Com Da 5 Bloods, Spike Lee prossegue a sua abordagem da história dos negros na história mais geral dos EUA: o seu filme existe num território original em que o próprio cinema discute os seus limites contemporâneos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Junho).
Um velho preconceito garante que os críticos de cinema são aqueles que querem “impor” aos outros os seus pontos de vista. E não vale a pena ter ilusões: o seu poder é imenso, talvez mesmo invencível. Mas confesso que sempre me desconcertou a raridade com que alguém tenta, pelo menos, superar a questão através de um desvio francamente mais interessante. A saber: como é que um filme se “impõe” a um crítico?
A resposta será, por certo, curiosa, quanto mais não seja porque a noção, ainda mais preconceituosa, da crítica de cinema como um “rebanho” de pensadores que se movem sempre no mesmo sentido é todos os dias desmentida pelas diferenças e contradições que se desenham entre os críticos. Dito de outro modo: não há respostas a tal pergunta que não sejam individuais.
Por mim, redobro de atenção e curiosidade sempre que um filme me impõe algum silêncio. Literalmente: quando a sua energia criativa me leva a pressentir as limitações do meu próprio discurso, de alguma maneira compelindo-me a pensar como posso, no mínimo, sugerir a riqueza e complexidade do objecto que tenho à minha frente.
Para mim, Da 5 Bloods, de Spike Lee, disponível na Netflix com o subtítulo Irmãos de Armas, é um desses filmes. Que estamos a ver, afinal? Um filme de cinema, sem dúvida. E o simples facto de sermos levados a dizer “um filme de cinema” é revelador das convulsões do nosso tempo. A multiplicação das formas de difusão de um filme — em diversas “plataformas”, como aprendemos a dizer, satisfazendo a tecnocracia triunfante — instalou este bizarro impulso, misto de nostalgia e redundância.
Sendo um filme, não é, então, necessariamente, um “filme de cinema”? Acontece que, para lá da situação das salas de cinema (antes e durante a pandemia), Da 5 Bloods existe, acima de tudo, como objecto de difusão virtual – na Netflix, precisamente. O que, mais do que uma questão técnica e comercial, envolve também um fascinante trabalho narrativo.
Spike Lee convoca-nos para uma encruzilhada. Estamos perante um filme que é também um “programa” de televisão (no sentido em que o podemos ver no nosso televisor), também um ficheiro informático (porque podemos aceder-lhe através do nosso computador) e, por fim, pelo seu modo de exposição e dramatização, também uma espécie de noticiário virtual.
Porquê “noticiário”? Porque Spike Lee tem consciência do modo como, hoje em dia, para o melhor ou para o pior, somos espectadores permanentes, eventualmente dependentes, de informações que, a todos os instantes, vão habitando todos os nossos ecrãs — desde aquele que, tradicionalmente, ocupa uma das divisões da nossa casa até ao que transportamos no bolso.
No limite, talvez possamos dizer que Da 5 Bloods já não é cinema nem televisão, mesmo se participa das regras que, habitualmente, associamos a um e outro. À falta de melhor descrição, talvez faça sentido caracterizá-lo como uma “instalação” de exuberantes artifícios narrativos, sem que isso contrarie o reconhecimento de muitos elementos do mundo em que vivemos.
Também por isso, creio que a apresentação de Spike Lee como “mensageiro” dos direitos dos afro-americanos, aqui como em toda a sua filmografia (recordemos o clássico Do the Right Thing/Não Dês Bronca, cujos 30 anos têm vindo a ser assinalados desde meados de 2019) não faz justiça à sofisticação formal do seu trabalho. Ele é, afinal, um “repórter” do seu/nosso tempo que discute, ponto por ponto, filme a filme, a representação do próprio tempo presente.
A recordação das vivências trágicas dos jovens negros no Vietname não se apresenta, assim, como índice banal de um discurso panfletário. Da 5 Bloods nasce da necessidade de refazer os modos correntes de investigar e partilhar a história dos negros na história mais geral dos EUA. Daí que, no plano narrativo, tudo comunique: da aventura dos protagonistas à iconografia de Donald Trump, dos traumas da guerra às memórias de Muhammad Ali, Martin Luther King ou Marvin Gaye. É essa metódica reconversão da linguagem, isto é, das imagens e dos sons, que faz de Spike Lee um prodigioso cineasta. Mesmo que a palavra “cineasta” seja insuficiente para explicar o que ele faz.