sexta-feira, novembro 19, 2021

"Spencer"
— a história também é feita de fábulas

Kristen Stewart como Diana Spencer:
a caminho de uma nomeação para os Oscars?

Entre a vida vivida e a vida sonhada, Spencer é um filme admirável evocando a solidão da Princesa Diana na quadra natalícia de 1991: Kristen Stewart interpreta uma personagem à procura da sua identidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 novembro).

Um filme sobre a “Princesa do Povo”?… É verdade. Ao fazer um retrato da Princesa Diana (1961-1997), o cineasta chileno Pablo Larraín terá certamente reflectido sobre as componentes mitológicas da sua memória, incluindo a multiplicidade de narrativas, históricas e romanescas, em torno a família real britânica e os lugares-comuns jornalísticos e televisivos que vão parasitando essa memória. Daí que seja importante chamar a atenção para um detalhe que, de tão óbvio, pode passar despercebido mesmo ao espectador mais atento. A saber: o filme adopta como título o apelido de solteira da Princesa de Gales — Spencer. Importa desfazer outro equívoco: Spencer também não é uma “biografia”, quanto mais não seja porque não há nele nada que o aproxime da lógica de uma qualquer série televisiva organizada a partir de uma cronologia “evolutiva” da personagem.
O divórcio de Diana e do Príncipe Carlos foi oficializado em 1996 mas, de facto, a sua separação era conhecida desde 1992. A acção de Spencer decorre ao longo de poucos dias, durante a quadra natalícia de 1991, com a família real reunida na propriedade de Sandringham, na região de Norfolk — terá sido aí que se deu a ruptura definitiva dos Príncipes de Gales. Escusado será dizer que essa “claustrofobia” temporal está longe de ser indiferente para a construção narrativa e a respiração dramática do filme.
E tanto mais quanto a própria integração da personagem central (ou a sua impossibilidade) funciona como motor dramático de todo o filme. Assim, na sequência de abertura, descobrimos Diana a conduzir o seu automóvel, a caminho de Sandringham; vai sozinha (sinal de uma primeira ruptura com o protocolo familiar) e, desesperada, consulta um mapa: “Que raio, onde é que eu estou?”.

Fábula “vs.” tragédia

Mesmo não sabendo, Diana sabe muito bem onde está — afinal de contas, Sandringham fica próximo da propriedade onde viveu a infância e a adolescência. O certo é que a sua resistência às regras da família do marido, resistência irremediavelmente multiplicada pela própria rejeição de que é alvo, a transformaram numa personagem que já não pertence a nenhum lugar.
Essa deriva geográfica e afectiva é, desde logo, sinalizada pela redescoberta de um espantalho, algures num terreno da família Spencer. A recuperação do seu velho casaco — peça de vestuário que pertenceu ao pai de Diana — introduz outra componente essencial no ziguezague emocional da Princesa, oscilando entre a nostalgia magoada de tudo aquilo que se tornou irrecuperável e uma pulsão de morte que parece assombrar os seus gestos e a ordem a que é suposto submeter-se.
Larraín filma tudo isso com a precisão insuperável (ia a escrever maníaca…) de quem vê na sua personagem, não a ilustração banal de um destino trágico, mas a obstinação de um desejo de verdade que, de facto, apenas encontra eco na relação com os filhos. De tal modo que é nas cenas com William e Harry (na altura com nove e sete anos, respectivamente) que o filme encontra a expressão mais cristalina do seu gosto de efabulação. Porque estamos, realmente, perante uma fábula sobre personagens verídicas. Ou como avisa a legenda inicial: “Uma fábula a partir de uma verdadeira tragédia”.
Nada disso é estranho à subtil ambiguidade entre a vida vivida e a vida sonhada tão habilmente explorada pelo argumento de Steven Knight (que escreveu, por exemplo, Promessas Perigosas, para David Cronenberg). Talvez possamos até dizer que, no esplendor da sua arte narrativa, Spencer é mesmo um filme contra o “naturalismo” televisivo dos nossos dias, em defesa do valor histórico das fábulas.

Jacqueline e Diana

Larraín é, afinal, um cineasta dessa multiplicidade interior dos factos, da perversa cumplicidade entre a evidência das coisas e a dimensão mais secreta, porventura indecifrável, dos gestos humanos. Lembremos o exemplo da sua admirável trilogia sobre a ditadura de Augusto Pinochet: Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e Não (2012). E lembremos também esse “parente” próximo de Spencer que é Jackie (2016), sobre Jacqueline Kennedy e, em particular, os dias que se seguiram ao assassinato do Presidente John F. Kennedy. Num caso como noutro, as personagens centrais parecem polarizar, não apenas as atribulações dos bastidores da cena política, mas a própria carência simbólica de um mundo que nelas procura (ou a elas exige) a revelação de algum sentido redentor. Daí a solidão de Jacqueline. Daí a solidão de Diana. Será preciso acrescentar que Larraín é também um invulgar director de actores e, nestes casos, de actrizes? Natalie Portman era prodigiosa no primeiro filme, tal como Kristen Stewart, agora, em Spencer.
Kristen Stewart consegue mesmo lidar com o imbróglio simbólico de “reproduzir” Diana (o sotaque, a pose da cabeça, entre receio e curiosidade, a inadaptação do corpo aos retratos oficiais, etc.) sem nunca ceder à criação de um “cromo” para satisfazer as convenções de qualquer imaginário populista. Não será arriscado supor que a sua composição lhe valerá uma primeira nomeação para um Oscar, o que não deixará de envolver um eco de ternura por Diana, a princesa de apelido Spencer.