quarta-feira, junho 12, 2019

O novo fundamentalismo narrativo

Ursula Andress, DR. NO (1962)
Construir uma narrativa não é fazer uma lista de personagens com “bom comportamento”. A propósito de James Bond ou Martin Luther King, importa perguntar o que é isso de contar uma história — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Junho), com o título 'Memórias das Caraíbas'.

Para várias gerações de espectadores, Honey Ryder foi um símbolo cândido da beleza feminina. A sua imagem que adquiriu estatuto de ícone universal está no filme Dr. No (1962), o primeiro de James Bond, entre nós intitulado Agente Secreto 007.
Interpretada pela actriz suíça Ursula Andress, Honey Ryder — bikini branco, duas conchas nas mãos, uma faca à cintura — era uma aparição nas águas das Caraíbas. Perante o olhar de Bond (Sean Connery), ela perguntava-lhe: “Que faz aqui? Anda à procura de conchas?” Ao que ele respondia: “Não, estou apenas a olhar”. Sem esquecer que a ironia erótica passa, no inglês original, pelo facto de os verbos “procurar” e “olhar” envolverem a mesma palavra de raiz (“looking for shells”, diz ela; “just looking”, responde ele).
Passado mais de meio século, há sinais de um crescente policiamento moral das relações entre homens e mulheres. Nada a ver, entenda-se, com a defesa intransigente de todas as formas de igualdade social entre géneros, a começar pelo fundamental plano financeiro. Nada que ponha em causa, sublinhe-se também, a veemente condenação de todas as formas de violência contra mulheres e, em particular, a necessidade de denunciar a estupidez machista que se imiscuiu em muitas matrizes narrativas, sobretudo através de modelos enraizados na “reality TV” (dentro e fora do espaço televisivo).
Acontece que continuamos a assistir à instalação de dispositivos de “normalização” figurativa e narrativa. Por vezes, o trabalho da ficção (em especial no cinema) é avaliado como uma ilustração de regras de “bom comportamento”... É provável que os actuais criativos de James Bond evitassem até escrever diálogos de tão festiva ambivalência como os da referida cena de Dr. No.
Tal possibilidade está longe de ser meramente especulativa. Há dias, foi noticiado o facto de a equipa de argumentistas do 25º título oficial do agente secreto 007 (a estrear em Abril de 2020) ter integrado a inglesa Phoebe Waller-Bridge. Ela própria se encarregou de atribuir especial pertinência simbólica à sua contratação, considerando-a “absolutamente relevante agora”, acrescentando que o novo filme deverá “tratar as mulheres adequadamente”, mesmo que o próprio Bond não o faça (declarações ao site Deadline, publicadas a 31 de Maio).
Há neste modelo de pensamento uma pequenez existencial que importa enfrentar. E não porque se trate de um problema “de mulheres”. Para que se compreenda que não é uma questão de géneros que está em causa, recordo um episódio de 2015, sintomático do mesmo simplismo ideológico, protagonizado pelo actor inglês David Oyelowo.
Na sequência do anúncio das nomeações para os Oscars desse ano, Oyelowo comentou o facto de não ter sido nomeado pelo sua interpretação de Martin Luther King no filme Selma (sobre a luta pelo direito de voto dos afro-americanos na América de 1965). Tal ausência foi, para ele, motivo de “incómodo” porque King é “um dos seres humanos mais significativos na vida americana” (The Guardian, 30-01-2015). Oyelowo confundia a eventual consistência artística do seu trabalho com a grandeza humana da sua personagem, sendo incapaz de conceber que se possa ter o mais radical respeito pela personagem e considerar o filme um objecto cinematograficamente banal (é, aliás, a minha opinião).
Triunfa, assim, um determinismo moral que se fundamenta numa triste ignorância das especificidades da narrativa, de qualquer narrativa. No limite, encurrala-se qualquer reflexão sobre as artes narrativas na avaliação da “justeza” das respectivas personagens.
Escusado será dizer que esse medo de lidar com as contradições do factor humano levaria (será que levará?...) a rasurar de qualquer vivência cultural tanto a obra de David Lynch como os escritos de um velho e decadente perverso polimorfo chamado William Shakespeare. A hipótese parece caricatural, mas está a ser formulada, implícita ou explicitamente, pelo novo fundamentalismo narrativo.
Phoebe Waller-Bridge vai ser a segunda mulher a trabalhar em argumentos de James Bond. No meio de tanto barulho por nada, será que ela sabe que a primeira, Johanna Harwood, se estreou, precisamente, em Dr. No? Podemos até supor que Honey Ryder foi uma personagem desenvolvida por ela (a partir do romance de Ian Fleming). Será que isso nos obriga a algum ritual de purificação?