terça-feira, dezembro 07, 2021

Let it Be
ou a banda que desapareceu

Cartaz publicitário de 1970

Na base da série de Peter Jackson sobre os Beatles estão as imagens recolhidas para um belo documentário, Let it Be, assinado por Michael Lindsay-Hogg — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 novembro).

Em Portugal, na distribuição cinematográfica, existe uma longa e sugestiva tradição de títulos mais ou menos bizarros, “adaptando” de forma delirante os originais. Afinal de contas, a estreia cinematográfica dos Beatles, A Hard Day’s Night (1964), sob a direcção de Richard Lester, chegou às salas como Os Quatro Cabeleiras do Após-Calipso (foi mesmo esse o artigo definido utilizado: “os” e não “as” quatro cabeleiras).
Let it Be (1970), o filme de Michael Lindsay-Hogg cujos “excedentes” (perto de 60 horas de imagens…) servem de base à série Get Back, de Peter Jackson, é um dos casos mais curiosos dessa saga de títulos de bem disposta criatividade. Assim, o documentário sobre as sessões daquele que seria o derradeiro álbum da banda foi lançado no mercado português como… Improviso.


Em boa verdade, na altura da estreia, não creio que a questão do título português tivesse suscitado a nossa atenção, muito menos alterado a percepção do filme: tendo em conta que o álbum homónimo já estava nas lojas, o filme era “apenas” a confirmação amarga e doce de que a saga dos quatro de Liverpool tinha chegado ao fim.
Ainda assim, há que reconhecer que, com o passar das décadas, a palavra “improviso”, apesar de redutora, adquiriu um valor sintomático. Ali estavam quatro rapazes entregues a uma deriva criativa algo angustiada mas, apesar disso (ou por causa disso mesmo), susceptível de gerar uma espantosa colecção de canções — entre as menos divulgadas, ouça-se, por exemplo, For You Blue, da autoria de George Harrison.


O filme de Lindsay-Hogg resultou, afinal, de uma série de sobressaltos que, não definindo exactamente um esquema criativo de improvisação, obrigou a várias adaptações mais ou menos dramáticas. Tratava-se, na origem, de gravar e filmar um conjunto de canções em estúdio, de alguma maneira reencontrando o espírito “ao vivo” que, em qualquer caso, os Beatles tinham abandonado (depois da digressão americana de 1966).
Diversos incidentes, incluindo o momento em que Harrison ameaçou deixar a banda, foram contaminando o frágil projecto, e tanto mais quanto os lendários estúdios Twickenham não seriam, à partida, o ambiente mais acolhedor para a “invenção” de um álbum (as gravações continuaram no edifício da editora Apple, onde seria filmado o lendário “concerto no telhado”). Resumindo: “sobraram” as muitas horas que agora podemos descobrir (Let it Be, o filme, dura apenas 80 minutos).
O novaiorquino Lindsay-Hogg (actualmente com 81 anos) acabaria por se tornar um especialista em registar performances musicais, quase sempre para televisão. Aliás, cerca de um ano antes, tinha já realizado The Rolling Stones Rock and Roll Circus (cujo registo permaneceu inédito até 1996). Para todos os efeitos, e apesar de ter desaparecido de circulação, Let it Be/Improviso é uma invulgar proeza documental, conduzida por um olhar que, na presença da música, sabe observar as nuances dos músicos, suas palavras e silêncios. Ironicamente, na cerimónia dos Oscars referentes a 1970, realizada a 15 de abril de 1971, o filme valeu aos Beatles (que já não existiam) a estatueta dourada referente a melhor canção (Let it Be) — na ausência dos quatro, o prémio foi recebido por Quincy Jones.