sábado, fevereiro 28, 2015

Os olhos grandes de Tim Burton

Num registo porventura mais contido, ou mais clássico, do que em muitos momentos da sua obra, Olhos Grandes leva de novo Tim Burton a uma questão fulcral do seu universo criativo: a identidade privada do artista e a sua relação com os olhares dos outros — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Fevereiro), com o título 'Como Margaret Keane não desistiu de pintar olhos grandes'.

Poderá parecer que estamos a revelar o mistério central do novo filme de Tim Burton, mas esta é, afinal, uma informação disponível no próprio trailer: Olhos Grandes é a história da figura verídica de Margaret Keane (n. 1927), pintora de cujo trabalho o marido Walter Keane (1915-2000) se apropriou, apresentando-se publicamente como autor dos quadros — com figuras de “olhos grandes” — que a sua mulher pintava.
Porventura o mais desconcertante, e também mais sintomático da subtileza de Burton, é que, mesmo conhecendo esse facto, vemos o filme através da persistência de um cruel enigma: afinal, em que momento (ou em que cena) Margaret começa a ser anulada pela impostura de Walter?
Em boa verdade, não parece haver uma resposta segura. Olhos Grandes começa por ser a história de uma despersonalização que Margaret vive e, num certo sentido, alimenta através de uma subserviência que lhe é imposta em nome do decoro conjugal, da harmonia familiar e, enfim, do sucesso comercial. E se mais não houvesse, a subtileza com que Amy Adams sabe compor esse mistura insólita de candura e revolta seria suficiente para reconhecermos que estamos perante um objecto cinematográfico de delicada concepção. Face a ela, Christoph Waltz, no papel do marido, emerge como uma figura de burlesca maldade.
Mesmo não minimizando o rigor e a elegância da mise en scène de Burton, importa não esquecer que estamos perante um projecto indissociável das singularidades de escrita dos respectivos argumentistas: Scott Alexander e Larry Karaszewski. Foram eles que negociaram os direitos de tratamento da história de Margaret Keane, acabando por surgir como parceiros de Burton na produção de Olhos Grandes. Na sua carreira encontramos, aliás, vários títulos “não-alinhados”, quase sempre abordando personagens com histórias de alguma marginalidade social ou emocional: é o caso de Ed Wood (1994), também realizado por Burton, Larry Flynt (1996) e Homem na Lua (1999), ambos de Milos Forman.
Num registo que não apresenta a dimensão espectacular dos seus títulos mais conhecidos, a começar por Alice no País das Maravilhas (2010), Burton reencontra, assim, uma obsessão fulcral do seu universo. A saber: a incompletude de personagens como o cândido herói de Eduardo Mãos de Tesoura (1990) ou o realizador Ed Wood que vivem, por assim dizer, no limbo da sua própria imaginação.
É pena que o impacto de Olhos Grandes tenha ficado limitado pela sua total ausência das nomeações para os Oscars (Amy Adams ganhou o Globo de Ouro de melhor actriz em comédia ou musical). Dir-se-ia que uma certa imagem de marca de Burton — como criador de universos bizarros — não se adequa à contenção poética deste filme. Em última análise, há em Margaret Keane a contagiante energia de alguém que nunca desiste da sua arte, mesmo quando o marido a tenta reduzir a uma desenhadora de rostos de proporções “erradas”.

Leonard Nimoy (1931-2015)


Afastando o anelar do dedo médio, palma da mão para a frente, dizia ao som das palavras “live long and prosper” a saudação que, de origem vulcaniana, ganhou lugar na história da nossa cultura popular. Expressão de um trabalho de composição de uma personagem que interpretou pela primeira vez em 1966 e que acompanhou em diversas etapas e gerações, surgindo mesmo nos dois filmes mais recentes da saga Star Trek, realizados por J.J. Abrams, Leonard Nimoy tornou-se quase indistinto de Spock. É com essa mesma frase, que evoca o papel de uma vida, que muitos hoje dele se despedem em mensagens que começaram há pouco a inundar as redes sociais, desde que chegou a notícia da sua morte, hoje, em sua casa em Bel Air (Califórnia) aos 83 anos, vítima de uma doença pulmonar crónica que o levara de urgência ai hospital há poucos dias.

Não podemos contudo reduzir Leonard Nimoy ao papel de ator e muito menos fechá-lo no universo Star Trek se bem que talvez fosse ele o paradigma maior da ideia que o criador da série Gene Rodenberry, levara pela primeira vez aos ecrãs num episódio-piloto rodado em 1966 nos pequenos estúdios Desilu, ligados à Paramount. Depois da primeira vida de Star Trek surgiu em várias outras séries, de Missão Impossível a Marco Polo. Mas a reativação do franchise com o primeiro filme Star Trek (em 1979, com Robert Wise como realizador) aprofundou a sua relação – e a do mundo inteiro – com a figura de Spock. A carga icónica da personagem era já suficientemente evidente em 1967 quando editou o primeiro dos vários álbuns que gravou. Chamou-lhe Mr Spock’ Music From Outer Space e encetou uma carreira em paralelo que incluiu canções como Highly Illogical (mais uma alusão a Spock) ou The Ballad of Bilbo Baggins. Às canções a discografia de Leonard Nimoy junta ainda álbuns spoken word onde leu As Crónicas Marcianas de Ray Bradbury, A Guerra dos Mundos de H.G. Wells e The Green Hills of Earth de Robert A. Heinlein.



Estas são algumas capas de títulos da obra em disco de Leonard Nimoy.

O texto que aqui apresentamos é um excerto de um obituário que ontem publiquei na Máquina de Escrever.

Podem ler aqui o texto completo.

Julian Cope, 1985



As imagens são de uma atuação realizada um pouco mais tarde, mas evocam uma canção da etapa inicial da carreira a solo de Julian Cope que conheceu edição num EP lançado em finais de fereveriro de 1985. Há precisamente 30 anos.

Depois do fim dos Teardrop Expolodes o vocalista Julian Cope encetou um percurso em nome próprio que deu primeiros passos em disco num primeiro EP a solo lançado em 1983. Em 84 Cope apresentou, separados por poucos meses, os álbuns World Shut Your Mouth e Fried. Este segundo, lançado em novembro, incluia no seu alinhamento este Sunspots, canção que ganharia protagonismo maior pouco depois, ao ser o tema central do Sunspots EP, lançado já em 1985.

Fica aqui a memória de uma das suas grandes canções desta etapa inicial de um percurso que ainda está ativo e, aqui e ali, tendo revelado belos novos momentos a reter.

Para ler: a queda de Madonna nos Brit Awards

Há muitas maneiras para abordar o que aconteceu durante a cerimónia de atribuição dos prémios Brit este ano. Madonna caiu em palco durante a atuação que encerrava a gala, facto que ofuscou mediaticamente tudo o que demais tinha acontecido naquele palco naquela noite. Pelas redes sociais abundaram as reações minimais (e repetitivas). Houve até quem levantasse teorias da conspiração (não entremos nunca por aí). O acontecimento estava nos noticiários todos no dia seguinte. E vale por isso notar não só o que aconteceu e, sobretudo, como anos de experiência em palco fizeram com que uma aparatosa queda não significasse o fim de uma performance. The show must go on, já diz a velha regra do showbiz. Assim foi. E não vamos por isso reduzir a um incidente, resolvido na hora, toda a narrativa sobre um álbum que vem a caminho (se bem que, naturalmente, este episódio fará parte da sua história).

Podem ler aqui a notícia que publiquei na edição de quinta-feira do Expresso Diário sobre este tema.

Sem querer "pregar" ao leitor - e lembrando que o que foi publicado se trata de uma notícia e não um texto de opinião - vale a pena pensar agora, e como de resto o título da notícia desde logo sugere, porque ficou "ofuscado" o que ali mais aconteceu? Será só o mediatismo de Madonna? Ou também a total inconsequência a que chegaram os Brit Awards em 2015?...

sexta-feira, fevereiro 27, 2015

Fernando Alvim (1934 - 2015)

Músico, compositor, figura ímpar da viola, Fernando Alvim faleceu em Lisboa no dia 27 de Fevereiro — contava 80 anos.
A sua imagem na capa do álbum Fados e Canções do Alvim (2011) terá correspondido, para muitas pessoas, a uma descoberta quase absoluta. De facto, essa colecção de 35 temas de sua autoria, interpretados por Carlos do Carmo, Ana Moura, Camané e muitos outros, correspondeu apenas a um dos derradeiros episódios de uma carreira tão discreta quando admirável, acompanhando nomes como Carlos Paredes (com quem manteve uma parceria de 25 anos), António Chainho, Adriano Correia de Oliveira, José Afonso ou Manuel Freire.
E se é verdade que Alvim fica como uma personalidade fulcral da história do fado, não é menos verdade que havia nele um gosto plural e versátil que o levou, por exemplo, a interessar-se pelo jazz (tocou com músicos do Hot Club) e a bossa nova (que divulgou na década de 60, no programa Nova Onda, da Emissora Nacional). Em 2012, foi agraciado com a Medalha de Honra da Sociedade Portuguesa de Autores.

>>> Dança da Aldeia, por Carlos Paredes e Fernando Alvim (Teatro São Luiz, Lisboa, 1992), e Jardim da Saudade, por Ana Moura, do álbum Fados e Canções do Alvim.




>>> Obituário no Diário de Notícias.

quinta-feira, fevereiro 26, 2015

A ideologia de Christian Grey

A dimensão ideológica de um filme não resultado do facto de poder haver personagens que assumem um discurso... ideológico: importa discutir a visão do mundo que se constrói, globalmente, através de cada narrativa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Fevereiro), com o título 'Christian Grey ou a ideologia da performance'.

Quando se discute a avalancha mediática, em particular televisiva, que acompanhou o lançamento de As Cinquenta Sombras de Grey não se está necessariamente a fazer juízos moralistas sobre o trabalho deste ou aquele jornalista. O que está em jogo não é a “quantidade” de notícias que se fizeram (muitas delas absolutamente inanes, é um facto). Trata-se, isso sim, de discutir o modo como um objecto sustentado por um marketing tão simplista e agressivo acaba, em muitos casos, por ser apresentado através da linguagem posta a circular pelo próprio marketing.
Há muitas outras maneiras de dizer isto. Eis uma variante justificada pela própria actualidade do mercado: há dias, chegou às salas o prodigioso Vício Intrínseco, de Paul Thomas Anderson, filme que, a partir do romance homónimo de Thomas Pynchon, evoca os fantasmas da década de 1970 através de uma narrativa toda ela marcada por um visão muito crua do sexo e de uma cultura de exaltação do prazer... Pois bem, o leitor poderá corrigir-me se eu estiver enganado, mas não me parece que tenha havido algum noticiário televisivo que lhe tenha dedicado um milésimo do tempo concedido a algemas, chicotes, estreias e ante-estreias de As Cinquenta Sombras de Grey, para mais com as contribuições de exasperante banalidade de “famosos” a quem continua a faltar o bom senso de reconhecerem que não têm nenhuma ideia para partilhar com os outros.
Seria, aliás, interessante que os dispositivos de leitura de determinados filmes fossem também aplicados a As Cinquenta Sombras de Grey. O contraponto, neste caso, pode ser Sniper Americano, de Clint Eastwood. Confesso que me espanta a severidade “política” com que algumas abordagens (emanadas de sectores da esquerda americana) têm condenado o filme pela sua visão da guerra. De facto, o aparato ideológico com que Eastwood aborda a morte em combate, o valor irrisório que pode assumir uma vida e o impossível resgate de qualquer solidão individual é rigorosamente idêntico ao que sustenta o seu sempre mitificado Imperdoável (1992)... Como a mesma visão do mundo suscita paixões tão contraditórias, eis um mistério por esclarecer.
É desconcertante observar como essa severidade “ideológica” se aplica a determinados filmes, enquanto As Cinquenta Sombras de Grey passa, entre os pingos da chuva, como se a única questão pertinente fosse a avaliação métrica das zonas de nudez com que podemos ser gratificados. É mesmo chocante que, num contexto em que tudo se “problematiza”, desde a justiça dos resultados do futebol até aos colarinhos sem gravata de Yanis Varoufakis, pouco ou nada se diga sobre o modo de encenação da personagem de Christian Grey.
Porquê? Porque com ele, e através dele, triunfa a ideologia da pura performance técnica. Christian Grey ficará mesmo como a corporização de um conceito meramente instrumental das actividades humanas, incluindo o sexo, colocado, aliás, exactamente no mesmo plano simbólico da acumulação de riqueza. Ora, não parece que os valores mediáticos dominantes queiram discutir o triunfo desta ideologia anti-humanista. Perante o alarido circundante, podemos até supor que estão empenhados em consagrá-la.

O marketing dos Oscars

Neste mundo saturado de formatações publicitárias, ainda há, apesar de tudo, mecanismos subtis e inteligentes de marketing que não degradam o "produto" nem o espectador. Estes quatro clips encomendados pela Academia de Hollywood à agência 180LA constituem um caso exemplar de gestão de memórias, celebrando a diversidade dos rostos, gestos e emoções que também fazem a história dos Oscars — that's entertainment!







quarta-feira, fevereiro 25, 2015

Madonna aos 56 anos


>>> Ninguém se atreve a fazer uma observação degradante sobre o facto de alguém ser negro. Ninguém se atreve a fazer uma observação degradante no Instagram sobre o facto de alguém ser gay. Mas sobre a minha idade — toda a gente e mais alguém é capaz de dizer alguma coisa degradante em relação a mim. E penso sempre para mim: por que é que isso é aceite? Qual a diferença entre isso e racismo, ou qualquer outra forma de discriminação? Julgam-me em função da minha idade. Não compreendo. Estou a tentar lidar com isso. Porque as mulheres, de um modo geral, quando chegam a uma certa idade passam a aceitar que não se devem comportar de determinada maneira. Mas eu não sigo as regras. Nunca segui, não é agora que vou começar.

Madonna
— entrevista na Rolling Stone

A aventura de Kingsman (2/2)

Afinal, é possível aplicar as mais modernas tecnologias sem ser para deitar abaixo arranha-céus, cena sim, cena não: Kingsman: Serviços Secretos faz-nos acreditar nos mais genuínos poderes do espectáculo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Fevereiro), com o título 'A grande aventura'.

[ 1 ]

Na abertura de Kingsman: Serviços Secretos, a frenética acção é musicalmente comentada, com desconcertante efeito irónico, pelo clássico Money for Nothing, dos Dire Straits. Na mais delirante das suas sequências, quando o mundo está à beira da destruição total, escutamos a célebre marcha de Pompa e Circunstância composta por Edward Elgar. Algures numa situação marcada por uma peculiar promessa erótica (cuja descrição é, aqui, omitida em nome do mais saudável bom senso deontológico), surge a inconfundível languidez de Slave to Love [video de Jean-Baptiste Mondino, 1985], de Bryan Ferry, a pontuar os acontecimentos... Dito de outro modo: há no filme de Matthew Vaughn uma sábia utilização das matérias musicais que, no fundo, ilustra e amplia a musicalidade da sua construção narrativa.


Não é todos os dias que deparamos com um filme, ao mesmo tempo tão elaborado e tão feliz, capaz de mostrar que os recursos dos mais recentes grandes espectáculos (incluindo os célebres “efeitos especiais”) não têm que ficar emperrados na falta de imaginação e exasperante monotonia que, nos últimos anos, tem marcado tantos filmes de super-heróis. Kingsman: Serviços Secretos ilustra um modelo de cinema obviamente ligado às mais avançadas tecnologias (mesmo se custou apenas 81 milhões de dólares, valor “ridículo” neste tipo de produções), mas que nunca desiste de dois princípios vitais: um conceito coerente de acção e um apurado trabalho na definição dramática (sempre dramaticamente irónica) de cada uma das personagens.
Mantendo um tom de suave distanciamento, Vaughn consegue mesmo organizar o contagiante humor do seu filme como uma parábola discreta, mas tocante, sobre a camaradagem e a pertença a um grupo. Finalmente, podemos voltar a dizer que a grande aventura não desapareceu!

Ver + ouvir
Dutch Uncles, Flexxin



Um single para ir ouvindo o que podemos esperar do álbum dos Dutch Uncles editado esta semana. Pop elaborada para ir escutando com atenção... Promete.

Novas edições:
Damon & Naomi

“Fortune”
CD, 20/20/20
4 / 5

Quando, com uma digressão japonesa ainda pela frente, Dean Wareham anunciou a saída (e o fim) dos Galaxie 500 em 1991, Damon Krukowski e Naomi Young deram por si com um lote de sessões inacabadas em estúdio nas mãos. Os tempos que se seguiram viram-nos de mangas arregaçadas, a trabalhar na editora livreira que eles mesmos haviam criado dois anos antes e pela qual estavam a relançar textos de autores dos séculos XIX e XX como Guillaume Apollinaire, Antonin Artaud ou Fernando Pessoa. Desafiados a regressar a estúdio, acabaram por completar um álbum, que editaram em 1992 com o título More Sad Hits, encetando um percurso musical pós-Galaxie 500 que assim não fechou nas experiências posteriores de Wareham (via Luna ou em parceria com Britta Phillips) a expressão de descendências de uma das mais marcantes bandas indie norte-americanas de finais dos oitentas e inícios dos noventas. A música nunca esgotou os horizontes criativos de Damon e Naomi. Ele foi trabalhando sobretudo a escrita (entre a poesia e a prosa, chegando mesmo a escrever sobre música, publicando na Pitchfork). Ela, por seu lado, foi focando atenções na fotografia e trabalho em vídeo, tendo mesmo assinado telediscos, apresentando agora um primeiro filme da sua autoria. Tem por título Fortune, é uma curta-metragem com cerca de 30 minutos, sem palavras mas com banda sonora feita de canções suas e de Damon. Ou seja, o novo álbum de Damon & Naomi não é senão a banda sonora para este filme que reflete sobre a perda de um pai (um artista), situação na verdade não estranha ao passado recente na vida pessoal de Naomi.

Fortune, que representa o primeiro conjunto de novas gravações de Damon & Naomi desde o álbum False Beats and True Hearts. Mais que uma explicação para a narrativa as canções surgem como um complemento que com as imagens anda de mãos dadas, revelando um corpo de canções, ajustadas ao ritmo das cenas, sempre toldadas pela melancolia, e nas quais vão alternando as vozes de Damon e Naomi. Os arranjos são subtis mas longe de minimalistas, seguindo pistas de uma linguagem que tem as memórias dos Galaxie 500 na sua genética mas todo um percurso a dois vivido em discos publicados depois de 1992.

Sem esconder o tom elegíaco que o filme ajuda a materializar, as canções fazem de Fortune um belo álbum sobre a perda e a memória. Mesmo longe de descritivas, são parte inevitável do corpo do filme, sendo que em disco conseguem ter também uma vida própria. Uma boa banda sonora, portanto.

Este texto foi originalmente publicado na Máquina de Escrever

Para ouvir: o regresso de Roisín Murphy



E agora que está (finalmente) na agenda o lançamento de um novo álbum a solo - Hairless Toys, a editar e maio - eis que fica aqui um novo single de Roisín Murphy.

Para ler: lojas de discos em ressurgimento

Depois de anos a fio de notícias de "fechou" e "vai fechar" o ano de 2014 assistiu a um ressurgimento de lojas de discos. Pelo menos no Reino Unido. Sinais dos tempos da resistência de nichos na era do digital?

Podem ler aqui um artigo publicado no Guardian.

terça-feira, fevereiro 24, 2015

San Fermin, opus 2

Esta é a estrela do próximo teledisco dos San Fermin — o cão, entenda-se. O humano dá pelo nome de Ellis Ludwig-Leone e lidera a banda que adoptou o nome do famoso festival de Pamplona. Em todo o caso, o seu som é um prodígio de invenção, algures entre a pop mais depurada e um elegante classicismo — de tal modo que o seu álbum de estreia, San Fermin, foi um dos grandes acontecimentos de 2013.
Os San Fermin têm um segundo registo para lançar — Jackrabbit (21 Abril) — e já há alguns temas para escutar. Aqui ficam as fascinantes melodias e instrumentações de Parasites, Emily e Jackrabbit.





O caso Brian Williams

Na NBC, Brian Williams foi suspenso devido a declarações imprecisas sobre as condições em que efectuou um trabalho de reportagem. Ou como o jornalismo não pode (sobretudo, não deve) reduzir-se às odisseias dos próprios jornalistas — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (20 Fevereiro).

A suspensão, por seis meses, do jornalista Brian Williams, da NBC, justifica alguma reflexão. Que aconteceu? Ao dar conta das condições em que realizou uma reportagem no Iraque, em 2003, a bordo de um helicóptero, terá descrito a situação de forma incorrecta, empolando o perigo a que foi exposto — a questão foi suscitada pelas diferentes versões do incidente que Williams foi contando ao longo dos anos [New York Times].
Peço ao leitor que não se precipite. Gostaria, em particular, que estas linhas não fossem encaradas como um apelo ao “julgamento” pontual de um profissional (da área jornalística, neste caso). Já basta o que basta. Nos últimos dias, tivemos um exemplo da histeria mediática que tais atitudes podem envolver com o grotesco “tribunal popular” montado em torno de Rui Patrício apenas porque o homem, coitado, sofreu um golo num daqueles momentos imponderáveis do futebol que, apesar do vício normativo de muitos comentadores, não obedecem a nenhuma forma de lei, muito menos de justiça...
Acontece que Williams, porventura num impulso de complacência narcisista, acabou apenas por ilustrar um discurso pueril em que, na ânsia de protagonismo, alguns jornalistas se colocam — ou colocam os seus colegas. Tal discurso tenta consagrar qualquer narrativa jornalística, não como o resultado da difícil arte de lidar com o real, antes como a ilustração “obrigatória” de uma saga em que o jornalista, em especial o repórter, só pode ser um herói exposto a condições extremas de risco.
Tal estereótipo, por vezes alimentado por uma demagogia interior ao dispositivo televisivo, só tem feito mal ao próprio jornalismo. Porquê? Porque apresenta o complexo labor de investigação como um western de série B, escamoteando que o jornalista sensato, ao observar a parcela do mundo que cabe no seu enquadramento, sabe que não está a ter acesso a nenhuma verdade divina. Até porque um jornalista no meio dos tiros não é, por si só, notícia — a notícia começa no reconhecimento de que alguém disparou.

Kate Pierson a solo

Kate Pierson (n. 1948) é a voz e também o ícone mais forte da banda The B-52's. Digamos, então, que o seu novo trabalho a solo, Guitars and Microphones, soa um pouco a... The B-52's. Tudo com uma energia contagiante e colorida — a prova: o teledisco de Mister Sister.

A aventura de Kingsman (1/2)

Afinal, é possível aplicar as mais modernas tecnologias sem ser para deitar abaixo arranha-céus, cena sim, cena não: Kingsman: Serviços Secretos faz-nos acreditar nos mais genuínos poderes do espectáculo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Fevereiro), com o título 'Brincando com as convenções dos filmes de James Bond'.

Nos últimos anos não têm faltado aventuras cinematográficas mais ou menos inter-galácticas, sustentadas pelos mais delirantes efeitos especiais e, quase sempre, protagonizadas por super-heróis. Kingsman: Serviços Secretos pertence a essa tendência, mas com uma diferença essencial: os protagonistas não se apresentam dotados de força sobrenatural, nem se deslocam à velocidade do som — são membros de uma sofisticada sociedade secreta que actua à margem das organizações clássicas (CIA, MI5, etc.), combatendo os mais sinistros líderes do crime.
Colhendo inspiração na série de histórias de banda desenhada criada por Mark Millar e Dave Gibbons, o filme dirigido por Matthew Vaughn explora um imaginário da aventura cujas raízes estão na tradição cinematográfica de James Bond. Com outra diferença importante: as peripécias não estão centradas numa personagem única, tratada como “vedeta” da própria aventura, já que a dinâmica do colectivo Kingsman provém, justamente, do seu sentido de grupo e do militante respeito por uma exigente noção de honra.
O ponto de partida decorre, aliás, de um processo de reparação moral. Envolvido numa missão algures no Médio Oriente, Harry Hart (Colin Firth), agente secreto com o nome de código ‘Galahad’, perde um dos seus homens. Sentindo-se culpado pelo ocorrido, faz questão em ser ele a entregar uma medalha de mérito à viúva e ao seu filho, o pequeno Eggsy. Hart dá a Eggsy um cartão com um contacto telefónico, garantindo-lhe que pode a ele recorrer em qualquer situação de apuro, bastando para tal ligar e pronunciar uma frase codificada... Dezassete anos mais tarde, detido pela polícia, Eggsy (Taron Egerton) irá mesmo usar o número que Hart lhe deu — e Hart oferece-lhe a possibilidade de participar numa série de testes visando a sua integração no Kingsman.
Pode haver drama, mas tudo isto se passa num universo carregado de ironia. Desde logo, porque o mundo secreto de Kingsman existe numa espécie de limbo social em que é tão importante saber guardar os segredos das suas actividades como manter uma fachada de serena respeitabilidade: a entrada nas instalações — onde permanecem o metódico Arthur (Michael Caine), coordenando as operações, e Merlin (Mark Strong), treinando os jovens candidatos — faz-se mesmo através de uma muito tradicional alfaiataria inglesa. Depois, porque, afinal à boa maneira de James Bond, os agentes secretos da Kingsman não estão a resolver problemas banais, mas a... salvar o mundo!
O mau da fita dá pelo nome de Valentine (Samuel L. Jackson). Montou uma estratégia maquiavélica para contrariar o crescimento exponencial da população do planeta Terra: o plano passa por uma oferta global de cartões de telemóveis que permitirão a qualquer cidadão, em qualquer país, aceder gratuitamente a comunicações e Internet. Na prática, Valentine está apostado em dizimar milhões de pessoas, preservando apenas uma casta de ricos e poderosos.
Distribuído internacionalmente por um grande estúdio americano (20th Century Fox), Kingsman é, no essencial, um produto de fabricação britânica. E não apenas porque Matthew Vaughn é inglês. Acontece que o essencial da rodagem decorreu em Inglaterra, quer em estúdio, quer em cenários lendários como o Imperial College de Londres (cujas instalações serviram para criar alguns espaços do quartel-general da organização de espiões). Além do mais, de Colin Firth ao quase estreante Taron Egerton, o elenco é maioritariamente inglês, contando-se entre as excepções Samuel L. Jackson e Mark Hamill (o célebre Luke Skywalker de A Guerra das Estrelas).
No contexto anglo-saxónico deste tipo de produções, com um orçamento de 81 milhões de dólares, Kingsman emerge como um filme “barato”, sobretudo face a títulos com super-heróis que tendem a custar, no mínimo, o dobro desse valor. O seu primeiro fim de semana nas salas americanas foi comercialmente consistente (36 milhões), embora tenha ficado pelo segundo lugar do top, liderado pelo omnipresente As Cinquenta Sombras de Grey.

segunda-feira, fevereiro 23, 2015

Lady Gaga em Hollywood

Provavelmente, a colaboração com Tony Bennett não foi um desvio na carreira de Lady Gaga, antes o reencontro com o seu talento mais visceral — o de uma cantora eminentemente clássica, a meio caminho entre o fausto do music-hall e os standards do jazz. A sua admirável performance na 87ª edição dos Oscars de Hollywood é mais um argumento nesse sentido.
Através de um medley de temas de Música no Coração — assinalando os 50 anos do clássico com Julie Andrews e Christopher Plummer, realizado por de Robert Wise —, Lady Gaga soube manter-se no sóbrio registo da homenagem, sem que isso a impedisse de consumar uma pessoalíssima performance [video], carregada de energia e poesia.
Numa afirmação arriscada, mas motivada, a revista Time considera mesmo que, com a sua actuação nos Oscars, Lady Gaga pode ter "redefinido a sua carreira". Em qualquer caso, podemos também supor que o seu impacto no coração de Hollywood contém as sementes de uma mais que possível carreira cinematográfica — e musical, em prol do lendário, e sempre adiado, relançamento do género musical.

"Birdman" vence Oscars

Numa cerimónia apresentada por Neil Patrick Harris, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood consagrou Birdman como melhor filme de 2014. O filme levou Alejandro González Iñárritu três vezes ao palco do Dolby Theatre, para receber o Oscar máximo e, antes, os das categorias de argumento original e realização; Birdman arrebatou ainda a distinção de melhor fotografia.
Sem surpresas foram os resultados nas categorias de interpretação, com Oscars atribuídos a Eddie Redmayne (actor, A Teoria de Tudo), Julianne Moore (actriz, O Meu Nome É Alice), J. K. Simmons (actor secundário, Whiplash) e Patricia Arquette (actriz secundária, Boyhood).
Grand Budapest Hotel, com quatro distinções, trouxe, finalmente, a consagração de Alexandre Desplat (melhor música), por certo um dos mais talentosos compositores de cinema da actualidade.
Fenómeno pouco comum: todos os oito títulos nomeados para melhor filme, tiveram, pelo menos, um Oscar. No site da Academia, podemos consultar a lista oficial de nomeados e vencedores nas 24 categorias em disputa.

domingo, fevereiro 22, 2015

Neil Patrick Harris & etc.

Como vai ser Neil Patrick Harris a apresentar os Oscars? É certo que experiência de outras cerimónias não lhe falta, mas há algum suspense para uma cerimónia marcada, como sempre, por fortes campanhas promocionais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Fevereiro), com o título 'Uma campanha para “melhor filme” custa cerca de 10 milhões de dólares'.

Numa investigação recente, desenvolvida pelo argumentista e produtor britânico Stephen Follows, ficamos a saber que os Oscars têm vindo a estreitar as suas próprias escolhas. Depois de analisar as datas de estreia (nos EUA) dos títulos nomeados para melhor filme do ano no período 2000-2014, Follows concluiu que mais de metade (56%) foram lançados em apenas dois meses (Novembro/Dezembro).
Escusado será dizer que esta dinâmica implica uma marginalização automática dos lançamentos dos restantes meses de cada ano, especialmente no primeiro semestre. Na mesma contabilidade, os primeiros quatro meses do ano representam apenas 2% do total: um para Janeiro e Março, zero em Fevereiro e Abril. Isto significa que a vitória de um título como O Silêncio dos Inocentes, lançado em Fevereiro de 1991, parece hoje virtualmente impossível (viria a ganhar cinco Oscars, incluindo o de melhor filme).
Na prática, instalou-se uma lógica perversa que leva os estúdios (pequenos e grandes) a fazer grandes investimentos promocionais em títulos concentrados nas últimas semanas de cada ano. E não estamos a falar de valores banais: no mesmo período, em média, o vencedor de um Oscar de melhor filme terá sido sustentado por uma campanha de 10 milhões de dólares.
Obviamente, os filmes não são “melhores” nem “piores” por causa da data em que chegam às salas. Seja como for, a situação atrás descrita implica um efeito de afunilamento das escolhas da Academia de Hollywood, de alguma maneira reforçado e, no limite, banalizado pelo modo como os outros prémios mais mediatizados (a começar pelos Globos de Ouro e BAFTA) parecem “antecipar” os Oscars. Nesse aspecto, aliás, não são necessárias grandes especulações estatísticas — basta acompanhar as notícias da temporada de prémios para verificar que nomeados e vencedores se repetem com surpreendente regularidade.
Podemos admitir que, nos EUA, a baixa regular das audiências televisivas para a cerimónia dos Oscars resulta, em parte, desse efeito de repetição. Nesta perspectiva, 2015 vai ser um teste interessante, até porque a presença de Neil Patrick Harris como apresentador permanece uma absoluta incógnita.

sábado, fevereiro 21, 2015

Ritual de sabores

A noção segundo a qual a doçaria, para além dos seus prazeres mais ou menos divinos, transfigura o corpo talvez nunca tivesse sido tomada tão à letra: no nº26 da revista 032c, Mario Sorrenti fotografa Camilla Christensen num ritual de sabores em que já não se sabe quem devora e quem é devorado — em última análise, a proliferação das cores parece ser o ponto de fuga mais óbvio de tão insólito e fascinante portfolio.

Os fantasmas de Paul Thomas Anderson

Katherine Waterston
Paul Thomas Anderson adapta Thomas Pynchon num dos grandes filmes (americanos ou não) do momento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Fevereiro), com o título 'Paradoxo artístico'.

Logo a abrir Vício Intrínseco, preservando uma das primeiras falas do romance de Thomas Pynchon, Paul Thomas Anderson filma Shasta (Katherine Waterston) a aparecer a Larry (Joaquin Phoenix) com uma frase desconcertante: “Julgas o quê, que estás a alucinar?” (Vício Intrínseco, ed. Bertrand, 2009). Está dado o mote: a investigação conduzida por Larry envolve personagens que parecem provir de um país habitado por fantasmas; na cabeça de Harry não há lugar fixo para a fronteira entre o vivido e o imaginado.
Há outra maneira de dizer isto: à maneira de Orson Welles ou Max Ophüls (para apenas citar dois nomes que ele próprio inclui entre as suas influências mais fortes), Paul Thomas Anderson é um criador que encara o cinema, não como um instrumento vocacionado para a reprodução do que quer que seja, antes uma máquina de estranhos poderes que, ao reproduzir, abre uma ferida irreparável naquilo que dá a ver. Ou ainda: a realidade não é a mera confirmação daquilo que esteve à frente da câmara, antes um ponto de fuga cuja instabilidade define as coordenadas do nosso ser (e não ser).
Paul Thomas Anderson consegue, assim, construir grandes e fascinantes frescos sobre momentos emblemáticos da história dos EUA, discutindo, ponto por ponto, os clichés que os habitam. O retrato do cinema pornográfico nos anos 70/80 (Jogos de Prazer, 1997), a evocação da corrida ao petróleo no começo do séc. XX (Haverá Sangue, 2007) ou, agora, os anos 70 de Los Angeles assombrados pela cruel ressaca das utopias da década de 60, sustentam uma visão crítica do seu país que, em qualquer caso, envolve um desencantado amor. Nesta perspectiva, através do seu elaborado experimentalismo narrativo, ele é um autor de vocação eminentemente clássica — eis um belíssimo paradoxo artístico.

"Timbuktu" vence Césars franceses

A produção franco-mauritânia Timbuktu, de Abderrahmane Sissako, foi a grande vencedora da 40ª cerimónia dos Césars do cinema francês, arrebatando o prémio de melhor filme do ano e mais seis distinções nas categorias de realização, montagem, fotografia, argumento original, som e música. O filme de Sissako — nomeado para o Oscar de melhor filme estrangeiro — aborda a situação dramática de uma família de pastores, numa região do Mali, em 2012, sob o jugo de fundamentalistas religiosos — a sua distribuição em Portugal está assegurada pela Midas Filmes (com estreia agendada para 16 de Abril).

>>> Lista integral dos vencedores no jornal Libération.
>>> Site oficial da Academia das Artes e Técnicas do Cinema (França).

quinta-feira, fevereiro 19, 2015

A vida cultural de Christian Grey

As reflexões em torno de As Cinquenta Sombras de Grey quase sempre escamoteiam a dimensão cultural do fenómeno. Em boa verdade, não há nada mais visceralmente cultural, esclarecedor sobre o mundo em que vivemos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 de Fevereiro), com o título 'Atribulações culturais do sexo'.

O sexo e a sua perturbação mais íntima... Sim, porque não? Mas quem se lembra de Esplendor na Relva (1961), com Natalie Wood e Warren Beatty dirigidos por Elia Kazan? Para além da histeria mediática dos nossos dias, onde está o carinho pela memória do cinema?
Dito de outro modo: não vale a pena lidar com o filme As Cinquentas Sombras de Grey como se fosse uma invasão de forças satânicas. O fenómeno é bastante mais rudimentar: acontece apenas que há quem, à custa de um marketing insidioso e agressivo, nos sirva uma versão requentada do velhinho Nove Semanas e Meia (1986), conseguindo a proeza de por todos a falar e a escrever sobre o assunto.
O mais interessante está, precisamente, do lado do que se diz e escreve, incluindo, claro, as omnipresentes derivações televisivas. Por exemplo, pessoas como Sam Taylor-Johnson (realizadora) ou Eloise Mumford (uma das intérpretes secundárias), numa atitude insolitamente defensiva, têm tentado “justificar” o filme a partir da energia que reconhecem na personagem de Anastasia (Dakota Johnson), face aos desejos de dominação sexual de Grey (Jamie Dornan). Numa entrevista dada à revista Time, Mumford diz mesmo que “nunca faria um filme que não fortalecesse o poder das mulheres”.
Na sua candura, esta é uma daquelas declarações que favorece a miséria mais ridícula de um pensamento “politicamente” e “moralmente” correcto. Desde quando o discurso de um filme se confunde com os valores, sejam eles quais forem, que determinam o comportamento das personagens centrais? Será que, a partir de agora, O Padrinho (1972) passa a ser um panfleto a favor do crime organizado porque um tal Marlon Brando interpreta um chefe mafioso? Será que vamos mesmo rever a história do cinema, lançando o mesmo Brando para o caixote do lixo porque (imaginem o atrevimento...) escolheu interpretar Don Vito Corleone?
Tudo isto se agrava — num certo sentido, como uma mera confirmação — através do simplismo com que As Cinquentas Sombras de Grey se promove (e é promovido) como um filme sobre... sexo. Na miséria de pensamento que faz lei no espaço mediático, um chicote, algumas algemas e meia dúzia de gemidos mais ou menos exuberantes desencadeiam as mais delirantes “argumentações”, ao mesmo tempo que décadas de formatação da vida sexual (e não só!), diariamente induzida pelos modelos “telenovelescos”, são escamoteados pelo jornalismo que vive de “escândalos” e também, para nossa maior desgraça, pelos discursos políticos que reduzem a vida cultural à gestão de verbas para museus e afins.
As Cinquentas Sombras de Grey é, precisamente, o mais cultural dos objectos. Porquê? Porque a cultura não é algo que se manifeste quando um cineasta ou um escritor aparece nos noticiários das oito da noite. A cultura é uma paisagem de muitas diferenças (e ainda mais tensões) em que, melhor ou pior, apostamos os valores que definem as nossas identidades.

Louis Jourdan (1921 - 2015)

Actor francês, figura de requintada elegância, foi mais popular através dos filmes que fez em Hollywood: Louis Jourdan faleceu no dia 14 de Fevereiro, em Los Angeles — contava 93 anos.
Depois de alguns papéis em França, nomeadamente sob a direcção de Marc Allégret, Jourdan foi um dos actores europeus que, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, tentou a sua sorte na produção americana. O Caso Paradine (1947), de Alfred Hitchcock, seria a sua rampa de lançamento (curiosamente, contra a opinião do próprio Hitchcock que se viu forçado a aceitar a escolha de Jourdan pelo produtor, David O. Selznick — Hitchcock considerava que a suavidade da sua presença contrariava a definição maléfica da personagem que interpretava).
Entre os seus títulos marcantes, incluem-se ainda Carta de uma Desconhecida (1948), obra-prima de Max Ophüls [trailer], Madame Bovary (1949), de Vincente Minnelli, e Gigi (1958), de novo sob a direcção de Minnelli, por certo o seu filme mais popular (que lhe valeu uma nomeação para os Globos de Ouro, na categoria de melhor actor comédia/musical).
A partir dos anos 70 a sua carreira passou, sobretudo, pela televisão; no cinema, uma das suas composições mais visíveis terá sido a do "mau da fita" em 007 - Operação Tentáculo (1983), de John Glen. O Ano do Cometa (1992), de Peter Yates, seria o seu derradeiro filme.


>>> Obituário: Le Monde + New York Times.

Um teledisco interativo para Jack White



Uma experiência "interativa" para acompanhar com imagens o tema That Black Bat Licorice, do álbum Lazaretto do ano passado. Inclui uma versão ao vivo realizada pelo próprio Jack White, uma versão animada por James Blagden e ainda uma versão "headbang" assinada por Brad Holland. Podemos escolher a caminhar entre as três.

Novas edições:
The Art of Noise

“At The End of A Century”
2 CD + DVD Salvo Sound + Vision
3 / 5

Uma das forças maiores na expressão de novas visões nascidas de berço na cultura pop, explorando outras ferramentas ao serviço da linguagem, uma visão que transcendia as formas da canção pop e uma ambição de alma sinfonista – que partia de uma política sofisticada de produção como uma das marcas de identidade – fez dos Art of Noise um dos projetos mais interessantes que a música feita essencialmente (mas não só) com ferramentas electrónicas nos deu a conhecer nos anos 80. Além disso, e pelo peso de discos como o EP de 1983 Into Battle, o álbum de 1984 Who’s Afraid of The Art of Noise (uma das obras-primas da pop não pop dos oitentas) e uma sucessão de singles que lhes valeram mesmo um perfil de grande visibilidade entre 1983 e 1988 não foram contudo suficientes para resistir a uma sucessão de opções menos imaginativas que, por alturas do álbum Below The Waste (1989) os tinham afastado das atenções daqueles que ainda pouco antes os tomavam como peça fulcral do mapa dos sons da época. Meteram baixa… Ou antes, um ponto final. E retomaram a atividade em finais dos anos 90 com uma nova formação (onde entrava oficialmente como elemento o produtor Trevor Horn, uma das almas da ZTT), dando-nos em The Seduction of Claude Debussy um dos seus melhores discos.

Era contudo sol de pouca dura. E o disco ficou aquém do reconhecimento que merecia. Homenagem (em tudo justificada) a Claude Dubussy, nele apontando um exemplo daquela vertigem que tantas vezes vê a passagem do século como fronteira para um tempo novo, os Art of Noise projetavam nesse disco a sua visão fin de siècle, num disco que, com narração de John Hurt, propunha uma ideia de biopic feito de música, ao mesmo tempo que encontrava uma nova materialização – pensada para 1999 – da identidade dos Art of Noise que, mais que nunca, vincavam a vontade de fazer a sua demanda além dos caminhos estritamente pop muitas vezes tomados por tantos outros utilizadores de electrónicas, estabelecendo por um lado evidentes pontes para com as heranças da música orquestral e instrumental (com Debussy naturalmente no horizonte) , por outro procurando diálogos com outras formas (entre elas, e pontualmente, o hip hop).

 O (relativo) insucesso de The Seduction of Claude Debussy talvez tenha ditado o segundo fim, que chegou no ano 2000, depois de trabalhos feitos para as celebrações do milénio. Apesar de reunidos em 2013, sobretudo para atuações ao vivo – uma delas com orquestra – os Art of Noise não juntaram ainda nenhum disco de originais à sua discografia pós-1999. Os últimos anos têm contudo assistido a campanhas de reedição e até mesmo de lançamento de material de arquivo. E este seu novo álbum é mais um caso a juntar a este lote. Com o título At The End of A Century esta é a história – feita de gravações – do que foi a criação dos Art of Noise entre 1995 e 2000, o tempo em que preparou e editou The Seduction of Claude Debussy e que gerou ainda o “perdido” Balance – Music For the Eye. Juntamente com registo (para ver em DVD extra) de atuações ao vivo, este é um olhar sobre o que poderíamos chamar Art Of Noise Mark II. Aqui reencontramos os olhares direcionados a Debussy e à procura das linhas pelas quais fariam o seu biopic em disco. Como em todas as edições de material de arquivo, há aqui mais matéria para velhos crentes que para uma nova geração de seguidores do grupo.

Mais que um “novo álbum” há aqui uma coleção de pistas que definiriam um disco (e expressam, por isso, um olhar sobre o próprio processo criativo). O trabalho final, ou seja, o álbum de 1999, é peça a
(re)descobrir. Este, pelo contrário, é mais uma curiosidade para grandes admiradores e colecionadores.

PS. Este texto foi originalmente publicado n'A Máquina de Escrever

Para ouvir: Kraftwerk em 10 temas



Uma lista de dez temas para fazer um retrato possível dos Kraftwerk.

Podem ler aqui sobre os dez temas que escolhi para integrar esta lista.

Björk, segundo Alex Ross

O jornalista e ensaista Alex Ross, autor do livro O Resto é Ruído, assinou um texto no Guardian sobre Björk, que chega em vésperas do lançamento em suportes físicos do seu novo disco e de uma exposição no MoMA.

Podem ler aqui.

Sound + Vision - 10 anos (12)


Columbine, 10 anos depois
(20 de abril de 2009)

Foi há dez anos. A 20 de Abril de 1999, a manhã da pequena cidade de Columbine, perto de Denver (no Colorado, EUA), acabava com um tiroteio numa escola. Eric Harris e Dylan Klebold mataram, com armas de fogo, 12 colegas e um professor, fazendo do incidente em Columbine um dos mais sangrentos tiroteios na história dos EUA. No total, 15 mortos, entre os quais os dois mentores e executantes do massacare, e uma multidão de feridos chamaram a atenção para as causas que pudessem justificar o que aconteceu. Houve quem atribuísse culpas, fáceis, aos “males” do nosso tempo: a música rock, a Internet, os videojogos violentos... Os Rammstein e Marilyn Manson moraram cedo entre os nomes apontados a dedo. 

Em conversa que tivemos em 2000, quando apresentava o álbum Holy Wood, Manson disse-me inclusivamente: “Na escola de Columbine, onde me atacaram por algo ao qual não estava associado, foram os media quem na realidade criou o caso. Havia quem quisesse ser ouvido e os media deram-lhes espaço. Por isso nem respondi, não ripostei. Essa não era uma batalha minha.” Ao VH-1, quando um dia lhe perguntaram o que teria dito aos responsáveis pelo massacre se com eles pudesse ter falado, Manson simplesmente respondeu: “Nada! Teria ouvido, porque ninguém o fez”. Esta afirmação traduz com mais seriedade o debate levantado depois da “busca” de bodes expiatórios que em alguns media correu depois do massacre. Revelações tendo em conta os perfis dos responsáveis, histórias de exclusão por parte dos colegas e relatos de bullying, medo e intimidação na escola abriram inevitavelmente espaço à reflexão.

O massacre em Columbine teve enorme impacte na cultura popular da última década. Nomes como Eminem, Filter, Chumbawamba ou Marilyn Manson contam-se entre os muitos que levaram o massacre, o debate sobre as suas causas e consequências a canções. Visado pelos media pouco depois do incidente, Manson chegou mesmo a dedicar algumas das canções de Holy Wood, o álbum que editou no ano seguinte, a reflexões sobre Columbine. Ao longo dos anos foram publicados vários títulos sobre o massacre, entre os quais No Easy Answers – The Truth Behind Death at Columbine, memórias de Brooks Brown (um sobrevivente do tiroteio), co-escritas com o jornalista Rob Merritt. No grande ecrã, Columbine passou por Elephant, de Gus Van Sant (na foto), que partiu do incidente para criar uma ficção e por Bowling For Columbine, um documentário de Michael Moore que usava Columbine como mote para debater o livre porte de armas.

quarta-feira, fevereiro 18, 2015

O cinema em destaque
no Sound + Vision Magazine
hoje às 18.30 na Fnac Chiado


A 65ª edição do Festival de Berlim - onde teve estreia mundial o filme Knight of Cups de Terrence Malick, a entrega (já no próximo domingo) dos Óscares de Hollywood e a edição em DVD do filme Nick Cave: 20.000 Dias na Terra são alguns dos assuntos de uma edição do Sound + Vision Magazine que vai ter o cinema no centro das atenções.

É hoje, a partir das 18.30, na Fnac Chiado.

terça-feira, fevereiro 17, 2015

O movimento segundo Paul Smith

Com assinatura do director criativo Alan Aboud, a campanha "Junior" (Primavera/Verão) da marca Paul Smith é um brilhante exercício em torno do movimento, da sua liberdade e também da sua vocação para o imponderável — veja-se os breves segundos deste magnífico video.

A brincar com Dan Deacon

Autor de um dos grandes discos de 2012, simplesmente e simbolicamente intitulado America, o nova-iorquino Dan Deacon (sediado em Baltimore) expunha aí um gosto electrónico cuja vocação sinfónica gerava a extraordinária tetralogia de USA I: Is a Monster, USA II: The Great American Desert, USA III: Rail e USA IV: Manifest. Em todo o caso, nada disso era estranho, bem pelo contrário, a um espírito lúdico que conferia ao seu trabalho a vibração contagiante de uma invenção cujo génio se revela capaz de conter a sua própria irrisão.
O teledisco de Feel the Lightning celebra essa capacidade de brincar com os sons (e as formas... e as cores...), servindo de apresentação do novo álbum, o magnífico Gliss Riffer — podemos escutá-lo, na íntegra, nas páginas da NPR.

domingo, fevereiro 15, 2015

Celebrando a Sinfonia nº 9 de Mahler

Susanna Mälkki
* Sexta, 13 Fev. 2015, 19:00 - Fundação Gulbenkian, Grande Auditório
> Orquestra Gulbenkian / Susanna Mälkki (maestrina)
— Jean Sibelius: Tapiola, op. 112
— Gustav Mahler, Sinfonia nº 9, em Ré maior

Figura de grande prestígio, muito solicitada no circuito internacional, a finlandesa Susanna Mälkki, maestrina convidada principal da Orquestra Gulbenkian, dirigiu uma austera e envolvente performance da nona sinfonia de Mahler, fazendo-nos revisitar um universo de fascinantes ambivalências. Desde logo, pela dimensão filosófica de uma obra marcada pela percepção da vulnerabilidade humana — e a "condição de mortalidade do ser humano", para aplicarmos a expressão de Luís Santos no programa. Depois, pelas clivagens internas de um sistema que, dois anos depois da oitava (a lendária "Sinfonia dos Mil", estreada em 1910), relançava a impossível utopia de uma conciliação absoluta com a natureza. A abertura, com Tapiola, de Sibelius (composição datada de 1926), serviu de adequado prólogo a essa miragem natural em relação à qual a música se assume, de uma só vez, como ponto de fuga dramático e paradoxal e efémera materialização. Em resumo, um concerto tão apoteótico como intimista.

Quinquin, televisão e cinema (2/2)

O Pequeno Quinquin, de Bruno Dumont, é uma maravilhosa proeza, de uma só vez televisiva e cinematográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Fevereiro), com o título 'Reencontro com a poesia'.

[ 1 ]

É bem verdade que a dinâmica cultural em que vivemos está condicionada pelos efeitos normativos de muitos discursos televisivos, desde as formas moralistas de informação até às grosserias da “reality TV”. Seja como for, ainda há países, nomeadamente na Europa, onde a reflexão sobre as formas mais inteligentes de coexistência entre cinema e televisão constituem um dado essencial da paisagem audiovisual.
O Pequeno Quinquin, de Bruno Dumont, um dos acontecimentos maiores de Cannes/2014, constitui um exemplo modelar de tal reflexão. E não tanto porque envolveu a criação paralela de uma mini-série e um filme; sobretudo porque o projecto rejeita por completo essa demagogia corrente segundo a qual a televisão “séria” deve fazer séries “históricas”, com as personagens vestidas com os fatos de “época” acabadinhos de passar a ferro e uma concepção narrativa que, de tão incipiente, nem sequer consegue estabelecer uma relação pertinente com qualquer matriz clássica...
Não sei até que ponto Bruno Dumont se reconhecerá em tal referência, mas com o seu mergulho numa região “esquecida” de França e, em especial, através da utilização de fascinantes actores amadores, O Pequeno Quinquin evoca a crueza poética de alguns dos primeiros títulos de Pier Paolo Pasolini, desde Accattone (1961) até O Evangelo Segundo São Mateus (1966). Há na presença de Alane Delhaye, a criança que interpreta Quinquin, e dos seus companheiros de elenco uma energia física que transforma cada corpo num signo irredutível de verdade. Escusado será dizer que estamos muito longe da visão paternalista do povo tantas vezes imposta pelas encenações televisivas. Hoje em dia, saber aplicar a noção de povo com esta serena intransigência dramática constitui, em sim mesmo, uma declaração política.

John Moloney + Thurston Moore

Thurston Moore sempre praticou desvios mais ou menos sensíveis em relação aos Sonic Youth, algures nesse país de fronteiras instáveis que vai desde as utopias do rock experimental às vertigens do free jazz. Entretanto, ligado a aventuras psicadélicas como os Sunburned Hand of the Man, o baterista John Moloney tem sido, justamente, um aliado de Moore, quer na banda Chelsea Light Moving, quer numa série de experiências/concertos a que deram o nome de Caught on Tape.
Convocando todos os fantasmas do mais puro noise (e escusado será dizer que, neste contexto, a noção de pureza envolve um belo paradoxo), o novo álbum de Moloney/Moore prolonga essa experiência a dois: Full Bleed: Caught on Tape é uma aventura de multifacetada confiança e cumplicidade em que guitarra e bateria se unem numa dinâmica fascinante, tão agreste quanto poética.
Aqui fica o tema Full Bleed; em baixo, o teledisco de Heavenmetal, do álbum homónimo dos Chelsea Light Moving, o único da banda, editado em 2013.


Fotografando as sombras de Grey

Provavelmente, é pena que Sam Taylor-Johnson não tenho podido (ou querido) fazer um filme eminentemente pessoal a partir do argumento de As Cinquenta Sombras de Grey. Porquê? Pelo seu talento, sem dúvida. Mas também porque, quando olhamos para as fotografias que fez durante a rodagem, pressentimos as possibilidades de um outro olhar. Isto porque, de facto, neste conjunto de imagens, há em Dakota Johnson e Jamie Dornan um misto de tensão e vulnerabilidade que o filme, afinal, secundariza — foi a revista W que divulgou o magnífico portfolio.