Afinal, é possível aplicar as mais modernas tecnologias sem ser para deitar abaixo arranha-céus, cena sim, cena não: Kingsman: Serviços Secretos faz-nos acreditar nos mais genuínos poderes do espectáculo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Fevereiro), com o título 'Brincando com as convenções dos filmes de James Bond'.
Nos últimos anos não têm faltado aventuras cinematográficas mais ou menos inter-galácticas, sustentadas pelos mais delirantes efeitos especiais e, quase sempre, protagonizadas por super-heróis. Kingsman: Serviços Secretos pertence a essa tendência, mas com uma diferença essencial: os protagonistas não se apresentam dotados de força sobrenatural, nem se deslocam à velocidade do som — são membros de uma sofisticada sociedade secreta que actua à margem das organizações clássicas (CIA, MI5, etc.), combatendo os mais sinistros líderes do crime.
Colhendo inspiração na série de histórias de banda desenhada criada por Mark Millar e Dave Gibbons, o filme dirigido por Matthew Vaughn explora um imaginário da aventura cujas raízes estão na tradição cinematográfica de James Bond. Com outra diferença importante: as peripécias não estão centradas numa personagem única, tratada como “vedeta” da própria aventura, já que a dinâmica do colectivo Kingsman provém, justamente, do seu sentido de grupo e do militante respeito por uma exigente noção de honra.
O ponto de partida decorre, aliás, de um processo de reparação moral. Envolvido numa missão algures no Médio Oriente, Harry Hart (Colin Firth), agente secreto com o nome de código ‘Galahad’, perde um dos seus homens. Sentindo-se culpado pelo ocorrido, faz questão em ser ele a entregar uma medalha de mérito à viúva e ao seu filho, o pequeno Eggsy. Hart dá a Eggsy um cartão com um contacto telefónico, garantindo-lhe que pode a ele recorrer em qualquer situação de apuro, bastando para tal ligar e pronunciar uma frase codificada... Dezassete anos mais tarde, detido pela polícia, Eggsy (Taron Egerton) irá mesmo usar o número que Hart lhe deu — e Hart oferece-lhe a possibilidade de participar numa série de testes visando a sua integração no Kingsman.
Pode haver drama, mas tudo isto se passa num universo carregado de ironia. Desde logo, porque o mundo secreto de Kingsman existe numa espécie de limbo social em que é tão importante saber guardar os segredos das suas actividades como manter uma fachada de serena respeitabilidade: a entrada nas instalações — onde permanecem o metódico Arthur (Michael Caine), coordenando as operações, e Merlin (Mark Strong), treinando os jovens candidatos — faz-se mesmo através de uma muito tradicional alfaiataria inglesa. Depois, porque, afinal à boa maneira de James Bond, os agentes secretos da Kingsman não estão a resolver problemas banais, mas a... salvar o mundo!
O mau da fita dá pelo nome de Valentine (Samuel L. Jackson). Montou uma estratégia maquiavélica para contrariar o crescimento exponencial da população do planeta Terra: o plano passa por uma oferta global de cartões de telemóveis que permitirão a qualquer cidadão, em qualquer país, aceder gratuitamente a comunicações e Internet. Na prática, Valentine está apostado em dizimar milhões de pessoas, preservando apenas uma casta de ricos e poderosos.
Distribuído internacionalmente por um grande estúdio americano (20th Century Fox), Kingsman é, no essencial, um produto de fabricação britânica. E não apenas porque Matthew Vaughn é inglês. Acontece que o essencial da rodagem decorreu em Inglaterra, quer em estúdio, quer em cenários lendários como o Imperial College de Londres (cujas instalações serviram para criar alguns espaços do quartel-general da organização de espiões). Além do mais, de Colin Firth ao quase estreante Taron Egerton, o elenco é maioritariamente inglês, contando-se entre as excepções Samuel L. Jackson e Mark Hamill (o célebre Luke Skywalker de A Guerra das Estrelas).
No contexto anglo-saxónico deste tipo de produções, com um orçamento de 81 milhões de dólares, Kingsman emerge como um filme “barato”, sobretudo face a títulos com super-heróis que tendem a custar, no mínimo, o dobro desse valor. O seu primeiro fim de semana nas salas americanas foi comercialmente consistente (36 milhões), embora tenha ficado pelo segundo lugar do top, liderado pelo omnipresente As Cinquenta Sombras de Grey.