No seu novo álbum, Billie Eilish canta o envelhecimento e a nitidez da morte: ela está “mais feliz que nunca” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 agosto).
Billie Eilish tem 19 anos. Nascida em Los Angeles, completará 20 no dia 18 de dezembro. Na canção de abertura do seu novo e belíssimo álbum, Happier than Ever (à letra: “Mais feliz que nunca”), comenta o próprio envelhecimento. Chama-se Getting Older e começa com estes versos: “Estou a ficar mais velha / Acho que estou a envelhecer bem.”
Seria precipitado encarar a confissão de Billie Eilish como uma banal variação do infantilismo cultural que passou a contaminar muitas formas de figuração das personagens mais jovens. Exemplo gritante desse infantilismo é a apoteótica decadência da MTV, a estação de televisão que completa hoje 40 anos — foi a 1 de agosto de 1981 que as emissões da “TV da música” começaram nos EUA, com a lendária passagem, simbólica por excelência, do teledisco de Video Killed the Radio Star, dos Buggles. Por estes dias, a MTV ocupa horas infinitas com derivações (ainda mais) grotescas da “reality TV” ou com programas como “Ridiculousness”, acumulando videos de incidentes pessoais mais ou menos benignos, desse modo promovendo uma pornografia existencial comandada por uma nova filosofia da identidade humana: “Sou ridículo, logo existo”.
Finneas O’Connell |
A coincidência tem qualquer coisa de espectacular: o álbum de Billie Eilish surge na mesma altura em que um dos acontecimentos do mercado cinematográfico é um filme construído a partir de uma perversa reconversão do fluxo temporal. Realizado por M. Night Shyamalan, chama-se Old (“Velho”), tendo recebido o subtítulo português Presos no Tempo. Em boa verdade, não se trata de um aprisionamento, mas sim de uma deriva que põe em causa todas as coordenadas do universo humano, a começar, precisamente, pelas suas medidas temporais: as personagens de Shyamalan encontram-se numa deslumbrante praia protegida, virtualmente inacessível, em que, por cada meia hora, envelhecem um ano… Afinal, o paraíso aproxima-nos da nitidez indizível da morte.
Em entrevista na edição de junho da Vogue britânica, Billie Eilish apresentava-se em fotografias de sugestiva reconversão da iconografia tradicional da “pin-up”, dando conta, a certa altura, da sua admiração por Greta Thunberg (“She’s f**king amazing”, segundo a citação da revista). Para lá do simbolismo geracional, creio que fará sentido reconhecer nessa cumplicidade Eilish/Thunberg a marca de um pragmatismo político para o qual nem sempre estamos disponíveis. A saber: no reconhecimento das tragédias climáticas, tal como nos cânticos deste caloroso neo-romantismo, está enunciada uma relação muito directa e frontal com a imagem indefinida da morte — o planeta pode morrer e, em qualquer caso, cada um de nós é um ser para a morte.
Nada a ver, entenda-se, com a propaganda obscena do sofrimento que tem vindo a contaminar algumas linguagens do nosso planeta televisivo sem fronteiras. No caso sempre revelador do desporto, o “sofrimento” (palavra corrente nas entrevistas dos jogadores de futebol) circula envolvido com a obrigação simbólica da vitória; é francamente perturbante o facto de muitas entrevistas com os atletas olímpicos já não serem sobre o próprio labor desportivo, mas sim sobre a quase obrigação de ser medalhado (o que, regra geral, depois da prova, obriga o atleta a “justificar” o seu falhanço).
Para que não restem dúvidas, Billie Eilish atreve-se mesmo a cantar que “todos morremos”. Dir-se-ia um novo capítulo do seu álbum de estreia, lançado em 2019, cujo título era, muito literalmente: “Quando todos adormecemos, para onde é que vamos?” (When We All Fall Asleep, Where Do We Go?). Agora, a canção Everybody Dies começa assim: “Todos morremos / Surpresa surpresa”… Daí a tocante ambivalência da capa do álbum, fazendo coexistir o título de felicidade com as lágrimas da cantora. O teatro é uma forma de sinceridade.