Meryl Streep, Presidente |
Estreou nas salas e já está na Netflix: com contagiante sarcasmo, Não Olhem para Cima encena uma humanidade que não quer acreditar que a Terra vai ser destruída por um cometa — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'A comédia é apenas uma forma de tragédia' (9 de dezembro).
Estamos, então, perante uma comédia? Sim, sem dúvida, embora seja quase impossível não ficar contaminado pelo caudal de desencanto e amargura que vai pervertendo todas as situações. Acontece que, tanto os responsáveis políticos como os rostos da informação televisiva começam por tratar os cientistas — e as várias confirmações do seu diagnóstico apocalíptico — como um pretexto para reforçar os seus poderes mediáticos.
Há mesmo uma Presidente dos EUA que, face à iminência do fim do mundo, se põe a avaliar as vantagens ou desvantagens que isso lhe poderá trazer nas eleições intercalares… E uma apresentadora de televisão que trata os convidados como marionetas de um “show” em que a única coisa que conta é a ridicularização de quem é entrevistado… Acrescente-se que tais personagens são interpretadas, respectivamente, por Meryl Streep e Cate Blanchett, cada uma delas no pleno e sofisticado domínio dos seus dotes de comediantes.
Não necessitaremos de uma qualquer declaração de intenções para compreender que Não Olhem para Cima pouco ou nada tem que ver com qualquer “previsão” de ficção científica. Nem sequer faltam os negacionistas do apocalipse que, à boa maneira dos apoiantes de Donald Trump, usam bonés, agora não com a frase “Make America great again”, mas sim a expressão “Don’t look up” (título original do filme).
Adam McKay já tinha encenado essa cumplicidade obscena entre algumas instâncias de poder e certas formas de gerar e difundir informação: A Queda de Wall Street (2015) desmontava a crise financeira de 2008, enquanto Vice (2018) observava o papel de Dick Cheney durante a presidência de George W. Bush. Não Olhem para Cima prolonga a sua visão cáustica, e tanto mais quanto o filme se aproxima de uma tradição dramática profundamente enraizada em Hollywood.
Emerge, assim, a herança crítica de Billy Wilder, através de filmes como O Grande Carnaval (1951) ou Testemunha de Acusação (1957). Seja como for, é sobretudo o Dr. Estranhoamor (1964), de Stanley Kubrick, sobre as armas nucleares, que surge como modelo inspirador de um cinema capaz de lidar com a tragédia final da humanidade através de narrativas do mais gélido humor [poster]. Até porque, convém não esquecer, este é um filme atravessado por um tema de perturbante actualidade: o que é a verdade? Ou antes: até que ponto vivemos numa verdade produzida pela informação global que recebemos?