Jean-Pierre Léaud — LA CHINOISE (1967) |
Nestes tempos de “fake news”, o que significa procurar a verdade? E o que é, afinal, uma ideologia? Um velho filme de Jean-Luc Godard ajuda-nos a reformular essas perguntas, lidando com a fragilidade de algumas ideias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Setembro).
A noção de “fake news” é tão velha como a imprensa, mas não há dúvida que se tem transfigurado neste nosso tempo de informação global, domínios virtuais e… Donald Trump. Já não nos basta considerar o método e a honestidade com que cada órgão de informação representa o mundo em que vivemos. Na expressão usada por todos (mesmo os que não dominam a língua inglesa), assistimos à secundarização da palavra “news” — vivemos e consumimos o espectáculo do “fake”, mesmo que, por princípio, o condenemos.
Donald Trump |
Nesta dinâmica realmente global, Trump conseguiu uma vitória extraordinária, em grande parte alimentada pela nossa aceitação do quotidiano como uma parada de peripécias mais ou menos pitorescas, fúteis e, no limite, reversíveis. O 45º Presidente dos EUA entronizou-se como tenente-general de um sistema de leitura do mundo regido por uma festiva dicotomia: se há “fake news”, isso significa que a verdade pode ser vivida e tratada como um absoluto; tudo o resto é ideologia.
Depois dos conflitos de valores e pensamento das sociedades pré-digitais — que encarnaram em figuras de grande vibração simbólica como John F. Kennedy, François Mitterrand ou Mikhail Gorbatchov —, a ilusão de que comunicamos com tudo, logo tudo sabemos, reaproximou-nos de formas de infantilismo que noutros tempos rejeitámos. Depois da ilusão do “fim da história”, proclamada por Francis Fukuyama no começo dos anos 90, a nossa nova morfina moral é o “fim das ideologias”.
Num filme sobre a contaminação do território universitário francês pelo maoísmo, intitulado La Chinoise, Jean-Luc Godard tratou esta questão da inevitabilidade ideológica no contexto de Maio de 68. Aliás, corrijo: colocando em cena um grupo de estudantes que tenta aplicar os princípios enunciados no Livro Vermelho, o filme é muitas vezes evocado como um retrato das convulsões de Maio de 68, mas o certo é que a sua estreia ocorreu em… Agosto de 1967!
La Chinoise trata as ilusões das suas personagens com esse misto de ternura e crueldade que, na filmografia de Godard, constitui um genuíno sistema de prospecção humana e interrogação filosófica. As personagens de La Chinoise são a emanação de uma juventude exaurida nas suas próprias utopias, com os respectivos intérpretes a integrar uma espécie de “tribo” artística: é o caso de Jean-Pierre Léaud, actor mítico da Nova Vaga francesa, e Anne Wiazemsky (1947-2017), neta de François Mauriac, na época casada com o realizador.
Jean-Luc Godard |
A certa altura, Léaud experimenta vários pares de óculos, cada um deles com lentes com a bandeira de um país (China, EUA, França…). São imagens que, de modo eminentemente lúdico, materializam a própria noção de ideologia: os óculos são o filtro ideológico da leitura de Léaud; ao mesmo tempo, porém, definem-no para os outros através de um símbolo, a bandeira, também ele ideológico.
Dito de outro modo: a ideologia não é um espaço em que decidimos entrar, como quem escolhe estados de alma a partir de um menu existencial ou acede a uma superfície comercial para adquirir os produtos de que necessita; na sua pluralidade, são os caminhos ideológicos que desenham o mapa do território histórico e social em que, com uma consciência mais ou menos aguda, nos descobrimos inseridos.
Nas frágeis personagens de La Chinoise, Godard admira uma força primitiva: a tenacidade de saber e querer saber, conhecer e querer conhecer. Não se trata de uma postura exactamente jornalística, nem exclusivamente cinematográfica, antes visceralmente literária. Porquê? Porque sempre envolvida com o amor das palavras e o obstinado labor da escrita. A sua ética está condensada num princípio de acção que, a certa altura, surge inscrito numa parede de um cenário: “É preciso confrontar as ideias vagas com imagens claras.”