As reflexões em torno de As Cinquenta Sombras de Grey quase sempre escamoteiam a dimensão cultural do fenómeno. Em boa verdade, não há nada mais visceralmente cultural, esclarecedor sobre o mundo em que vivemos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 de Fevereiro), com o título 'Atribulações culturais do sexo'.
O sexo e a sua perturbação mais íntima... Sim, porque não? Mas quem se lembra de Esplendor na Relva (1961), com Natalie Wood e Warren Beatty dirigidos por Elia Kazan? Para além da histeria mediática dos nossos dias, onde está o carinho pela memória do cinema?
Dito de outro modo: não vale a pena lidar com o filme As Cinquentas Sombras de Grey como se fosse uma invasão de forças satânicas. O fenómeno é bastante mais rudimentar: acontece apenas que há quem, à custa de um marketing insidioso e agressivo, nos sirva uma versão requentada do velhinho Nove Semanas e Meia (1986), conseguindo a proeza de por todos a falar e a escrever sobre o assunto.
O mais interessante está, precisamente, do lado do que se diz e escreve, incluindo, claro, as omnipresentes derivações televisivas. Por exemplo, pessoas como Sam Taylor-Johnson (realizadora) ou Eloise Mumford (uma das intérpretes secundárias), numa atitude insolitamente defensiva, têm tentado “justificar” o filme a partir da energia que reconhecem na personagem de Anastasia (Dakota Johnson), face aos desejos de dominação sexual de Grey (Jamie Dornan). Numa entrevista dada à revista Time, Mumford diz mesmo que “nunca faria um filme que não fortalecesse o poder das mulheres”.
Na sua candura, esta é uma daquelas declarações que favorece a miséria mais ridícula de um pensamento “politicamente” e “moralmente” correcto. Desde quando o discurso de um filme se confunde com os valores, sejam eles quais forem, que determinam o comportamento das personagens centrais? Será que, a partir de agora, O Padrinho (1972) passa a ser um panfleto a favor do crime organizado porque um tal Marlon Brando interpreta um chefe mafioso? Será que vamos mesmo rever a história do cinema, lançando o mesmo Brando para o caixote do lixo porque (imaginem o atrevimento...) escolheu interpretar Don Vito Corleone?
Tudo isto se agrava — num certo sentido, como uma mera confirmação — através do simplismo com que As Cinquentas Sombras de Grey se promove (e é promovido) como um filme sobre... sexo. Na miséria de pensamento que faz lei no espaço mediático, um chicote, algumas algemas e meia dúzia de gemidos mais ou menos exuberantes desencadeiam as mais delirantes “argumentações”, ao mesmo tempo que décadas de formatação da vida sexual (e não só!), diariamente induzida pelos modelos “telenovelescos”, são escamoteados pelo jornalismo que vive de “escândalos” e também, para nossa maior desgraça, pelos discursos políticos que reduzem a vida cultural à gestão de verbas para museus e afins.
As Cinquentas Sombras de Grey é, precisamente, o mais cultural dos objectos. Porquê? Porque a cultura não é algo que se manifeste quando um cineasta ou um escritor aparece nos noticiários das oito da noite. A cultura é uma paisagem de muitas diferenças (e ainda mais tensões) em que, melhor ou pior, apostamos os valores que definem as nossas identidades.