sábado, dezembro 25, 2021

Não Olhem para Cima:
tragédia, aliás, comédia [1/2]

Jennifer Lawrence e Leonardo DiCaprio:
fazendo planos para o fim do mundo

Estreou nas salas e já está na Netflix: com contagiante sarcasmo, Não Olhem para Cima encena uma humanidade que não quer acreditar que a Terra vai ser destruída por um cometa — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'A comédia é apenas uma forma de tragédia' (9 de dezembro).

As fascinantes singularidades de um filme como Não Olhem para Cima podem começar por servir para desmentir os lugares-comuns que, ao longo deste século, a produção regular de aventuras de super-heróis (com chancela de Marvel & Cª) instalou no mercado e, mais do que isso, no imaginário cinematográfico. O mais insidioso desses lugares-comuns tenta fazer crer que o gosto do espectáculo ou o imprevisível da aventura só podem ser satisfeitos através de personagens adaptadas de algum videojogo ou banda desenhada, com arranha-céus a desmoronar-se, cena sim, cena não…
De um ponto de vista comercial, sempre indissociável das peculiaridades artísticas de cada projecto, Não Olhem para Cima é mesmo um filme que recupera o valor nominal dos actores como trunfo fundamental. Convenhamos que não é todos os dias que deparamos com um elenco em que figuram Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Cate Blanchett, Mark Rylance e Meryl Streep… Isto para apenas citar vencedores de Oscars, já que encontramos ainda, por exemplo, Timothée Chalamet, Jonah Hill, Ron Perlman e a cantora Ariana Grande.
Sem esquecer que, no plano industrial, este é também um desses objectos “esquizofrénicos” gerados pela conjuntura audiovisual em que vivemos a nossa condição de espectadores: parece um empreendimento típico de um grande estúdio clássico, mas tem chancela da Netflix. Com um complemento que está longe de ser indiferente: pudemos descobri-lo nas salas algumas semanas antes de estar disponível (a partir do dia 24) naquela plataforma de streaming.
Há ainda um saboroso pormenor sarcástico. De facto, como bem sabemos, os filmes de super-heróis (mesmo os mais interessantes) têm vindo a ficar formatados numa sinopse de bizarro minimalismo. A saber: o mundo vai acabar… Pois bem, dir-se-ia que o argumento de Não Olhem para Cima, assinado pelo próprio realizador, Adam McKay (tendo como base uma história de autoria partilhada com David Sirota), também foi concebido para mobilizar um super-herói de poderes mais ou menos digitais: o mundo vai mesmo acabar porque há um cometa que se aproxima velozmente do planeta Terra, não podendo acontecer outra coisa que não seja, no espaço de seis meses, um impacto brutal e a destruição de todas as formas de vida…
Desta vez, porém, para lá da imagem cada vez mais nítida e ameaçadora do cometa a aproximar-se da bola terrestre, indefesa na sua cósmica solidão, não há figuras aladas, cuspindo fogo ou diálogos monossilábicos, a percorrer o firmamento. Tudo começa, aliás, pela surpresa, rapidamente transfigurada em pânico, dos dois cientistas (DiCaprio e Lawrence) a observar aquele traço de luz que veio assombrar a serenidade do seu mapa celestial.