Benedict Cumberbatch e Kodi Smit-McPhee: "Como é que viste isso?" |
O Poder do Cão é um filme prodigioso em que a cineasta neozelandesa Jane Campion reavalia as histórias do velho Oeste — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 dezembro).
Eis um filme capaz de nos envolver numa viagem fascinante pelos modos humanos de relação com os elementos naturais. Realizado pela neozelandesa Jane Campion, O Poder do Cão (Netflix) tem como base o romance homónimo de Thomas Savage publicado em 1967 (disponível em português, ed. Asa), projectando-nos num universo cinematográfico capaz de evocar os westerns “revivalistas” que Hollywood produziu nas décadas de 1960/70.
Lembrei-me, sobretudo, da filmografia de Sam Peckinpah e dos seus títulos que, ao questionarem as matrizes clássica do género, redefinem o velho Oeste como um cenário menos redentor e muito mais violento. A Quadrilha Selvagem (1969) é uma memória incontornável, mas lembrei-me em particular de The Ballad of Cable Hogue/Balada do Deserto (1970), protagonizado pelo grande Jason Robards, também uma parábola sobre as convulsões históricas em que, tal como em O Poder do Cão, a coexistência dos cavalos com os primeiros automóveis está longe de ser um detalhe banalmente pitoresco.
Afinal, a história de O Poder do Cão já não pertence ao período de expansão para Oeste, no século XIX — a acção decorre em 1925, no estado de Montana, tendo como cenário principal o rancho dos irmãos Burbank, Phil e George, interpretados, respectivamente, por Benedict Cumberbatch e Jessie Plemons. Une-os um laço tradicional, de uma só vez familiar e económico, que vai ser perturbado pela emergência de uma figura feminina: Rose (Kirsten Dunst), com quem George se casa.
Instala-se, assim, uma tensão entre Phil e Rose que, de forma perversa, vai integrar a personagem de Peter (Kodi Smit-McPhee), filho de Rose. Porquê perversa? Ainda que evitando adiantar mais do que aquilo que deve ser descoberto pelo espectador, talvez se possa dizer que as personagens se revelam (ou ignoram) no interior de um labirinto em que os mais inusitados elementos, públicos e privados, podem surgir contaminados por uma enigmática erotização.
Reparemos na flor de papel pacientemente criada por Peter (por alguma razão Jane Campion dá tempo ao tempo, filmando a sua construção com obsessiva ternura), depois queimada por Phil para acender a sua cigarrilha. E reparemos, sobretudo, nesse poder misterioso, porventura transcendental, que os empregados do rancho reconhecem a Phil: ele é capaz de olhar as montanhas e ver o que mais ninguém vê. Ver o quê? Aquilo que, para surpresa de Phil, o jovem Peter também consegue ver. Como diz Phil, “a maior parte das pessoas olha e só vê as montanhas”. E pergunta a Peter o que é que ele vê. Para surpresa de Phil (e do próprio espectador), a resposta surge directa e imediata: “Um cão a ladrar.”
Que acontece, então? A natureza não é o que “lá” está, mas aquilo que desafia e, paradoxalmente, integra a própria percepção das personagens. No limite, os elementos paisagísticos nem sequer são naturais, já que, em última instância, se confundem com as representações que deles elaboramos — veja-se a cena, também subtilmente erotizada, do banho de Phil na zona das águas que ele preserva como um refúgio secreto.
Num livro admirável, publicado em 1995 (Landscape and Memory, ed. Alfred A. Knopf), Simon Schama discorre sobre essas ambivalências que talvez possamos resumir num princípio de observação e pensamento: o natural é sempre cultural. E cita, por exemplo, a herança dos estudos de duas figuras emblemáticas da cultura dos EUA: “Os pais fundadores do moderno ambientalismo, Henry David Thoreau e John Muir, garantiram que ‘no estado selvagem reside a preservação do mundo.’ O pressuposto era que a natureza selvagem estava ali, algures, no coração ocidental da América, à espera de ser descoberta, e que seria o antídoto para os venenos da sociedade industrial. Mas, claro, a natureza selvagem com poderes curativos era tanto o produto de uma ânsia cultural e de um enquadramento cultural como qualquer outro jardim imaginário.”
Dir-se-ia que Schama está também a comentar a evolução cinematográfica do western. A actualidade filosófica do trabalho de Jane Campion revela-se, assim, muito para lá da estrita dimensão de “reconstituição” histórica. O Poder do Cão é mesmo um filme em tudo e por tudo resistente às miragens de uma natureza imaculada que, algures, num mapa que ninguém possui, apenas aguarda a chegada libertadora dos humanos. Essa abordagem não é estranha aos mais ancestrais poderes figurativos do cinema, relativizando a transparência pueril que, supostamente, alimenta todas as suas imagens — neste caso, as paisagens imensas de Montana. Ou seja: essas paisagens americanas, vitais na respiração dramática do filme, foram filmadas na região de Otago, na Nova Zelândia.