pluralidade que a questão atrai. Não há “um” realismo, mas muitos desejos de realismo que a história dos filmes integra através de objectos tão diversos como Greed (1924), de Eric von Stroheim, Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, ou Platoon (1986), de Oliver Stone.
Mesmo quando o cinema se aventura por labirintos espirituais — penso no exemplo sublime de A Palavra (1955), de Carl Th. Dreyer, e na sua encenação de um milagre —, talvez possamos dizer que a perturbação realista envolve uma obstinada paixão pela matéria. Ou se preferirem: pelo esplendor esquecido das coisas concretas. Tudo tem valor, tudo é singular e irredutível, tudo apela à disponibilidade do olhar: a rugosidade da pele, a textura de uma peça de roupa, a nitidez paradoxal da água, o brilho fugaz de uma onda, a brancura de um piano, a presença vigilante de uma nuvem lá ao fundo, etc., etc., etc.
O contexto em que Guadagnino situa a acção desafia a própria transparência do concreto, até porque, resumindo (e muito…), se dirá que a teia dramática de We Are Who We Are propõe uma fábula contemporânea sobra a noção de pertença. No sentido individual: quem sou eu, de onde venho, a que lugar pertenço? E também no plano colectivo: que acontece, ou pode acontecer, para que a infinita diversidade dos indivíduos produza, ou possa produzir, um laço afectivo de pertença?
Tudo se passa numa base militar americana (fictícia), situada nas imediações de Chioggia, cidade italiana (verídica) na região de Veneza. Somos introduzidos nesse universo paradoxal — muitas regras de organização colectiva, muitos “desvios” individuais de comportamento — através de alguns jovens cujos pais e mães desempenham funções na hierarquia militar. Duas personagens vão destacar-se: Fraser e Caitlin (interpretados pelos magníficos Jack Dylan Grazer e Jordan Kristine Siamón, respectivamente), ambos algo à deriva no interior dos respectivos universos familiares, vivendo as ambiguidades da sua sexualidade num misto de solidão e partilha, euforia e angústia.
Por aqui perpassam variados elementos críticos do modo como vivemos (ou julgamos viver) neste atribulado século XXI: a decomposição dos laços familiares tradicionais, o lugar das mulheres em universos marcados por uma pesada herança masculina (Sarah, a mãe de Fraser, interpretada por Chloë Sevigny, é a comandante da base), o conflito entre modelos tradicionais de responsabilização e uma cultura da gratificação imediata… O certo é que nada disso adquire o determinismo de muitas ficções contemporâneas que, em boa verdade, se limitam a inventariar “temas” na moda para se auto-proclamarem como elementos de inquestionável “progresso” social.
Tal como nos seus filmes, Guadagnino filma as dores e alegrias do ser (ou não ser). Cada personagem vive num ziguezague impossível de tipificar, muito menos generalizar — entre uma identidade que resulta da sua inscrição num determinado estatuto ou modelo de comportamento e as convulsões de um ego povoado de identidades instáveis. O realismo de Guadagnino não é programático nem moralista: uma cena de conflito familiar pode ser tão reveladora quanto uma canção de Blood Orange (que, aliás, participa no derradeiro episódio), a luz cristalina do areal possui algo de tão comovente quanto o mais secreto momento de intimidade.
A série foi programada pela Quinzena dos Realizadores, em Cannes, na edição de 2020 que, devido à pandemia, acabou por não se realizar. Entretanto, os seus oito episódios andam por aí. Entre nós, podem ser vistos na HBO Max [e na Filmin]. Infelizmente, na ficha da HBO Max nem sequer se propõe qualquer informação sobre o facto de Guadagnino ser também o autor de dois filmes de peculiar impacto comercial como Eu Sou o Amor (2009) e Chama-me pelo Teu Nome (2017), isto apesar de ambos estarem disponíveis na própria HBO Max — o primeiro também pode ser visto na Filmin; outro título mais recente de Guadagnino, Suspiria (2019), está na Prime Video. Enfim, We Are Who We Are existe como um objecto de identidade ambígua: série, mini-série, produção para o streaming, narrativa de sensibilidade cinematográfica… Para mim, é um belíssimo filme com oito horas de duração.