sexta-feira, dezembro 31, 2021

10 filmes de 2021 [2]


Garrett Bradley

Acontecimento raro, prodígio narrativo: para dar conta — documentar é a palavra certa — da odisseia de uma mulher que tenta por todos os meios obter a redução da pena de prisão do marido (60 anos, por ter participado num assalto a um banco), Garrett Bradley utiliza os registos em video da sua protagonista, organizando uma viagem que tem tanto de exercício intimista como de metódica problematização dos mecanismos da lei. Muito para lá de qualquer cliché televisivo, obviamente alheio às estratégias do "escândalo" e do "choque", eis um objecto que exalta os valores de um genuíno gosto documental.
 

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1 - West Side Story

quarta-feira, dezembro 29, 2021

10 álbuns de 2021 [2]

Sarah Mary Chadwick

Notícias da Austrália: sediada em Melbourne, Sarah Mary Chadwick apostou em depurar a sua identidade pop/rock, até nada mais restar a não ser a precisão austera de um piano e a prodigiosa energia dramática da sua voz. Gerado por múltiplos traumas e perdas na sua vida pessoal, Me and Ennui Are Friends, Baby — o título tem qualquer coisa de programa romanesco, porventura terapêutico — possui o radicalismo de uma aventura confessional, sem nunca ceder a qualquer exibicionismo (de quem canta) ou atrair a facilidade voyeurista (de quem escuta). Triste. Encantatório. Libertador. Eis um título emblemático: Full Mood.
 

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1 - Théotime Langlois de Swarte e Tanguy de Williencourt

terça-feira, dezembro 28, 2021

Não Olhem para Cima:
tragédia, aliás, comédia [2/2]

Meryl Streep, Presidente

Estreou nas salas e já está na Netflix: com contagiante sarcasmo, Não Olhem para Cima encena uma humanidade que não quer acreditar que a Terra vai ser destruída por um cometa — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'A comédia é apenas uma forma de tragédia' (9 de dezembro).

[ 1 ]

Estamos, então, perante uma comédia? Sim, sem dúvida, embora seja quase impossível não ficar contaminado pelo caudal de desencanto e amargura que vai pervertendo todas as situações. Acontece que, tanto os responsáveis políticos como os rostos da informação televisiva começam por tratar os cientistas — e as várias confirmações do seu diagnóstico apocalíptico — como um pretexto para reforçar os seus poderes mediáticos.
Há mesmo uma Presidente dos EUA que, face à iminência do fim do mundo, se põe a avaliar as vantagens ou desvantagens que isso lhe poderá trazer nas eleições intercalares… E uma apresentadora de televisão que trata os convidados como marionetas de um “show” em que a única coisa que conta é a ridicularização de quem é entrevistado… Acrescente-se que tais personagens são interpretadas, respectivamente, por Meryl Streep e Cate Blanchett, cada uma delas no pleno e sofisticado domínio dos seus dotes de comediantes.
Não necessitaremos de uma qualquer declaração de intenções para compreender que Não Olhem para Cima pouco ou nada tem que ver com qualquer “previsão” de ficção científica. Nem sequer faltam os negacionistas do apocalipse que, à boa maneira dos apoiantes de Donald Trump, usam bonés, agora não com a frase “Make America great again”, mas sim a expressão “Don’t look up” (título original do filme).
Adam McKay já tinha encenado essa cumplicidade obscena entre algumas instâncias de poder e certas formas de gerar e difundir informação: A Queda de Wall Street (2015) desmontava a crise financeira de 2008, enquanto Vice (2018) observava o papel de Dick Cheney durante a presidência de George W. Bush. Não Olhem para Cima prolonga a sua visão cáustica, e tanto mais quanto o filme se aproxima de uma tradição dramática profundamente enraizada em Hollywood.
Emerge, assim, a herança crítica de Billy Wilder, através de filmes como O Grande Carnaval (1951) ou Testemunha de Acusação (1957). Seja como for, é sobretudo o Dr. Estranhoamor (1964), de Stanley Kubrick, sobre as armas nucleares, que surge como modelo inspirador de um cinema capaz de lidar com a tragédia final da humanidade através de narrativas do mais gélido humor [poster]. Até porque, convém não esquecer, este é um filme atravessado por um tema de perturbante actualidade: o que é a verdade? Ou antes: até que ponto vivemos numa verdade produzida pela informação global que recebemos?

Scarlett Johansson & Bono

Entre as "velhas" canções dos U2 que reaparecem na banda sonora do filme Cantar! 2, o caso de I Still Haven't Found What I'm Looking For é, talvez, o mais surpreendente. Para a recriação do seu romantismo dançante reuniram-se as vozes de Scarlett Johansson e Bono, numa cumplicidade realmente espectacular — eis o resultado, recordando o original, do álbum The Joshua Tree (1987).
 


To Google or not to Google

Uma humanidade global... Mas, afinal, quais são os factores ou valores que nos definem enquanto indivíduos pertencentes a uma globalização?
A pergunta deixou de ser uma curiosidade sociológica. Em boa verdade, transformou-se num teste de identidade — permamente, premente, apresentado e vivido como revelador dessa globalização sem alternativa.
É essa a "mensagem" do sofisticadíssimo video (aqui em baixo) que este ano, mais uma vez, a Google produziu para resumir o ano enquanto procura de palavras — Year in search 2021. Mais do que isso: no respectivo site podemos consultar todas as variações mês a mês, dos temas que procurámos na Net. Descobrimo-nos, assim, não exactamente como utilizadores de um motor de busca, antes intérpretes da sua redentora inventariação do mundo.
A globalização talvez seja apenas um sistema de circuitos que trabalha, não tanto para conhecer o mundo, antes para o definir como uma paisagem virtual de trocas infinitas — e da felicidade prometida no facto de as poder fazer. 
 

segunda-feira, dezembro 27, 2021

10 filmes de 2021 [1]


Steven Spielberg

Um musical gerado num contexto industrial dominado e, em muitos aspectos, atrofiado pelos super-heróis da Marvel e afins? É verdade. E, para mais, um musical apostado em reavivar a mágoa romântica do original de Leonard Bernstein/Stephen Sondheim, estreado na Broadway em 1957 (importa relembrar que o filme de Spielberg não é um remake do filme de 1961, assinado pela dupla Robert Wise/Jerome Robbins). Verdadeiro ovni de 2021, nele encontramos a energia de um cinema sem barreiras formais, ligando a música com o fresco social, as atribulações do quotidiano com a parábola política e, por fim, o melodrama com a tragédia — sem igual, isto é, literalmente, um objecto de esplendorosa solidão criativa.
 

domingo, dezembro 26, 2021

10 álbuns de 2021 [1]

Théotime Langlois de Swarte e Tanguy de Williencourt

Um violinista, Théotime Langlois de Swarte, e um pianista, Tanguy de Williencourt, protagonizam uma aposta invulgar: revisitar o lendário concerto de 1907, organizado por Marcel Proust para os seus amigos. O resultado é, de facto, um "concerto reencontrado", até porque os instrumentos usados são preciosidades que nos projectam na enigmática transparência do tempo: um Stradivarius de 1708 e um piano Erard de 1891. Reynaldo Hahn, Frédéric Chopin e, sobretudo, Gabriel Fauré são alguns dos compositores convocados para uma experiência fascinante e paradoxal, numa palavra, intemporal — este é um registo de Proust, Le Concert Retrouvé, em Paris, no Musée de la Musique, com realização de Julien Cadilhac.
 

In memoriam, Desmond Tutu

A imagem da mão esquerda de Miles Davis faz parte de um portfolio assinado por Irving Penn. As fotografias foram feitas para o álbum Tutu, lançado há 35 anos, em setembro de 1986.
Tutu homenageia várias personalidades marcantes na trajectória pessoal de Miles, a começar pelo bispo sul-africano Desmond Tutu, figura emblemática da luta contra o apartheid, falecido hoje, 26 de dezembro, contava 90 anos. Eis uma interpretação, ao vivo, da faixa-título (que abre o álbum), com Miles na companhia de Marcus Miller, multi-instrumentista e produtor do álbum.
 

Desmond Tutu
[BBC]

sábado, dezembro 25, 2021

Não Olhem para Cima:
tragédia, aliás, comédia [1/2]

Jennifer Lawrence e Leonardo DiCaprio:
fazendo planos para o fim do mundo

Estreou nas salas e já está na Netflix: com contagiante sarcasmo, Não Olhem para Cima encena uma humanidade que não quer acreditar que a Terra vai ser destruída por um cometa — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'A comédia é apenas uma forma de tragédia' (9 de dezembro).

As fascinantes singularidades de um filme como Não Olhem para Cima podem começar por servir para desmentir os lugares-comuns que, ao longo deste século, a produção regular de aventuras de super-heróis (com chancela de Marvel & Cª) instalou no mercado e, mais do que isso, no imaginário cinematográfico. O mais insidioso desses lugares-comuns tenta fazer crer que o gosto do espectáculo ou o imprevisível da aventura só podem ser satisfeitos através de personagens adaptadas de algum videojogo ou banda desenhada, com arranha-céus a desmoronar-se, cena sim, cena não…
De um ponto de vista comercial, sempre indissociável das peculiaridades artísticas de cada projecto, Não Olhem para Cima é mesmo um filme que recupera o valor nominal dos actores como trunfo fundamental. Convenhamos que não é todos os dias que deparamos com um elenco em que figuram Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Cate Blanchett, Mark Rylance e Meryl Streep… Isto para apenas citar vencedores de Oscars, já que encontramos ainda, por exemplo, Timothée Chalamet, Jonah Hill, Ron Perlman e a cantora Ariana Grande.
Sem esquecer que, no plano industrial, este é também um desses objectos “esquizofrénicos” gerados pela conjuntura audiovisual em que vivemos a nossa condição de espectadores: parece um empreendimento típico de um grande estúdio clássico, mas tem chancela da Netflix. Com um complemento que está longe de ser indiferente: pudemos descobri-lo nas salas algumas semanas antes de estar disponível (a partir do dia 24) naquela plataforma de streaming.
Há ainda um saboroso pormenor sarcástico. De facto, como bem sabemos, os filmes de super-heróis (mesmo os mais interessantes) têm vindo a ficar formatados numa sinopse de bizarro minimalismo. A saber: o mundo vai acabar… Pois bem, dir-se-ia que o argumento de Não Olhem para Cima, assinado pelo próprio realizador, Adam McKay (tendo como base uma história de autoria partilhada com David Sirota), também foi concebido para mobilizar um super-herói de poderes mais ou menos digitais: o mundo vai mesmo acabar porque há um cometa que se aproxima velozmente do planeta Terra, não podendo acontecer outra coisa que não seja, no espaço de seis meses, um impacto brutal e a destruição de todas as formas de vida…
Desta vez, porém, para lá da imagem cada vez mais nítida e ameaçadora do cometa a aproximar-se da bola terrestre, indefesa na sua cósmica solidão, não há figuras aladas, cuspindo fogo ou diálogos monossilábicos, a percorrer o firmamento. Tudo começa, aliás, pela surpresa, rapidamente transfigurada em pânico, dos dois cientistas (DiCaprio e Lawrence) a observar aquele traço de luz que veio assombrar a serenidade do seu mapa celestial.

sexta-feira, dezembro 24, 2021

Misty, Sarah Vaughan

Um pequeno prodígio de emoção e contenção: Misty, a composição clássica de Errol Garner interpretada por Sarah Vaughan em concerto de 1964, na Suécia — com Kirk Stuart (piano), Charles "Buster" Williams (baixo) e Georges Hughes (bateria).
 

O Natal de Trent Parke

Australiano, nascido em 1971, Trent Parke é um fotógrafo australiano, da agência Magnum, cujo trabalho integra muitos ecos autobiográficos. Cruzando particularíssimas memórias, ambiências quase surreais e um gosto paradoxal por um obstinado realismo, eis um portfolio do seu Natal, intitulado 'The Christmas Tree Bucket'.

quarta-feira, dezembro 22, 2021

Cat Power tem nova colecção de "covers"

Em janeiro, Cat Power vai lançar Covers, álbum de versões que, por assim dizer, completa uma trologia iniciada com The Covers Record (2000) e Jukebox (2008).  Frank Ocean, Jackson Browne ou Nick Cave são apenas alguns nos nomes convocados para este regresso às origens. Eis I'll Be Seeing You, tema com música de Sammy Fain e letra de Irving Kahal estreado no musical da Broadway Right This Way (1938) — elegância e depuração.

segunda-feira, dezembro 20, 2021

O Poder do Cão
— a natureza é tudo menos natural

Benedict Cumberbatch e Kodi Smit-McPhee:
"Como é que viste isso?"

O Poder do Cão é um filme prodigioso em que a cineasta neozelandesa Jane Campion reavalia as histórias do velho Oeste — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 dezembro).

Eis um filme capaz de nos envolver numa viagem fascinante pelos modos humanos de relação com os elementos naturais. Realizado pela neozelandesa Jane Campion, O Poder do Cão (Netflix) tem como base o romance homónimo de Thomas Savage publicado em 1967 (disponível em português, ed. Asa), projectando-nos num universo cinematográfico capaz de evocar os westerns “revivalistas” que Hollywood produziu nas décadas de 1960/70.
Lembrei-me, sobretudo, da filmografia de Sam Peckinpah e dos seus títulos que, ao questionarem as matrizes clássica do género, redefinem o velho Oeste como um cenário menos redentor e muito mais violento. A Quadrilha Selvagem (1969) é uma memória incontornável, mas lembrei-me em particular de The Ballad of Cable Hogue/Balada do Deserto (1970), protagonizado pelo grande Jason Robards, também uma parábola sobre as convulsões históricas em que, tal como em O Poder do Cão, a coexistência dos cavalos com os primeiros automóveis está longe de ser um detalhe banalmente pitoresco.
Afinal, a história de O Poder do Cão já não pertence ao período de expansão para Oeste, no século XIX — a acção decorre em 1925, no estado de Montana, tendo como cenário principal o rancho dos irmãos Burbank, Phil e George, interpretados, respectivamente, por Benedict Cumberbatch e Jessie Plemons. Une-os um laço tradicional, de uma só vez familiar e económico, que vai ser perturbado pela emergência de uma figura feminina: Rose (Kirsten Dunst), com quem George se casa.
Instala-se, assim, uma tensão entre Phil e Rose que, de forma perversa, vai integrar a personagem de Peter (Kodi Smit-McPhee), filho de Rose. Porquê perversa? Ainda que evitando adiantar mais do que aquilo que deve ser descoberto pelo espectador, talvez se possa dizer que as personagens se revelam (ou ignoram) no interior de um labirinto em que os mais inusitados elementos, públicos e privados, podem surgir contaminados por uma enigmática erotização.
Reparemos na flor de papel pacientemente criada por Peter (por alguma razão Jane Campion dá tempo ao tempo, filmando a sua construção com obsessiva ternura), depois queimada por Phil para acender a sua cigarrilha. E reparemos, sobretudo, nesse poder misterioso, porventura transcendental, que os empregados do rancho reconhecem a Phil: ele é capaz de olhar as montanhas e ver o que mais ninguém vê. Ver o quê? Aquilo que, para surpresa de Phil, o jovem Peter também consegue ver. Como diz Phil, “a maior parte das pessoas olha e só vê as montanhas”. E pergunta a Peter o que é que ele vê. Para surpresa de Phil (e do próprio espectador), a resposta surge directa e imediata: “Um cão a ladrar.”
Que acontece, então? A natureza não é o que “lá” está, mas aquilo que desafia e, paradoxalmente, integra a própria percepção das personagens. No limite, os elementos paisagísticos nem sequer são naturais, já que, em última instância, se confundem com as representações que deles elaboramos — veja-se a cena, também subtilmente erotizada, do banho de Phil na zona das águas que ele preserva como um refúgio secreto.
Num livro admirável, publicado em 1995 (Landscape and Memory, ed. Alfred A. Knopf), Simon Schama discorre sobre essas ambivalências que talvez possamos resumir num princípio de observação e pensamento: o natural é sempre cultural. E cita, por exemplo, a herança dos estudos de duas figuras emblemáticas da cultura dos EUA: “Os pais fundadores do moderno ambientalismo, Henry David Thoreau e John Muir, garantiram que ‘no estado selvagem reside a preservação do mundo.’ O pressuposto era que a natureza selvagem estava ali, algures, no coração ocidental da América, à espera de ser descoberta, e que seria o antídoto para os venenos da sociedade industrial. Mas, claro, a natureza selvagem com poderes curativos era tanto o produto de uma ânsia cultural e de um enquadramento cultural como qualquer outro jardim imaginário.”
Dir-se-ia que Schama está também a comentar a evolução cinematográfica do western. A actualidade filosófica do trabalho de Jane Campion revela-se, assim, muito para lá da estrita dimensão de “reconstituição” histórica. O Poder do Cão é mesmo um filme em tudo e por tudo resistente às miragens de uma natureza imaculada que, algures, num mapa que ninguém possui, apenas aguarda a chegada libertadora dos humanos. Essa abordagem não é estranha aos mais ancestrais poderes figurativos do cinema, relativizando a transparência pueril que, supostamente, alimenta todas as suas imagens — neste caso, as paisagens imensas de Montana. Ou seja: essas paisagens americanas, vitais na respiração dramática do filme, foram filmadas na região de Otago, na Nova Zelândia.

Natal com COVID-19

Tal como nas derradeiras semanas de 2020, circula um discurso piedoso em torno do "Natal", em tudo e por tudo contrário às informações científicas que se vão divulgando — o direito das famílias se reunirem passou a ser proclamado como qualquer coisa de abstracto, exterior aos demónios que, todos os dias, o mundo mediático agita em torno do COVID-19...
... como se o vírus fizesse greve aos rituais impostos pelo calendário dos humanos. Ou seja: escolhe-se o "Natal" na esperança de que o vírus se comova com o carácter compulsivo desses rituais.
Podemos, por isso, supor, que "alguém" está a trabalhar para, nos primeiros dias de janeiro, nos vir dizer que devíamos ter sido mais prudentes e, sobretudo, mais rigorosos na definição do que, em termos familiares e sociais, era ou não do domínio do razoável.
Entretanto, apesar de tudo, há quem resista a tanta candura idealista. No Libération, por exemplo, a imagem não poderia ser mais elucidativa: o paternalismo pueril face aos perigos anunciados dá lugar, pelo menos, à contundência dos factos e àquilo que o jornal chama um "amargo Natal".

domingo, dezembro 19, 2021

Jane Campion: uma neozelandesa
reinventa o western

Benedict Cumberbatch filmado por Jane Campion:
a caminho do Oscar?

Revisitando as paisagens do velho Oeste, O Poder do Cão, escrito e realizado por Jane Campion, consegue ser o retrato de uma época através de uma delicada teia de enigmas pessoais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 dezembro).

Um “western”? É verdade. A classificação tem tanto de inevitável como de insuficiente. O Poder do Cão (Netflix) é um filme que nos coloca no estado de Montana, em 1925, seguindo a odisseia dos irmãos Burbank, Phil e George, criadores de gado, interpretados por Benedict Cumberbatch e Jesse Plemons, respectivamente.
Phil é o cowboy clássico, conhecedor do gado e dos mistérios da paisagem, que não perde uma oportunidade para troçar das diferenças de pose e comportamento de George (que estudou na universidade). Ainda assim, a sua relação agreste, povoada de muitos silêncios, possui uma estabilidade que vai ser posta em causa pelo facto de George se enamorar de Rose (Kirsten Dunst), dona de uma estalagem, com quem acaba por casar…
Mais do que factualmente limitada, esta sinopse corre o risco de sugerir que o novo filme da neozelandesa Jane Campion (que lhe valeu um Leão de Prata, melhor realização, em Veneza) segue os caminhos de uma evocação mais ou menos pitoresca do velho Oeste.
Nada disso. Desde logo porque estamos já num contexto em que os cavalos coexistem com os primeiros automóveis, sem esquecer os dotes de piano de Rose, desenvolvido enquanto acompanhante da projecção de filmes… Reencontramos, afinal, o espírito de alguns modelos revivalistas do “western” das décadas de 1960/70 (a memória de Sam Peckinpah é incontornável) em que o fim de um modo de vida — de ocupação e desenvolvimento do território — se revela através de uma convulsão radical das relações humanas.
Ainda que evitando revelar mais do que é devido sobre o argumento que Jane Campion também escreveu (a partir do romance homónimo de Thomas Savage, publicado em 1967), importa acrescentar que há qualquer coisa de prodigioso na delicadeza com que O Poder do Cão nos envolve numa teia de personagens em que todo um modelo de civilização se exprime através dos desejos mais enigmáticos e também de uma sexualidade estranha aos clichés do nosso tempo. Fiquemo-nos, para já, pelo mais simples: Benedict Cumberbatch pode estar a caminho do seu primeiro Oscar.

terça-feira, dezembro 14, 2021

Passing / Identidade
— na intimidade dos corpos

Ruth Negga em Passing: o combate de ser e não ser

O filme Passing/Identidade (Netflix) sabe expor o funcionamento de um sistema racista sem ceder a facilidades panfletárias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 novembro).

As várias formas de militância que têm enquadrado a mais recente produção cinematográfica dos EUA decorrem de uma fundamental urgência política, profissional e simbólica — o lugar das mulheres no seio da indústria e os modos de abordagem das personagens de pele negra definem, justificadamente, dois vectores fundamentais dessa conjuntura.
O que, creio, não nos deverá levar a banalizar os enunciados dessas militâncias, sob pena de deixarmos transformar a densidade dos temas abordados num piedoso inventário de rotinas sem substância. No limite mais medíocre, tem sido reforçada a “ideia” segundo a qual a importância desses temas só pode ser relevada (e até respeitada) através de personagens “positivas”, portadoras de uma “mensagem” imaculada, quase transcendental.
Assim se reforça um velho simplismo narrativo que nunca sabe distinguir duas componentes diversas, por vezes claramente opostas. A saber: a construção de um ponto de vista de um filme (ou de um filme com um ponto de vista) não é um efeito automático, muito menos linear, daquilo que as personagens principais dizem, fazem ou defendem.
Lembremos o caso sintomático de Selma (2014), de Ava DuVernay, recordando um momento nuclear da luta pelo direito de voto para os cidadãos negros e, em particular, o envolvimento de Martin Luther King nessa luta. Reconhecer a vulgaridade dramática do filme (típica de um telefilme de rotina) não envolve qualquer menorização, muito menos ocultação, da importância histórica dos factos abordados — aliás, é a encenação mecânica desses factos que corre mesmo o risco de minimizar os valores humanos e humanistas que inspiram o filme.
Vale a pena lembrar também o exemplo mais próximo desse objecto admirável, de riquíssima textura narrativa e simbólica, que é Da 5 Bloods/Irmãos de Armas (2020), produção Netflix realizada por Spike Lee. Não se poderá dizer que as personagens centrais, quatro afro-americanos que revisitam lugares e enfrentam fantasmas da guerra do Vietname, sejam propriamente figuras santificadas, o que não impede que estejamos perante um dos títulos que mais pode justificar a cristalina aplicação da mensagem #BlackLivesMatter.
A imagem de Clare, a actriz Ruth Negga, contemplando a câmara em Passing/Identidade, de Rebecca Hall (lançamento recente da Netflix) constitui um belo exemplo da fascinante complexidade que tudo isto pode envolver. Trata-se, afinal, de um plano subjectivo, correspondente ao olhar de Irene, a outra personagem central do filme, interpretada por Tessa Thompson.
Que está a acontecer? É, entre os filmes que vi este ano, uma das mais admiráveis cenas de abertura. Momentos antes, vimos Irene entrar no salão de chá daquele hotel de Nova Iorque. Estamos na década de 1920: todos os seus movimentos são discretos e contidos, escondendo os olhos com a aba do seu chapéu, como quem tenta controlar o pânico. Clare chegou pouco depois, numa pose bem diferente — é, obviamente, uma frequentadora habitual daquele espaço.
Quando Clare olha em frente e detecta o olhar, também curioso, mas receoso, de Irene, assistimos a um efeito dramático de perturbante ambiguidade. Por um lado, depois de mais de uma década em que não souberam uma da outra, Clare é a primeira a reconhecer a amiga. Por outro lado, o olhar de Clare envolve a mesma pergunta não dita: “Será que ela está a fazer o mesmo que eu?” Ou seja: a tez mais clara de ambas as mulheres permite-lhes fazerem-se passar por brancas (“passing”) num cenário que, em função das regras sociais dominantes, pertence exclusivamente aos brancos.
O que é extraordinário nestes, e em muitos outros, momentos do filme em que Rebecca Hall se estreia na realização (adaptando o romance homónimo de Nella Larsen) não é a “denúncia” panfletária de um sistema social atravessado pelo racismo — por mais legítimos que sejam os seus protestos ou reivindicações, um filme não se confunde com um discurso concebido para um comício. O que está em jogo é a capacidade cinematográfica — entenda-se: através das matérias e linguagens de um filme — de nos fazer sentir os sinais de olhares, gestos e palavras que pertencem, precisamente, à dinâmica interior desse sistema de discriminação e repressão.
Supera-se, assim, a noção ingénua (por vezes aplicada como censura narrativa) segundo a qual a validade das causas obriga à exclusiva apresentação de personagens “positivas”. Irene e Clare não são “positivas” nem “negativas” — são pessoas vivas. Aquilo que o filme expõe é esse assombramento social cuja crueldade afecta a postura dos corpos, a sua inserção no espaço público e, por fim, a sua verdade mais íntima.

Billie Eilish no Saturday Night Live

Billie Eilish reapareceu no Saturday Night Live (NBC), agora também como apresentadora. Da sua participação, eis o registo de duas canções do seu segundo álbum de estúdio, Happier Than Ever: primeiro, o tema-título; depois, Male Fantasy.
 


domingo, dezembro 12, 2021

A IMAGEM: Steven Meisel, 2021

STEVEN MEISEL
Zara / modelo: Mona Tougaard
2021

Spencer, por Jonny Greenwood

Não apenas um dos grandes filmes de 2021, também uma das melhores bandas sonoras do ano: a música de Jonny Greenwood para Spencer, de Pablo Larraín, aí está como um acontecimento de excepção. No limite, esta é uma partitura de tal modo rica e complexa que podemos inscrever Spencer no top dos álbuns mais importantes de 2021 — eis a composição da cena de abertura, Arrival.

sexta-feira, dezembro 10, 2021

Green Day na BBC

Green Day e as suas BBC Sessions: o novo álbum regista quatro concertos, entre 1994 e 2001, quer dizer, de um período balizado pelos álbuns Dookie (1994) e Warning (2000), já que American Idiot só surgiria em 2004 — aqui está When I Come Around, tema emblemático do primeiro daqueles registos.
 

quinta-feira, dezembro 09, 2021

Roupas vs. ambiente

Eis uma maneira breve, original e sugestiva de dar conta das questões que podem ser colocadas quando se avaliam as formas de aplicação de produtos químicos na fabricação de peças de roupa — é um video produzido pela Agência Dinamarquesa de Projecção do Ambiente.
 

quarta-feira, dezembro 08, 2021

Stephen Sondheim, Manhattan

Sondheim c. 1976
[Wikipedia]

Entre as muitas homenagens a Stephen Sondheim, falecido no dia 26 de novembro, contava 91 anos, eis uma das mais comoventes. Com apresentação de Lin-Manuel Miranda, uma multidão de profissionais da Broadway reuniu-se num local emblemático de Manhattan [Duffy Square], formando um coro que interpretou o tema Sunday, de um dos musicais de Sondheim: Sunday in the Park with George, inspirado no quadro Uma Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte, de Georges Seurat.

Sunday, by the blue purple yellow red water
On the green purple yellow red grass
Let us pass through our perfect park
Pausing on a Sunday

By the cool blue triangular water
On the soft green elliptical grass
As we pass through arrangements of shadow
Toward the verticals of trees
Forever

By the blue purple yellow red water
On the green orange violet mass of the grass
In our perfect park

Made of flecks of light
And dark
And parasols
Bum bum bum bum bum bum
Bum bum bum

People strolling through the trees
Of a small suburban park
On an island in the river
On and ordinary Sunday
Sunday
Sunday

A IMAGEM: Erwin Olaf, 2007

ERWIN OLAF
Grief / Margaret portrait
2007

terça-feira, dezembro 07, 2021

Let it Be
ou a banda que desapareceu

Cartaz publicitário de 1970

Na base da série de Peter Jackson sobre os Beatles estão as imagens recolhidas para um belo documentário, Let it Be, assinado por Michael Lindsay-Hogg — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 novembro).

Em Portugal, na distribuição cinematográfica, existe uma longa e sugestiva tradição de títulos mais ou menos bizarros, “adaptando” de forma delirante os originais. Afinal de contas, a estreia cinematográfica dos Beatles, A Hard Day’s Night (1964), sob a direcção de Richard Lester, chegou às salas como Os Quatro Cabeleiras do Após-Calipso (foi mesmo esse o artigo definido utilizado: “os” e não “as” quatro cabeleiras).
Let it Be (1970), o filme de Michael Lindsay-Hogg cujos “excedentes” (perto de 60 horas de imagens…) servem de base à série Get Back, de Peter Jackson, é um dos casos mais curiosos dessa saga de títulos de bem disposta criatividade. Assim, o documentário sobre as sessões daquele que seria o derradeiro álbum da banda foi lançado no mercado português como… Improviso.


Em boa verdade, na altura da estreia, não creio que a questão do título português tivesse suscitado a nossa atenção, muito menos alterado a percepção do filme: tendo em conta que o álbum homónimo já estava nas lojas, o filme era “apenas” a confirmação amarga e doce de que a saga dos quatro de Liverpool tinha chegado ao fim.
Ainda assim, há que reconhecer que, com o passar das décadas, a palavra “improviso”, apesar de redutora, adquiriu um valor sintomático. Ali estavam quatro rapazes entregues a uma deriva criativa algo angustiada mas, apesar disso (ou por causa disso mesmo), susceptível de gerar uma espantosa colecção de canções — entre as menos divulgadas, ouça-se, por exemplo, For You Blue, da autoria de George Harrison.


O filme de Lindsay-Hogg resultou, afinal, de uma série de sobressaltos que, não definindo exactamente um esquema criativo de improvisação, obrigou a várias adaptações mais ou menos dramáticas. Tratava-se, na origem, de gravar e filmar um conjunto de canções em estúdio, de alguma maneira reencontrando o espírito “ao vivo” que, em qualquer caso, os Beatles tinham abandonado (depois da digressão americana de 1966).
Diversos incidentes, incluindo o momento em que Harrison ameaçou deixar a banda, foram contaminando o frágil projecto, e tanto mais quanto os lendários estúdios Twickenham não seriam, à partida, o ambiente mais acolhedor para a “invenção” de um álbum (as gravações continuaram no edifício da editora Apple, onde seria filmado o lendário “concerto no telhado”). Resumindo: “sobraram” as muitas horas que agora podemos descobrir (Let it Be, o filme, dura apenas 80 minutos).
O novaiorquino Lindsay-Hogg (actualmente com 81 anos) acabaria por se tornar um especialista em registar performances musicais, quase sempre para televisão. Aliás, cerca de um ano antes, tinha já realizado The Rolling Stones Rock and Roll Circus (cujo registo permaneceu inédito até 1996). Para todos os efeitos, e apesar de ter desaparecido de circulação, Let it Be/Improviso é uma invulgar proeza documental, conduzida por um olhar que, na presença da música, sabe observar as nuances dos músicos, suas palavras e silêncios. Ironicamente, na cerimónia dos Oscars referentes a 1970, realizada a 15 de abril de 1971, o filme valeu aos Beatles (que já não existiam) a estatueta dourada referente a melhor canção (Let it Be) — na ausência dos quatro, o prémio foi recebido por Quincy Jones.

segunda-feira, dezembro 06, 2021

Billie Eilish, Male Fantasy

Através dos meandros de uma "fantasia masculina"... Derradeira faixa do álbum Happier Than Ever, Male Fantasy é uma canção que Billie Eilish já apresentara através de uma gravação ao vivo; agora é a vez do respectivo teledisco, com assinatura da própria cantora, em tom de depurada aventura confessional e teatral — eis os dois registos.

Home alone, tryin' not to eat
Distract myself with pornography
I hate the way she looks at me
I can't stand the dialogue, she would never be
That satisfied, it's a male fantasy
I'm going back to therapy

'Cause I loved you then and I love you now
And I don't know how
Guess it's hard to know when nobody else comes around
If I'm getting over you
Or just pretending to
Be alright, convince myself I hate you

I got a call from a girl I used to know
We were inseparable years ago
Thought we'd get along but it wasn't so
And it's all I think about when I'm behind the wheel
I worry this is how I'm always gonna feel
But nothing lasts, I know the deal

But I loved you then and I love you now
And I don't know how
Guess it's hard to know when nobody else comes around
If I'm getting over you
Or just pretending to
Be alright, convince myself I hate you

Can't get over you
No matter what I do
I know I should but I could never hate you
 


A IMAGEM: Bruno Amsellem, 2021

BRUNO AMSELLEM / Libération
Lyon, 01 dez. 2021

"O Fim do Mundo", Wim Wenders, 1991

Porventura o mais mal amado dos filmes de Wim Wenders, Até ao Fim do Mundo tem 30 anos. É, além do mais, um exemplo fascinante de articulação das matérias dramáticas da narrativa com uma magnífica colecção de canções. Assim, na respectiva banda sonora (lançada a 10 de dezembro de 1991), encontramos, entre muitos outros, Talking Heads, Lou Reed, Elvis Costello, Nick Cave and The Bad Seeds, Patti Smith, U2 e ainda Daniel Lanois, com Sleeping in the Devil's Bed que surgiria, dois anos mais tarde, no álbum For the Beauty of Wynona.

sábado, dezembro 04, 2021

"Casa Gucci"
— uma saga feita de som e fúria

Lady Gaga no papel de Patrizia Reggiani:
a caminho de um Oscar?

Ridley Scott encena as convulsões privadas e públicas da família Gucci num filme marcado por um elenco de luxo, com inevitável destaque para a prodigiosa Lady Gaga — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 novembro).

Vale a pena lembrar Shakespeare e citar a frase emblemática de Macbeth: “A vida é um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria, e que nada significa.” Na verdade, Casa Gucci, de Ridley Scott, é um filme, não exactamente inspirado em Shakespeare, muito menos tentando “reproduzi-lo”, mas tocado por essa vertigem sem nome de que se faz o peso, a inquietação e também a infinita sedução da tragédia.
Como tem sido amplamente divulgado, trata-se de fazer o retrato de um império da moda — que é também uma marca de simbolismo universal —, tendo como matéria nuclear o casamento de Maurizio Gucci com Patrizia Reggiani, e a sua convulsiva transformação numa guerra familiar e comercial. Aplicando a máxima shakespeareana, poderá dizer-se que a mulher é o elemento central de toda esta teia de atribulações, já que, por amor ou ambição (talvez por amor e ambição), ela procura um significado redentor para o conto da sua vida — e esse significado implica a troca do apelido plebeu “Reggiani” pela nobreza intocável do nome “Gucci”.
O projecto demorou a concretizar. Na origem está o livro House of Gucci: A Sensational Story of Murder, Madness, Glamour, and Greed, escrito por Sara Gay Forden. Logo após o seu lançamento, em 2001, o realizador de títulos tão populares como Alien: O 8º Passageiro (1979), Blade Runner (1982) ou Gladiador (2000) adquiriu os respectivos direitos de adaptação, a ser concretizada pela sua empresa, Scott Free Productions. Vários adiamentos, diferentes elencos e também outros realizadores foram-se sucedendo, até que, em finais de 2019, o projecto avançou, acabando por ser um dos filmes de planificação mais complexa (com rodagem em diversas zonas de Itália) concretizado em plena pandemia.
Se há uma maneira simples de resumir o brilhantismo de Casa Gucci não será, por certo, através do esplendor do guarda-roupa (autorizado pelos actuais dirigentes da marca), mas sim de um velho princípio dramático: a importância da definição de cada personagem, levando até às últimas consequências a observação das suas singularidades de acção, emoção e pensamento.
De tal modo que Casa Gucci consegue essa proeza (trágica, por excelência) de narrar a saga da família Gucci — e, em particular, da relação Patrizia/Mauricio — sem ceder a qualquer esquematismo factual ou simbólico. Que faz mover Patrizia? O amor por Maurizio ou essa atracção, misto de espanto e erotismo, por uma personagem de um mundo que ela, para todos os efeitos, desconhecia? E de que modo Maurizio se vai transfigurando? Através da influência da mulher ou porque descobre o poder radical da riqueza que o seu pai acumulou?
Enfim, neste tempo de figurinhas digitais sem alma (e, em boa verdade, sem corpo), que bom que é encontrar actores em estado de graça como Adam Driver, no papel de Maurizio, Jeremy Irons, Al Pacino ou Jared Leto. Sem esquecer esse milagre cinematográfico que é a Sra. Reggiani (aliás, Gucci) composta por Lady Gaga. Quem lhe pode tirar o Oscar?

sexta-feira, dezembro 03, 2021

Sarajevo por Godard

Revendo Je Vous Salue, Sarajevo (1993), no dia em que Jean-Luc Godard faz 91 anos — a imagem como escrita, a escrita como gesto primordial do humano.
 

quinta-feira, dezembro 02, 2021

Bowie, 1992-2001

E aí está mais uma caixa de memórias de David Bowie: Brilliant Adventure (1992-2001) revisita o período que vai de Black Tie White Noise até ao inédito Toy (aliás, até agora sem edição oficial). Das muitas variações iconográficas desse tempo, eis uma das mais admiráveis: o teledisco de Survive, do álbum Hours (1999), notável proeza da videografia do realizador Walter Stern.

Falar ou não falar (português)

Fotograma de Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut:
o fogo da ignorância

Dizia o comentador de futebol: “Cumprimentar os nossos espectadores”. Será que a moda é não conjugar os tempos dos verbos? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 novembro), com o título 'Fahrenheit 451, aqui e agora'.

A cena passa-se num canal televisivo de desporto, no começo da transmissão de um jogo de futebol. Há duas vozes. O locutor apresenta o comentador, cedendo-lhe a palavra. E obtém como resposta:
“Cumprimentar-te. E cumprimentar os nossos espectadores.”
Assim mesmo: uma prodigiosa grosseria gramatical plasmada no uso aberrante do tempo infinitivo do verbo. Ao que parece, o comentador desconhece que deve usar o presente do indicativo, já que a sua acção pertence ao próprio tempo (presente) em que é enunciada. A saber: “Cumprimento-te e cumprimento os nossos espectadores.” Com algumas variações possíveis, claro. Por exemplo: “Começo por cumprimentar-te e cumprimentar os nossos espectadores.”
François Truffaut
Impõe-se uma chamada de atenção ao leitor mais precipitado. Não estou a empolar um erro pontual de uma pessoa. Há muitos anos, quer em rádio, quer em televisão, sou o primeiro e mais obstinado crítico dos meus próprios erros (muitos e, para mim, muito penosos) e não tenho qualquer gosto em transformar os erros dos outros em arma de arremesso contra quem quer que seja — neste caso, tragicamente, creio que o comentador nem sequer tem consciência do erro que comete (nem ninguém lhe terá chamado a devida atenção).
E mais um esclarecimento. Ao contrário do que sugere um velho e estúpido lugar-comum contra os que escrevem sobre domínios artísticos (por exemplo, o cinema), não encaro o universo do futebol como um alvo potencial de chacota, muito menos de insulto. Aliás, se começo por citar um exemplo que tem que ver com o futebol, é apenas porque esse é um domínio de eleição no meu consumo televisivo — sei do que estou a falar.
Estou a falar, não da utilização mais ou menos interessante da língua portuguesa por A, B ou C, mas sim de uma verdadeira praga de infinitivos que se tornou, como se diz agora, transversal — do jornalista mais banal ao político mais mediático. Como aquele repórter postado no local do acontecimento que em vez de dizer, por exemplo, “lembramos que a reunião começou há duas horas…”, lança qualquer coisa do género: “Lembrar que a reunião começou…” Ou ainda: “Referir que a importância desta reunião…”
Será preciso acrescentar que estas peripécias estão longe de se esgotar no domínio audiovisual? Definitivamente, compreendi que estamos a atravessar um período de barbárie linguística quando alguém, em nome do marketing e da sua proverbial “comunicação de eventos”, me endereçou algumas preciosas informações, iniciando a sua missiva com esta abstrusa acrobacia: “Começar por esperar que este e-mail o encontre bem…”
Quando semelhante desastre cultural já não fica confinado ao espaço específico das falas, imiscuindo-se no território sagrado da escrita, atrevo-me a pensar que estamos perante algo de muito grave. Pedindo desculpa pelo meu cepticismo, considero mesmo que os discursos piedosos, ora voluntaristas, ora paternalistas, de “defesa da língua portuguesa” não têm qualquer poder para alterar o estado das coisas.
De onde vem, então, esta avalanche de acontecimentos aprisionados num único tempo verbal, o mais primitivo, agora reduzido a avatar de tudo e mais alguma coisa, sem que se vislumbre um horizonte de passado, presente ou futuro? Nada a ver, entenda-se, com o “ser ou não ser” de Shakespeare, já que a dicotomia dos infinitivos surge aí, não como bloqueio argumentativo, antes como abertura de uma nova paisagem de (e para o) pensamento. A angustiada formulação do Príncipe da Dinamarca derrama-se num cenário vibrante: “Ser ou não ser, eis a questão”.
Ray Bradbury
A questão é, talvez, de abastardamento da língua através da vertigem pueril das imagens. Não tenho a certeza, mas é uma hipótese que, creio, vale a pena ser formulada. Dir-se-ia que a hiper-abundância do “visual” nos transformou em marionetas da percepção. Qualquer imagem produzida neste instante, no lugar em que me encontro, pode estar no instante seguinte do outro lado do planeta: não se trata de uma especulação de ficção científica, mas de algo que está a acontecer biliões de vezes por segundo — aqui e agora.
Aqui e agora? Eis uma patética ilusão. O infinitivo ignora que o “aqui” pressupõe alguma relação com o que “não está aqui”, do mesmo modo que reduz o “agora” a uma unicidade sem fronteiras. Dito de outro modo: a não conjugação dos verbos ignora as dobras do tempo, como se vivêssemos numa colagem de instantes universais em que tudo é homogéneo, monótono e indiferente — somos todos marionetas do império global das imagens, não sabemos que passado herdámos, que presente nos define, que futuro podemos enunciar. Já nem sequer sabemos formular um cumprimento: “cumprimentar-te”, “lembrar”, “referir”…
É certo que não vivemos no mundo de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (mais tarde filmado por François Truffaut), em que já não há fogos que destruam as casas: os livros são queimados pelos bombeiros porque perturbam a “harmonia” da sociedade. Afinal de contas, como diz um dos bombeiros desse futuro apocalíptico, censurando uma velha senhora que escolhe morrer no fogo dos seus livros, o perigo provém de um facto singelo: “Não terá uma ponta de bom senso? Não há dois desses livros que estejam de acordo entre si” (tradução de Mário Henrique Leiria). Eis o escândalo supremo: as palavras podem seduzir-nos para os contrastes e sobressaltos do pensamento. Pensar.