Katherine Waterston |
Paul Thomas Anderson adapta Thomas Pynchon num dos grandes filmes (americanos ou não) do momento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Fevereiro), com o título 'Paradoxo artístico'.
Logo a abrir Vício Intrínseco, preservando uma das primeiras falas do romance de Thomas Pynchon, Paul Thomas Anderson filma Shasta (Katherine Waterston) a aparecer a Larry (Joaquin Phoenix) com uma frase desconcertante: “Julgas o quê, que estás a alucinar?” (Vício Intrínseco, ed. Bertrand, 2009). Está dado o mote: a investigação conduzida por Larry envolve personagens que parecem provir de um país habitado por fantasmas; na cabeça de Harry não há lugar fixo para a fronteira entre o vivido e o imaginado.
Há outra maneira de dizer isto: à maneira de Orson Welles ou Max Ophüls (para apenas citar dois nomes que ele próprio inclui entre as suas influências mais fortes), Paul Thomas Anderson é um criador que encara o cinema, não como um instrumento vocacionado para a reprodução do que quer que seja, antes uma máquina de estranhos poderes que, ao reproduzir, abre uma ferida irreparável naquilo que dá a ver. Ou ainda: a realidade não é a mera confirmação daquilo que esteve à frente da câmara, antes um ponto de fuga cuja instabilidade define as coordenadas do nosso ser (e não ser).
Paul Thomas Anderson consegue, assim, construir grandes e fascinantes frescos sobre momentos emblemáticos da história dos EUA, discutindo, ponto por ponto, os clichés que os habitam. O retrato do cinema pornográfico nos anos 70/80 (Jogos de Prazer, 1997), a evocação da corrida ao petróleo no começo do séc. XX (Haverá Sangue, 2007) ou, agora, os anos 70 de Los Angeles assombrados pela cruel ressaca das utopias da década de 60, sustentam uma visão crítica do seu país que, em qualquer caso, envolve um desencantado amor. Nesta perspectiva, através do seu elaborado experimentalismo narrativo, ele é um autor de vocação eminentemente clássica — eis um belíssimo paradoxo artístico.