quinta-feira, fevereiro 26, 2015

A ideologia de Christian Grey

A dimensão ideológica de um filme não resultado do facto de poder haver personagens que assumem um discurso... ideológico: importa discutir a visão do mundo que se constrói, globalmente, através de cada narrativa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Fevereiro), com o título 'Christian Grey ou a ideologia da performance'.

Quando se discute a avalancha mediática, em particular televisiva, que acompanhou o lançamento de As Cinquenta Sombras de Grey não se está necessariamente a fazer juízos moralistas sobre o trabalho deste ou aquele jornalista. O que está em jogo não é a “quantidade” de notícias que se fizeram (muitas delas absolutamente inanes, é um facto). Trata-se, isso sim, de discutir o modo como um objecto sustentado por um marketing tão simplista e agressivo acaba, em muitos casos, por ser apresentado através da linguagem posta a circular pelo próprio marketing.
Há muitas outras maneiras de dizer isto. Eis uma variante justificada pela própria actualidade do mercado: há dias, chegou às salas o prodigioso Vício Intrínseco, de Paul Thomas Anderson, filme que, a partir do romance homónimo de Thomas Pynchon, evoca os fantasmas da década de 1970 através de uma narrativa toda ela marcada por um visão muito crua do sexo e de uma cultura de exaltação do prazer... Pois bem, o leitor poderá corrigir-me se eu estiver enganado, mas não me parece que tenha havido algum noticiário televisivo que lhe tenha dedicado um milésimo do tempo concedido a algemas, chicotes, estreias e ante-estreias de As Cinquenta Sombras de Grey, para mais com as contribuições de exasperante banalidade de “famosos” a quem continua a faltar o bom senso de reconhecerem que não têm nenhuma ideia para partilhar com os outros.
Seria, aliás, interessante que os dispositivos de leitura de determinados filmes fossem também aplicados a As Cinquenta Sombras de Grey. O contraponto, neste caso, pode ser Sniper Americano, de Clint Eastwood. Confesso que me espanta a severidade “política” com que algumas abordagens (emanadas de sectores da esquerda americana) têm condenado o filme pela sua visão da guerra. De facto, o aparato ideológico com que Eastwood aborda a morte em combate, o valor irrisório que pode assumir uma vida e o impossível resgate de qualquer solidão individual é rigorosamente idêntico ao que sustenta o seu sempre mitificado Imperdoável (1992)... Como a mesma visão do mundo suscita paixões tão contraditórias, eis um mistério por esclarecer.
É desconcertante observar como essa severidade “ideológica” se aplica a determinados filmes, enquanto As Cinquenta Sombras de Grey passa, entre os pingos da chuva, como se a única questão pertinente fosse a avaliação métrica das zonas de nudez com que podemos ser gratificados. É mesmo chocante que, num contexto em que tudo se “problematiza”, desde a justiça dos resultados do futebol até aos colarinhos sem gravata de Yanis Varoufakis, pouco ou nada se diga sobre o modo de encenação da personagem de Christian Grey.
Porquê? Porque com ele, e através dele, triunfa a ideologia da pura performance técnica. Christian Grey ficará mesmo como a corporização de um conceito meramente instrumental das actividades humanas, incluindo o sexo, colocado, aliás, exactamente no mesmo plano simbólico da acumulação de riqueza. Ora, não parece que os valores mediáticos dominantes queiram discutir o triunfo desta ideologia anti-humanista. Perante o alarido circundante, podemos até supor que estão empenhados em consagrá-la.