sábado, dezembro 04, 2021

"Casa Gucci"
— uma saga feita de som e fúria

Lady Gaga no papel de Patrizia Reggiani:
a caminho de um Oscar?

Ridley Scott encena as convulsões privadas e públicas da família Gucci num filme marcado por um elenco de luxo, com inevitável destaque para a prodigiosa Lady Gaga — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 novembro).

Vale a pena lembrar Shakespeare e citar a frase emblemática de Macbeth: “A vida é um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria, e que nada significa.” Na verdade, Casa Gucci, de Ridley Scott, é um filme, não exactamente inspirado em Shakespeare, muito menos tentando “reproduzi-lo”, mas tocado por essa vertigem sem nome de que se faz o peso, a inquietação e também a infinita sedução da tragédia.
Como tem sido amplamente divulgado, trata-se de fazer o retrato de um império da moda — que é também uma marca de simbolismo universal —, tendo como matéria nuclear o casamento de Maurizio Gucci com Patrizia Reggiani, e a sua convulsiva transformação numa guerra familiar e comercial. Aplicando a máxima shakespeareana, poderá dizer-se que a mulher é o elemento central de toda esta teia de atribulações, já que, por amor ou ambição (talvez por amor e ambição), ela procura um significado redentor para o conto da sua vida — e esse significado implica a troca do apelido plebeu “Reggiani” pela nobreza intocável do nome “Gucci”.
O projecto demorou a concretizar. Na origem está o livro House of Gucci: A Sensational Story of Murder, Madness, Glamour, and Greed, escrito por Sara Gay Forden. Logo após o seu lançamento, em 2001, o realizador de títulos tão populares como Alien: O 8º Passageiro (1979), Blade Runner (1982) ou Gladiador (2000) adquiriu os respectivos direitos de adaptação, a ser concretizada pela sua empresa, Scott Free Productions. Vários adiamentos, diferentes elencos e também outros realizadores foram-se sucedendo, até que, em finais de 2019, o projecto avançou, acabando por ser um dos filmes de planificação mais complexa (com rodagem em diversas zonas de Itália) concretizado em plena pandemia.
Se há uma maneira simples de resumir o brilhantismo de Casa Gucci não será, por certo, através do esplendor do guarda-roupa (autorizado pelos actuais dirigentes da marca), mas sim de um velho princípio dramático: a importância da definição de cada personagem, levando até às últimas consequências a observação das suas singularidades de acção, emoção e pensamento.
De tal modo que Casa Gucci consegue essa proeza (trágica, por excelência) de narrar a saga da família Gucci — e, em particular, da relação Patrizia/Mauricio — sem ceder a qualquer esquematismo factual ou simbólico. Que faz mover Patrizia? O amor por Maurizio ou essa atracção, misto de espanto e erotismo, por uma personagem de um mundo que ela, para todos os efeitos, desconhecia? E de que modo Maurizio se vai transfigurando? Através da influência da mulher ou porque descobre o poder radical da riqueza que o seu pai acumulou?
Enfim, neste tempo de figurinhas digitais sem alma (e, em boa verdade, sem corpo), que bom que é encontrar actores em estado de graça como Adam Driver, no papel de Maurizio, Jeremy Irons, Al Pacino ou Jared Leto. Sem esquecer esse milagre cinematográfico que é a Sra. Reggiani (aliás, Gucci) composta por Lady Gaga. Quem lhe pode tirar o Oscar?