O Pequeno Quinquin, de Bruno Dumont, é uma maravilhosa proeza, de uma só vez televisiva e cinematográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Fevereiro), com o título 'Reencontro com a poesia'.
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É bem verdade que a dinâmica cultural em que vivemos está condicionada pelos efeitos normativos de muitos discursos televisivos, desde as formas moralistas de informação até às grosserias da “reality TV”. Seja como for, ainda há países, nomeadamente na Europa, onde a reflexão sobre as formas mais inteligentes de coexistência entre cinema e televisão constituem um dado essencial da paisagem audiovisual.
O Pequeno Quinquin, de Bruno Dumont, um dos acontecimentos maiores de Cannes/2014, constitui um exemplo modelar de tal reflexão. E não tanto porque envolveu a criação paralela de uma mini-série e um filme; sobretudo porque o projecto rejeita por completo essa demagogia corrente segundo a qual a televisão “séria” deve fazer séries “históricas”, com as personagens vestidas com os fatos de “época” acabadinhos de passar a ferro e uma concepção narrativa que, de tão incipiente, nem sequer consegue estabelecer uma relação pertinente com qualquer matriz clássica...
Não sei até que ponto Bruno Dumont se reconhecerá em tal referência, mas com o seu mergulho numa região “esquecida” de França e, em especial, através da utilização de fascinantes actores amadores, O Pequeno Quinquin evoca a crueza poética de alguns dos primeiros títulos de Pier Paolo Pasolini, desde Accattone (1961) até O Evangelo Segundo São Mateus (1966). Há na presença de Alane Delhaye, a criança que interpreta Quinquin, e dos seus companheiros de elenco uma energia física que transforma cada corpo num signo irredutível de verdade. Escusado será dizer que estamos muito longe da visão paternalista do povo tantas vezes imposta pelas encenações televisivas. Hoje em dia, saber aplicar a noção de povo com esta serena intransigência dramática constitui, em sim mesmo, uma declaração política.