segunda-feira, março 31, 2014
Novas edições: Elliphant, Revolusion
Da agenda de lançamentos para este mês de abril apresenta-se o EP Look Like you Love de Elliphant. Este é um dos temas do alinhamento do disco.
Novas edições:
Metronomy, Love Letters
Metronomy
“Love Letters”
Parlophone Music Portugal
3 / 5
Não há mal nenhum numa banda (ou artista) que opta por ensaiar novos caminhos (e sonoridades) a cada novo disco. E basta lembrarmos a discografia notável de uns Talk Talk ou a que os These New Puritans estão a construir para reconhecer quão motivadora pode ser esse constante estado de desafio, tanto para os músicos como para quem os segue. Os Metronomy, de certa maneira, têm procurado não se repetir a cada disco que nos mostram, tando alcançado no anterior The English Riviera (2011) um sedutor patamar pop feito de formas cuidadas na produção e pleno de ecos de heranças do grande livro dos oitentas. Três anos depois Love Letters é um disco que, uma vez mais, assume a vontade de experimentar outros territórios (não radicalmente diferentes, é verdade), mostrando uma coleção de canções dominadas pelo calor de teclados analógicos, todavia sob atmosferas de melancolia (aqui vincando o maior dos contrastes para com o disco anterior, do qual inevitavelmente acabamos sempre a recordar o belo The Look). À partida convenhamos que é premissa interessante o assumir de um território instrumentalmente bem definido quando pela frente temos um corpo de canções que assim se podem relacional em jeito de um “ciclo”. Se os teclados analógicos são a voz que define os ambientes, é entre heranças de formas dos setentas que as canções encontram raízes, num terreno que abre mesmo assim horizontes desde os azimutes de paisagismo pastoral e mesmo do prog, e pontuais incursões por ecos da primeira cultura pop eletrónica que anunciou a chegada dos oitentas (como se escuta em Boy Racers, que lembra ideias do álbum de estreia dos Visage). O disco é contudo mais interessante enquanto experiência sonora que como coleção de canções, apenas no tema-título ou em Monstruous se aproximando do que fez os maiores argumentos de English Riviera. Coerente, é certo. Mas sem o fulgor do disco anterior.
Viagem a uma noite de 1984 com Derek Jarman
A edição 2014 do London Flare apresentou a estreia mundial póstuma de 'Will You Dance With Me?', filme do realizador britânico que surge de imagens captadas com uma câmara VHS numa noite de 1984 numa discoteca. Este texto foi originalmente publicado na edição de 30 de março do DN.
Nem tinha título nem estava planeada sequer a sua exibição pública. Mas sob a designação Will You Dance with Me?, a sala 1 da sede do British Film Institute (BFI), em Londres, assistiu esta semana à estreia mundial de um filme inédito de Derek Jarman. Nos 20 anos da morte do realizador, o BFI tem realizado uma série de iniciativas que recordam a sua obra e esta estreia foi integrada numa sessão única do London Flare (a designação do festival de cinema gay e lésbico organizado pelo BFI), e contou com a presença em sala de Ron Peck, o autor de Nighthawks (1978), com quem Jarman colaborava num novo projeto para o qual estas imagens foram captadas.
Will You Dance with Me? é na verdade uma sucessão de imagens captadas pelo próprio Jarman com uma câmara de vídeo VHS, surgidas numa etapa de preparação da rodagem de Empire State, de Ron Peck. A 5 de setembro de 1984, Derek Jarman foi convidado a registar uma série de "improvisações" (como descreve a folha de sala) na etapa de preparação de Empire State. As imagens foram captadas no Benjy"s, uma discoteca local em Mile End (que foi das primeiras a programar noites gay que "se tornaram muito populares localmente"). As imagens que Peck captou com alguns performers convidados acabaram perdidas. Mas as que Jarman registou com uma câmara Olympus são as que dão agora origem a este filme.
Naquela noite estavam cerca de cem pessoas na discoteca, entre clientes habituais e o seu staff e algumas pessoas que a produção havia convidado. Jarman acompanha a evolução do que acontece entre a pista de dança e o bar, escutando uma banda sonora que provém diretamente da cabina do DJ, que ora rodava os singles que animavam o fenómeno break dance - como Breakin'... There"s no Stopping Us de Ollie & Jerry, Break Dance Party dos Break Machine ou Let the Music Play de Shanon - ou êxitos pop do momento como Relax e Two Tribes dos Frankie Goes to Hollywood, High Energy de Evelyn Thomas ou Whatever I Do Wherever I Go de Hazel Dean.
Segundo explicou Ron Peck na apresentação do filme, Derek Jarman fora desafiado a procurar naquela noite novas formas de filmar a dança. A folha de sala apresenta este filme "sem princípio nem fim" como "mais uma experiência do que uma peça pré-progamada" e nota que, 30 anos depois, "o seu grande interesse é o de ser documento de um lugar e um tempo" e serve de evidência "do entusiasmo e das qualidades de Derek ao operar a câmara".
Sem um programa narrativo, a verdade é que a câmara acaba por sugerir a evolução dos comportamentos (e dos gostos de quem dança e como dança) ao longo da noite. Jarman escolhe alguns dos presentes e a eles regressa regularmente, tanto que, mesmo sem serem "montadas" (uma vez que estão apenas sequenciadas), as imagens acabam por sugerir personagens, situações (ocasionalmente bem-humoradas) e até uma sugestão de progressão narrativa. Ao perguntar a um dos jovens na pista (Phil Williamson, que depois seria seu ator em The Angelic Conversation) se dançaria consigo, Jarman lança uma dúvida que, com uma certa dose de suspense, nos acompanha ao logo dos 78 minutos do filme. Dançará ou não o jovem com o realizador?... A forma como filma quem dança e observa quem ali está e a música ambiente acabam por sugerir uma experiência imersiva, a câmara levando-nos assim no tempo àquela noite e àquele lugar.
Nem tinha título nem estava planeada sequer a sua exibição pública. Mas sob a designação Will You Dance with Me?, a sala 1 da sede do British Film Institute (BFI), em Londres, assistiu esta semana à estreia mundial de um filme inédito de Derek Jarman. Nos 20 anos da morte do realizador, o BFI tem realizado uma série de iniciativas que recordam a sua obra e esta estreia foi integrada numa sessão única do London Flare (a designação do festival de cinema gay e lésbico organizado pelo BFI), e contou com a presença em sala de Ron Peck, o autor de Nighthawks (1978), com quem Jarman colaborava num novo projeto para o qual estas imagens foram captadas.
Will You Dance with Me? é na verdade uma sucessão de imagens captadas pelo próprio Jarman com uma câmara de vídeo VHS, surgidas numa etapa de preparação da rodagem de Empire State, de Ron Peck. A 5 de setembro de 1984, Derek Jarman foi convidado a registar uma série de "improvisações" (como descreve a folha de sala) na etapa de preparação de Empire State. As imagens foram captadas no Benjy"s, uma discoteca local em Mile End (que foi das primeiras a programar noites gay que "se tornaram muito populares localmente"). As imagens que Peck captou com alguns performers convidados acabaram perdidas. Mas as que Jarman registou com uma câmara Olympus são as que dão agora origem a este filme.
Naquela noite estavam cerca de cem pessoas na discoteca, entre clientes habituais e o seu staff e algumas pessoas que a produção havia convidado. Jarman acompanha a evolução do que acontece entre a pista de dança e o bar, escutando uma banda sonora que provém diretamente da cabina do DJ, que ora rodava os singles que animavam o fenómeno break dance - como Breakin'... There"s no Stopping Us de Ollie & Jerry, Break Dance Party dos Break Machine ou Let the Music Play de Shanon - ou êxitos pop do momento como Relax e Two Tribes dos Frankie Goes to Hollywood, High Energy de Evelyn Thomas ou Whatever I Do Wherever I Go de Hazel Dean.
Segundo explicou Ron Peck na apresentação do filme, Derek Jarman fora desafiado a procurar naquela noite novas formas de filmar a dança. A folha de sala apresenta este filme "sem princípio nem fim" como "mais uma experiência do que uma peça pré-progamada" e nota que, 30 anos depois, "o seu grande interesse é o de ser documento de um lugar e um tempo" e serve de evidência "do entusiasmo e das qualidades de Derek ao operar a câmara".
Sem um programa narrativo, a verdade é que a câmara acaba por sugerir a evolução dos comportamentos (e dos gostos de quem dança e como dança) ao longo da noite. Jarman escolhe alguns dos presentes e a eles regressa regularmente, tanto que, mesmo sem serem "montadas" (uma vez que estão apenas sequenciadas), as imagens acabam por sugerir personagens, situações (ocasionalmente bem-humoradas) e até uma sugestão de progressão narrativa. Ao perguntar a um dos jovens na pista (Phil Williamson, que depois seria seu ator em The Angelic Conversation) se dançaria consigo, Jarman lança uma dúvida que, com uma certa dose de suspense, nos acompanha ao logo dos 78 minutos do filme. Dançará ou não o jovem com o realizador?... A forma como filma quem dança e observa quem ali está e a música ambiente acabam por sugerir uma experiência imersiva, a câmara levando-nos assim no tempo àquela noite e àquele lugar.
Para ouvir: St. Vincent em remistura Darkside
St Vincent acaba de apresentar uma remistura para o tema Digital Witness, do alinhamento do seu álbum editado já este ano, numa remistura assinada pelo projeto Darkside, onde militam Nicolas Jaar e Dave Harrington.
Podem escutar aqui, via Other People.
Elvis, ao jeito dos Pet Shop Boys
Ao longo da discografia dos Pet Shop Boys são já inúmeros os instantes em que escutámos o grupo a reinventar temas de outros autores. Um dos primeiros exemplos de uma forma muito pessoal de cantar as canções dos outros chegou em 1987, quando gravaram uma versão de uma canção que ganhou visibilidade na voz de Elvis Presley. Com evidente “alma” à la Pet Shop Boys, a versão de Always on My Mind acabaria por gerar mesmo um dos singles de maior sucesso da discografia do duo. A versão surgiu por ocasião de um programa televisivo que assinalava então os dez anos da morte de Elvis. A receção que a versão recebeu levou-os a ponderar gravar o tema. E fez-se história.
domingo, março 30, 2014
Oswald Morris (1915 - 2014)
Lendário director de fotografia da indústria cinematográfica britânica, Oswald Morris faleceu no dia 17 de Março, na sua casa de Fontmell Magna, na região inglesa de Dorset — contava 98 anos.
Distinguido com o Oscar de melhor fotografia por Um Violino no Telhado (1971), de Norman Jewison, Morris começou por trabalhar como assistente de Ronald Neame e David Lean nos estúdios de Pinewood, estreando-se como director num aventura dirigida pelo primeiro, Golden Salamander/O Fantasma do Deserto (1950). Na sua admirável versatilidade, soube criar imagens essenciais a muitos títulos notáveis, desde a geometria do preto e branco — por exemplo, em Lolita (1962), de Stanley Kubrick, ou A Colina Maldita (1965), de Sidney Lumet — até às mais sofisticadas paletas de cores, como em Moulin Rouge (1952), de John Huston, assumindo a inspiração da pintura de Toulouse-Lautrec (interpretado no filme por José Ferrer). Huston foi, aliás, um dos cineastas com quem mais frequentemente colaborou (nove filmes no total), nomeadamente em Moby Dick (1956) e Reflexos num Olho Dourado (1967), este uma proeza invulgar no sentido de encontrar um look assombrado, capaz de "figurar" os fantasmas sexuais da personagem central, interpretada por Marlon Brando.
Movendo-se com igual à vontade em ambientes ligeiros ou dramáticos, a filmografia de Morris inclui a direcção fotográfica de títulos tão diversos como O Espião Que Saiu do Frio (1965), de Martin Ritt, Adeus, Mr. Chips (1969), de Herbert Ross, Autópsia de um Crime (1972), derradeiro e genial filme assinado por Joseph L. Mankiewicz, 007 - O Homem da Pistola Dourada (1974), de Guy Hamilton, ou Equus (1977), de Sidney Lumet. Em 1999, a American Society of Cinematographers distinguiu-o com o seu prémio internacional.
Sue Lyon — LOLITA (1962) |
O HOMEM DA PISTOLA DOURADA (1974) |
Trailer de MOULIN ROUGE (1952)
>>> Obituário no New York Times.
Uma imagem do PS — que mudança?
1988, campanha presidencial em França — não se trata de promover qualquer cartaz como modelo universal seja do que for, mas apenas de reconhecer que, por vezes, há casos em que sentimos a enérgica e inteligente conjugação de uma "mensagem" política com um determinado pensamento figurativo. Não creio que François Mitterand tenha ganho apenas, nem sobretudo, por causa deste cartaz — o certo é que ganhou, entre muitas outras coisas, com este cartaz.
* * * * *
1. A oposição direita/esquerda tornou-se um conceito dramaticamente incompleto para dar conta dos problemas que a sociedade portuguesa enfrenta. A possibilidade de discutir os seus limites descritivos e argumentativos ficou mesmo como uma das mais belas heranças filosóficas do 25 de Abril, mas não se vê muita gente, em nenhuma zona do espectro partidário, com disponibilidade mental para lidar com os desafios que tal herança envolve.
2. No plano da figuração visual, os tempos têm sido mesmo de triste homogeneização — todos os responsáveis de todos os partidos gostam de dizer coisas muito "modernas" sobre o nosso mundo de imagens, mas a correspondência prática de tal atitude é, de um modo geral, pouco mais que anedótica. Recorde-se, a propósito, o que se passou durante as últimas eleições autárquicas: os partidos encheram as cidades e vilas portuguesas com os mais anódinos cartazes que alguma vez se produziram entre nós [exemplo aqui em baixo], coincidindo na mesmíssima representação dos seus candidatos em patéticas imagens photomaton, cada um menos apelativo que o outro, unindo direitas e esquerdas na mesma fealdade sem imaginação nem pensamento — sim, a beleza também é uma questão política...
3. O cartaz com que o Partido Socialista iniciou a sua campanha para as eleições para o Parlamento Europeu é mais uma trágica expressão de todo esse vazio, não apenas ideológico e político, mas sobretudo existencial e afectivo. A utilização da palavra "mudança", solitária em fundo azul (a esquerda há muito concedeu ao Partido Comunista a "propriedade" simbólica do vermelho...), reflecte um wishful thinking que já não sabe em que cenário se figurar, nem que discurso desenvolver — avança-se com uma palavra mágica, lança-se num grande oceano de coisa nenhuma e espera-se que, através desse gesto infantil, chegue alguma resposta dos deuses da mudança...
4. Qualquer outro partido, governamental ou não, com um mínimo de ironia, já teria contraposto um cartaz com qualquer coisa como "a mudança, qual mudança?" — mas, neste desespero visual, como esperar alguma coisa minimamente inventiva de uma classe política que sabe apregoar tudo sobre a "nova sociedade da informação", mas nunca gastou a energia de um neurónio a tentar pensar o que isso significa?
5. Chegamos, assim, ao grau zero da imaginação política e do imaginário social — alguém, algures, acreditou que a palavra mudança em fundo azul é uma grande ideia de intervenção pública, além do mais justificando o orçamento inerente à colocação de cartazes por todo o país. O mesmo país em que a discussão (?) do "contraditório" em torno de José Sócrates parece encerrar o segredo que nos vai libertar de todas as nossas crises...
A teatralidade de Tom Ford
Nome de excelência no mundo da moda e notável realizador de um filme — Um Homem Singular (2009), com Colin Firth, adaptando o romance de Christopher Isherwood —, Tom Ford é também um brilhante criador visual. E, em particular, fotográfico. Assim volta a acontecer através das imagens que promovem as suas novas colecções, disponíveis na loja online — um genuíno teatro da intimidade, sensual e abstracto, próximo e inacessível.
Um olhar maior sobre Bernstein
Há antologias e antologias... Mas esta bate as demais aos pontos. Não apenas pela dimensão (inclui 59 CD, um DVD, um livro, e tudo isto numa caixa com as dimensões da capa um álbum de vini), como também pelo protagonista que coloca na berlinda e a vastidão de obras (épocas e formas) que as gravações aqui documentam. Apresentada como The Leonard Bernstein Collection – Volume One, esta caixa antológica enceta assim uma revisão do catálogo que o compositor e maestro norte-americano registou no período em que esteve ligado à Deutsche Grammophon (sendo importante referir aqui que outra etapa significativa do seu percurso discográfico foi registada pela Columbia Records, etiqueta hoje integrada na Sony Music).
Os primeiros 15 CDs são dedicados a Beethoven, recuperando gravações das suas sinfonias, de três dos seus cinco Concertos Para Piano, aberturas, versões orquestradas de quartetos de cordas, a Missa Solene e a ópera Fidelio.
O segundo corpo maior desta recolha foca obras do próprio Bernstein, entre as quais as suas sinfonias, alguns bailados (como Fancy Free, Dybukk ou On The Town), canções, a suite criada a partir da música que compôs para Há Lodo no Cais, de Elia Kazan, elementos da Missa, a opereta Candide, a ópera A Quiet Place (que integra Trouble In Tahiti), a White House Cantata e a música de West Side Story. O DVD acrescenta um ponto de vista a esta última obra, levando-nos aos bastidores de uma gravação.
A caixa passa ainda por obras de Lizst, Britten, Brahms (as quatro sinfonias e concertos), Bizet (uma Carmen), Bruckner, Debussy, Dvorák, Elgar, Haydn, Franck, Roussel, Hindemith, Arrigo Boïto e pelos norte-americanos Aaron Copland e Del Tredici, Roy Harris e William Howard Schuman.
De fora fica, para já, a importantíssima contribuição de Bernstein para a (re)descoberta da obra de Mahler, que possivelmente será assim uma peça central num eventual segundo volume, ainda não anunciado.
A diversidade de registos sublinha as qualidades raras do maestro. Mas a coexistência de exemplos de direção de orquestra com a presença de obras da sua autoria deixa claro que nem só de um grande maestro se deve falar quando se fala de Bernstein. Ele foi, sem dúvida, um dos maiores compositores do século XX e um dos que mais soube mostrar como foi do diálogo entre géneros e das vivências entre referencias distintas que viveu a cultura na idade da comunicação. Ele sendo assim uma das suas maiores vozes.
Os sons que nascem do silêncio,
segundo Eleni Karaindrou (1)
Iniciamos hoje a apresentação de uma entrevista com a compositora grega Eleni Karaindrou, originalmente publicada no suplemento Q. do DN com o título “Liberdade e silêncio, na música de Eleni Karaindrou”.
Durante os primeiros sete anos da sua vida toda a música que escutava era a que se cantava durante o trabalho, em festas ou na igreja. Não havia eletricidade nem rádio nem cinema por perto... Mas o que essa menina grega mais escutava então era sobretudo “a música do vento na floresta”, como ela mesmo descreveu em conversa ao DN. E se hoje caminharmos entre os discos de Eleni Karaindrou, notamos que um sentido de espaço livre e aberto e essas memórias das periferias do silêncio são experiências que ela nunca mais esqueceu.
Nasceu em 1941 em Teichio, uma aldeia nas montanhas, a 700 metros de altitude, na Grécia central, a cerca de 80 quilómetros de Delfos. “Tenho muita nostalgia dessa vida de liberdade total, de um silêncio extraordinário”, recorda. Além dos sons das florestas que rodeavam a aldeia, era da voz humana que chegavam as suas primeiras experiências musicais. “As mulheres, a cada ocasião festiva ou em trabalhos em conjunto, entoavam canções polifónicas muito belas”, lembra a compositora, acrescentando que “havia também um espaço de contacto com a música bizantina na igreja”. Em criança vivia perto da igreja e “mesmo se ali não estivesse escutava a música”. Essa terá sido mesmo sua “primeira influência”, à qual junta “o som do clarinete popular que era tocado em festas”. Referências nos universos da “música rural popular”, descreve.
A mudança para Atenas, aos sete anos, alargou consideravelmente a sua exposição ao mundo dos sons. O seu pai era professor de Matemática no liceu e, nesses dias, a família habitava um espaço na cave da escola onde ele ensinava. Em frente havia um cinema ao ar livre. “Há muitos na Grécia”, comenta, recordando como ali podia ver os filmes e, depois, “olhando para cima, ver as estrelas”. Para a jovem acabada de chegar da montanha “aquilo era muito bizarro, algo que não compreendia”. Na aldeia “só havia candeeiros a petróleo”. E as memórias do primeiro carro que viu datam do momento em que dali saíra: “Era um camião que fazia grrrrrr e pareceu-me um monstro”, descreve. Na cidade via agora os filmes, “fossem ou não para crianças”. E quando ia dormir “escutava a música dos filmes” que passavam numa sessão mais tardia. Mal imaginando certamente que um dia estaria também ela do outro lado do ecrã.
Outra importante influência formadora foi um piano que descobriu na escola. “No verão, quando não havia aulas, subia as escadas, entrava nas salas e numa delas estava um piano” pelo qual diz que se apaixonou. “Comecei a tocar... Era algo magnífico e o meu pai pôs-me a estudar música numa senhora que ensinava o piano”, recorda. Começou assim a estudar música aos sete anos e nesse período os seus amores “eram também a rádio dos vizinhos, onde escutava árias de ópera”. A vizinha “era de uma família russa culta, que tinha saído do país por razões politicas”. Aos dez anos, quando chegou ao Conservatório, tinha já um leque bem mais alargado de referências. E ali estudou durante 17 anos. “Ouvia a música de várias épocas, estudei de Bach a Beethoven, mas ainda sem ter então contacto com o jazz”. Focava então as atenções “apenas na música clássica, estudava e fazia exames”. Tudo isto em simultâneo com os estudos não musicais no liceu e, depois, na universidade, onde aprendeu história e arqueologia: “O meu pai queria que eu tivesse algo sólido”, comenta. Mas essa foi, como ela mesmo hoje reconhece, “uma cultura importante” na sua formação.
Nasceu em 1941 em Teichio, uma aldeia nas montanhas, a 700 metros de altitude, na Grécia central, a cerca de 80 quilómetros de Delfos. “Tenho muita nostalgia dessa vida de liberdade total, de um silêncio extraordinário”, recorda. Além dos sons das florestas que rodeavam a aldeia, era da voz humana que chegavam as suas primeiras experiências musicais. “As mulheres, a cada ocasião festiva ou em trabalhos em conjunto, entoavam canções polifónicas muito belas”, lembra a compositora, acrescentando que “havia também um espaço de contacto com a música bizantina na igreja”. Em criança vivia perto da igreja e “mesmo se ali não estivesse escutava a música”. Essa terá sido mesmo sua “primeira influência”, à qual junta “o som do clarinete popular que era tocado em festas”. Referências nos universos da “música rural popular”, descreve.
A mudança para Atenas, aos sete anos, alargou consideravelmente a sua exposição ao mundo dos sons. O seu pai era professor de Matemática no liceu e, nesses dias, a família habitava um espaço na cave da escola onde ele ensinava. Em frente havia um cinema ao ar livre. “Há muitos na Grécia”, comenta, recordando como ali podia ver os filmes e, depois, “olhando para cima, ver as estrelas”. Para a jovem acabada de chegar da montanha “aquilo era muito bizarro, algo que não compreendia”. Na aldeia “só havia candeeiros a petróleo”. E as memórias do primeiro carro que viu datam do momento em que dali saíra: “Era um camião que fazia grrrrrr e pareceu-me um monstro”, descreve. Na cidade via agora os filmes, “fossem ou não para crianças”. E quando ia dormir “escutava a música dos filmes” que passavam numa sessão mais tardia. Mal imaginando certamente que um dia estaria também ela do outro lado do ecrã.
Outra importante influência formadora foi um piano que descobriu na escola. “No verão, quando não havia aulas, subia as escadas, entrava nas salas e numa delas estava um piano” pelo qual diz que se apaixonou. “Comecei a tocar... Era algo magnífico e o meu pai pôs-me a estudar música numa senhora que ensinava o piano”, recorda. Começou assim a estudar música aos sete anos e nesse período os seus amores “eram também a rádio dos vizinhos, onde escutava árias de ópera”. A vizinha “era de uma família russa culta, que tinha saído do país por razões politicas”. Aos dez anos, quando chegou ao Conservatório, tinha já um leque bem mais alargado de referências. E ali estudou durante 17 anos. “Ouvia a música de várias épocas, estudei de Bach a Beethoven, mas ainda sem ter então contacto com o jazz”. Focava então as atenções “apenas na música clássica, estudava e fazia exames”. Tudo isto em simultâneo com os estudos não musicais no liceu e, depois, na universidade, onde aprendeu história e arqueologia: “O meu pai queria que eu tivesse algo sólido”, comenta. Mas essa foi, como ela mesmo hoje reconhece, “uma cultura importante” na sua formação.
A vida e o momento político que a Grécia então vivia (sob uma ditadura) levou-a Paris em 1967. “Passei dificuldades enormes, mas recebi uma bolsa do governo francês e continuei a estudar etnomusicologia, que era uma disciplina que tinha descoberto e me tinha encantado, porque tratava das tradições orais de músicas de todo o mundo, o que me ajudou a compreender o tesouro da música grega”. Em paralelo seguiu por essa mesma altura um sonho antigo ao inscrever-se numa escola para aprender composição e direção de orquestra, opção que lhe preparava outros horizontes no sentido do que realmente queria fazer: a composição. “A principio, na Grécia, como não sabia nada de orquestração, compunha para o piano. Em Paris comecei a compor peças mais elaboradas. O meu professor disse-me que o compositor nasce e não se forma. E isso marcou-me. Eu já tinha começado a compor como sentia... Tinha um sentido de liberdade. Toda a vida o senti. Não são as leis que formam o compositor, mas a imaginação”, justifica.
(continua)
Bowie em 45 RPM (53)
Em outubro de 1980 o segundo single extraído do alinhamento de Scary Monsters destacou Fashion, aquele que foi o último tema trabalhado nas sessões desse disco e que de certa forma é herdeiro de uma linhagem que tem raiz numa relação com o funk que teve expressão maior em Young Americans. Com Scream Like a Baby no lado B, o single manteve Bowie sob atenções na Europa e representou o seu regresso a um patamar de maior visibilidade nos EUA.
sábado, março 29, 2014
Publicidade do iPhone: quem está a olhar?
A. Na sua brevidade (30 segundos) e intensa sedução, este novo anúncio do iPhone 5s constitui um objecto exemplarmente revelador das coordenadas dominantes daquilo que poderemos chamar uma nova cultura da imagem. De que se trata? De celebrar a possibilidade de registar um evento mediático — um desfile de moda — com os próprios telemóveis, devidamente potenciados pelos diversos gadgets capazes de multiplicar a sua eficácia. Fascinante, sem dúvida. Mas o que é que essa palavra, eficácia, passou a envolver? Em boa verdade, apenas uma noção acelerada de performance, não por acaso associada a um cenário frequentemente parasitado pela ideologia simplista da "fama" e dos "famosos".
B. A pergunta que emerge provém, assim, de uma cultura nobre, hoje em dia banalizada, por vezes televisivamente reprimida — é a cultura cinéfila, com o seu saber ancestral que leva a que reconheçamos na imagem, não exactamente a "transcrição" do que quer que seja, mas o labor específico de um olhar particular. Trata-se de saber, afinal, quem está a olhar?
C. A resposta implícita no spot é esta: já não importa quem olha, como olha, que visão constrói... Trata-se tão só de garantir uma vertigem de "movimento" permanente em que o centro já não é o olhar, mas o próprio instrumento técnico, quer dizer, o telemóvel. Daí também a festiva vacuidade da cultura corrente da "personalização" (do consumo e dos objectos) — por um lado, enquanto consumidores, é exaltada a nossa singularidade; por outro lado, somos convocados para um universo em que todos os olhares e todas as imagens se equivalem num dispositivo repetitivo, satisfeito com a possibilidade pueril de passar, incessantemente, de uma imagem para outra. Há uma maneira política de dizer isto: oferecem-nos a miragem do prazer eternamente repetido, ao mesmo tempo que perdemos a ideia de fruição.
"O caso Sócrates" — a sequela
HENRI MATISSE Flores 1945 |
1. Uma vez mais, o país televisivo agitou-se por causa da presença de José Sócrates na televisão. É uma discussão pueril e ociosa que, como todas as desventuras do género, se espalha como um vírus nas “redes” de má língua que se dizem “sociais”. Envolve exactamente a mesma irrisão dos demagogos que apregoam os horrores da reality TV como “aquilo que o povo quer”, tentando passar entre os pingos da chuva mediática sem enfrentar a mais funda questão estética: como representamos o factor humano? E também a mais rudimentar certeza social: o povo não faz programações, quer dizer, programar envolve escolhas filosóficas e responsabilidades sociais.
2. José Sócrates pode ser visto como a mais violenta encarnação do demónio (coisa que até pode dar um excelente romance, mas não vejo nenhum dos seus inimigos com talento suficiente para o escrever). Não é essa a questão que aqui se refere, mas sim aquilo que obviamente o excede — chamemos-lhe o “caso Sócrates” — e o seu terrível valor sintomático. Em relação a quê? Ao funcionamento da nossa democracia televisiva e, sobretudo, à trágica escassez de pensamento que a faz mover.
3. De facto, há décadas que o pequeno ecrã nos presenteia com os mais variados comentadores políticos. Dos mais inteligentes aos banalmente medíocres, pluralidade é coisa que não nos tem faltado. Podem falar para um interlocutor mais ou menos memorável, ou tentar que as suas preces cheguem aos céus. Podem dizer coisas interessantíssimas sobre os seus partidos e nem sempre tão interessantes sobre os partidos dos outros. E por aí fora... Mas ninguém esboça a mais pequena dúvida sobre a pertinência e o valor social do pobre imaginário político que sustenta a sua figuração televisiva, a não ser quando o “contraditório” nos permite, finalmente, saber o sexo dos anjos.
4. Claro que, com muito ou pouco talento (não é isso que está em causa), Sócrates também é uma personagem desse imaginário político. O que não se compreende é que ele suscite tão caricatos jogos florais, quando todos os outros são igual expressão do mesmo banal sistema de enquadramento televisivo da política...
5. Há, talvez, uma explicação: todos os comentadores políticos foram escolhidos pelo “povo” — Sócrates entrou no estúdio disfarçado de concorrente de O Preço Certo.
No mundo de "Obediência" (2/2)
O que é, afinal, o quotidiano? E como é que, no seu interior, nos relacionamos com o(s) outro(s)? — este texto integrava um dossier sobre o filme Obediência, de Craig Zobel, publicado no Diário de Notícias (22 Março).
[ 1 ]
Vivemos tempos em que alguns cidadãos com efectivo poder de influência — desde os políticos aos apresentadores de notícias televisivas — alimentam um tabu em torno da noção de “redes sociais”. Evoca-se a sua actividade por tudo e por nada (muitas vezes como caução pueril de “verdade”), mas bloqueia-se uma questão fulcral: afinal, que sociedade construímos quando estamos em rede?
Quer isto dizer que damos pouca atenção aos próprios lugares físicos que habitamos, não pensando os efeitos dos modernos circuitos de comunicação nesses lugares. Obediência, de Craig Zobel, é um espantoso filme sobre a perturbação que tudo isso pode envolver. A história (baseada em factos verídicos) começa num espaço que pode simbolizar a própria banalidade institucionalizada: um restaurante de hamburgers... A partir do momento em que um telefonema de alguém (que se identifica como um polícia) começa a alterar o funcionamento daquele lugar, gerando situações de extrema violência moral, compreendemos que o “fait divers” está muito para além do anedótico.
A questão que emerge não é estranha à que importa colocar a propósito do Big Brother televisivo. A saber: como é possível que haja cidadãos que aceitem construir uma imagem de tão atroz degradação humana? No caso de Obediência, a pergunta pode ser reformulada com uma nuance importante: como é possível que o discurso da ordem (policial, neste caso) conduza algumas pessoas a menosprezar os direitos mais básicos do seu semelhante? Aliás, o título original, Compliance, envolve não apenas a noção de obediência, mas também uma atitude de complacência e aquiescência. Dito de outro modo: o melhor cinema moderno continua a ajudar-nos a pensar a vida social que, tantas vezes, a televisão reduz a um naturalismo mentiroso.
sexta-feira, março 28, 2014
Lorenzo Semple Jr. (1923 - 2014)
FOTO: Festival de Karlovy Vary |
Com uma actividade que se desenvolveu ao longo de meio século, o argumentista americano Lorenzo Semple Jr. faleceu de causas naturais, em sua casa, em Los Angeles, a 28 de Março, um dia depois de ter completado 91 anos.
Começou por escrever contos para publicações como The Saturday Evening Post e Collier's Weekly e, depois, peças de teatro. A adaptação de uma das suas peças, The Golden Fleecing, foi comprada por um estúdio de Hollywood, abrindo-lhe as portas da indústria — seria produzida como The Honeymoon Machine (1961), comédia com Steve McQueen, dirigida por Richard Thorpe.
Os seus títulos mais citados estão ligados ao registo da aventura, primeiro em televisão com a série Batman (1966-68), depois no cinema, nomeadamente com Papillon (1973), de Franklin J. Shaffner, King Kong (1976), de John Guillermin, Flash Gordon (1980), de Mike Hodges, e Nunca Mais Digas Nunca (1983), o filme de Irving Kershner com o qual Sean Connery regressou à personagem de James Bond. De qualquer modo, os trabalhos mais sofisticados de Lorenzo Semple Jr. pertencem ao domínio do thriller político, com destaque para A Última Testemunha (1974), de Alan J. Pakula, Sangue Frio em Água Quente (1975), de Stuart Rosenberg, e Os Três Dias do Condor (1975), de Sydney Pollack — protagonizados, respectivamente, por Warren Beatty, Paul Newman e Robert Redford. Em 2008, foi homenageado pela Writers Guild of America.
Os seus títulos mais citados estão ligados ao registo da aventura, primeiro em televisão com a série Batman (1966-68), depois no cinema, nomeadamente com Papillon (1973), de Franklin J. Shaffner, King Kong (1976), de John Guillermin, Flash Gordon (1980), de Mike Hodges, e Nunca Mais Digas Nunca (1983), o filme de Irving Kershner com o qual Sean Connery regressou à personagem de James Bond. De qualquer modo, os trabalhos mais sofisticados de Lorenzo Semple Jr. pertencem ao domínio do thriller político, com destaque para A Última Testemunha (1974), de Alan J. Pakula, Sangue Frio em Água Quente (1975), de Stuart Rosenberg, e Os Três Dias do Condor (1975), de Sydney Pollack — protagonizados, respectivamente, por Warren Beatty, Paul Newman e Robert Redford. Em 2008, foi homenageado pela Writers Guild of America.
>>> Trailer de Os Três Dias do Condor.
>>> Obituário em The Wrap.
A cinefilia segundo o Google
Como está pensado o comércio dos filmes na Net? Se considerarmos o caso do Google Play, a resposta, para já, parece ser: não está pensado... — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Março).
Face às alternativas para ver filmes na Net, não faz sentido alimentarmos fundamentalismos cinéfilos. Podemos lamentar que haja toda uma geração de espectadores que não foi educada para procurar os prazeres e singularidades da sala escura. E é inevitável reconhecer que a pirataria se tornou um problema tanto mais grave quanto, para muita gente, passou a ser vivido com obscena naturalidade. Seja como for, é também um facto que a diversificação do consumo através das plataformas virtuais constitui um dado incontornável da actualidade — e, por certo, por vezes, permitindo aceder a obras mais ou menos raras e preciosas.
Vêm estas considerações a propósito de um facto obviamente importante: a abertura de uma nova loja portuguesa de filmes, lançada pelo Google Play. E o mínimo que se pode dizer é que as limitações da oferta são frustrantes. É certo que a iniciativa está no princípio e podemos admitir que, num prazo mais ou menos curto, irá adquirindo uma fundamental diversidade. Seja como for, a primeira sensação é de muitas misturas sem nexo, obedecendo a uma grelha de géneros (“acção e aventura”, “família”, “comédia”, “drama”, “terror”) convencional e preguiçosa. As notas informativas são quase sempre abreviadas e mais ou menos inócuas, com zero de contextualização histórica, estética ou económica; umas em inglês, outras num português abrasileirado... O sistema de pesquisa está cheio de imprecisões grosseiras (por exemplo, se procurarmos filmes com Paul Newman, até nos aparece o DVD de Yellow Brick Road, de Elton John) e a antologia de textos críticos, incluindo os do público (?), é um glorioso disparate: a par de links para coisas muito sérias, escritas, por exemplo, por jornalistas dos EUA, pode aparecer um qualquer nómada das “redes sociais” que, sob um pseudónimo mais ou menos divertido, espirra este profundíssimo pensamento sobre um filme: “Cool!”.
Infelizmente, nada disto se esgota num eventual atraso no aperfeiçoamento técnico da loja. E dificilmente será corrigido através de um mero (e, em qualquer caso, desejável) aumento da oferta de títulos. Acontece que a sensibilidade cinéfila está, de facto, em crise. Sob o efeito de uma cultura televisiva de “formatos” e “reality TV”, o cinema é encarado como coisa pitoresca, superficial e anedótica, sem história, sem memória e, em última instância, sem dignidade.
Confiando na “democracia” do vale tudo, o Google Play integra mesmo, com serena indiferença, as classificações dadas pelo público, o que faz, por exemplo, com que qualquer título da saga American Pie ou o Psico, de Hitchcock, sejam consagrados com as mesmas alegres quatro estrelinhas... E não se julgue que eu estava à espera de grandes pensamentos “universitários”. O que me parece é que tudo isto reflecte uma dramática ausência de qualquer pensamento genuinamente comercial.
Vêm estas considerações a propósito de um facto obviamente importante: a abertura de uma nova loja portuguesa de filmes, lançada pelo Google Play. E o mínimo que se pode dizer é que as limitações da oferta são frustrantes. É certo que a iniciativa está no princípio e podemos admitir que, num prazo mais ou menos curto, irá adquirindo uma fundamental diversidade. Seja como for, a primeira sensação é de muitas misturas sem nexo, obedecendo a uma grelha de géneros (“acção e aventura”, “família”, “comédia”, “drama”, “terror”) convencional e preguiçosa. As notas informativas são quase sempre abreviadas e mais ou menos inócuas, com zero de contextualização histórica, estética ou económica; umas em inglês, outras num português abrasileirado... O sistema de pesquisa está cheio de imprecisões grosseiras (por exemplo, se procurarmos filmes com Paul Newman, até nos aparece o DVD de Yellow Brick Road, de Elton John) e a antologia de textos críticos, incluindo os do público (?), é um glorioso disparate: a par de links para coisas muito sérias, escritas, por exemplo, por jornalistas dos EUA, pode aparecer um qualquer nómada das “redes sociais” que, sob um pseudónimo mais ou menos divertido, espirra este profundíssimo pensamento sobre um filme: “Cool!”.
Infelizmente, nada disto se esgota num eventual atraso no aperfeiçoamento técnico da loja. E dificilmente será corrigido através de um mero (e, em qualquer caso, desejável) aumento da oferta de títulos. Acontece que a sensibilidade cinéfila está, de facto, em crise. Sob o efeito de uma cultura televisiva de “formatos” e “reality TV”, o cinema é encarado como coisa pitoresca, superficial e anedótica, sem história, sem memória e, em última instância, sem dignidade.
Confiando na “democracia” do vale tudo, o Google Play integra mesmo, com serena indiferença, as classificações dadas pelo público, o que faz, por exemplo, com que qualquer título da saga American Pie ou o Psico, de Hitchcock, sejam consagrados com as mesmas alegres quatro estrelinhas... E não se julgue que eu estava à espera de grandes pensamentos “universitários”. O que me parece é que tudo isto reflecte uma dramática ausência de qualquer pensamento genuinamente comercial.
No mundo de "Obediência" (1/2)
O que é, afinal, o quotidiano? E como é que, no seu interior, nos relacionamos com o(s) outro(s)? — este texto integrava um dossier sobre o filme Obediência, de Craig Zobel, publicado no Diário de Notícias (22 Março).
A situação descrita no filme de Craig Zobel, Obediência, poderá parecer o resultado da imaginação delirante de um mau argumentista à procura de situações “chocantes”. Basta dizer que tudo se passa num dia rotineiro de um restaurante de hamburgers; a certa altura, a gerente, de nome Sandra (Ann Dowd), recebe um telefonema de um oficial da polícia que diz que recebeu uma queixa de uma cliente do restaurante, alegando que foi roubada por Becky (Dreama Walker), uma das empregadas...
Há qualquer coisa de bizarro naquele telefonema. O certo é que, empenhada em corresponder à preocupação da voz que lhe telefona, Sandra vai satisfazendo todas as suas exigências, começando por interrogar Becky, revistando-a, depois despindo-a, obrigando-a a permanecer como uma prisioneira numa arrecadação... A situação vai-se transformando num pequeno teatro do absurdo, crescentemente contaminada por uma perturbante violência emocional.
Pois bem, Obediência não é exactamente um “thriller” psicológico mais ou menos surreal, mas sim um filme baseado em factos verídicos. De facto, ao longo de cerca de dez anos, entre meados da década de 90 e 2004, foram registadas 70 ocorrências deste teor em diversas cidades dos EUA, quase sempre através de telefonemas feitos para restaurantes de “fast food”, por vezes para mercearias ou pequenos supermercados.
Escusado será dizer que Obediência é tudo menos um filme consensual. Mas é também, por isso mesmo, uma proposta de cinema a que não se fica indiferente. Michael Philips (Chicago Tribune), um dos críticos americanos que mais empenhadamente defendeu o trabalho de Zobel, definindo-o como “sério” e “Incómodo”, terá resumido de forma sugestiva a teia em que somos envolvidos: “É um filme que aborda algo que está em nós, ou seja, a assustadora disponibilidade para acreditarmos e não acreditarmos em simultâneo, ao mesmo tempo que sabemos que algo de terrível está a acontecer mesmo se nada fazemos, ou não fazemos o suficiente, para o contrariar”.
Curiosamente, sendo uma típica produção independente, estreada no Festival de Sundance de 2012, Obediência inclui no seu elenco alguns nomes que já passaram por produções de outra dimensão, ligadas aos grandes estúdios de Hollywood. Dreama Walker, por exemplo, trabalhou sob a direcção de Clint Eastwood em Gran Torino (2008), no papel da neta da figura central, interpretada pelo próprio Eastwood. Quando a Ann Dowd, trata-se de uma talentosa secundária, veterana do cinema e da televisão, que passou por títulos como Filadélfia (1993), e o Candidato da Verdade (2008), ambos de Jonathan Demme, tendo surgido mais recentemente em Efeitos Secundários (2013), de Steven Soderbergh, e no episódio final da série da HBO, já estreada no ano corrente, True Detective.
terça-feira, março 25, 2014
Angel Olsen — 4 canções na rádio
Angel Olsen é um talento genuíno: o seu canto, oscilando um certo primitivismo folk e um rock de arestas muito vivas, exprime-se de modo exemplar no álbum Burn Your Fire For No Witness. Precisamente para apresentar esse novo registo, Olsen passou pela KEXP, uma rádio de Seattle. Vale a pena ouvir, incluindo a conversa com a locutora, Cheryl Waters, provando que fazer rádio não é o mesmo que dizer disparates e esperar que os convidados lancem gargalhadas mais ou menos embaraçadas — que falta nos faz esta serena alegria de saber conversar...
segunda-feira, março 24, 2014
Wadjda ou a história de uma bicicleta
Wadjda é uma menina de tem 11 anos, quer uma bicicleta, vive na Arábia Saudita... e não é fácil conciliar tudo isso: O Sonho de Wadjda é o primeiro filme totalmente rodado na Arábia Saudita e a primeira longa-metragem de ficção dirigida por uma mulher saudita — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Março), com o título 'Como contar a sua história?'.
Creio que seria (ou será) um erro tentarmos estabelecer uma relação com o filme O Sonho de Wadjda a partir de qualquer pressuposto enraizado no feminismo ocidental. É bem verdade que Wadjda (a luminosa Waad Mohammed) vive num universo em que a simples ambição de ter uma bicicleta pode ser considerada coisa inadequada pela autoridade familiar ou escolar... Em todo o caso, estaríamos a trair os seus sentimentos mais fundos se a encarássemos como militante de um qualquer programa de “libertação” feminina.
Na sua serenidade descritiva, a realização de Haifaa al-Mansour não está à procura de um sentido redentor que confira ao filme o estatuto de objecto de “denúncia”. Aliás, tal conceito implicaria duas coisas complementares: por um lado, alguma memória histórica que ajudasse a situar o sistema de regras e valores no interior do qual Wadjda se movimenta; por outro lado, um projecto de acção que conferisse à sua vontade de ter uma bicicleta uma lógica global de intervenção. Ora, pode dizer-se que O Sonho de Wadjda é uma narrativa sem passado nem futuro — tudo o que acontece, mesmo a participação na competição de recitação do Corão, surge-nos com a intensidade de um presente absoluto. Daí a ternura que circula por todo o filme, evitando reduzir as suas personagens a banal expressão de uma qualquer ideia mais ou menos “simbólica”, fixa e formatada.
Estamos, afinal, perante um acontecimento genuinamente cinematográfico — e, mais do que isso, cinéfilo. Nada a ver com o voluntarismo simplista de muitas reportagens televisivas que julgam que colocar um microfone à frente de alguém, pedindo-lhe “conte-nos a sua história”, constitui um processo automático de conhecimento intocável. Bem pelo contrário, este é o retrato de uma personagem que não sabe muito bem como contar a sua história, mas que pressente que ter uma bicicleta pode ser... um acontecimento histórico. Para ela, e não só.
França — a impotência à esquerda
* Não é um problema de saber ou não saber perder. Já basta a miséria do imaginário futebolístico. E não se trata de negar a inquietação que qualquer sensibilidade humanista não pode deixar de manifestar face ao avanço da Frente Nacional (FN), de extrema-direita, em sucessivos actos eleitorais em França. Muito menos de recusar reconhecer que o tecido social francês tem revelado sinais de um nacionalismo agressivo, tintado de diversas formas de perigosa xenofobia. A questão que aqui se refere é outra. A saber: a impotência que se instalou à esquerda.
* Impotência de quê? Pois bem, de compreender que "todo o mundo é composto de mudança", não da repetição de ideias ou ideais que teriam adquirido, ad aeternum, a vocação e o privilégio de nos indicar, sem nuances nem alteridade, o sentido da história.
* Assim, como é que o Libération resume, em título, o triunfo da FN nas municipais francesas? Denunciando o "medo" que se abate "sobre as cidades". A inspiração cinéfila não é famosa, nem mesmo como ironia de esquerda, remetendo para um policial medíocre, Peur Sur la Ville (1975), com Jean-Paul Belmondo dirigido pelo não muito brilhante Henri Verneuil — em todo o caso, a passagem para o plural (la ville / les villes) pode resumir o mais velho vício ideológico da esquerda: o de tentar resgatar-se do Mal, generalizando-o como um problema dos outros.
* Em defesa dos profissionais do Libération, há que dizer que o seu noticiário & análise das eleições é francamente menos simplista do que a sua manchete pode fazer supor. Em todo o caso, a escolha das grandes condensações simbólicas é sempre reveladora, neste caso de uma visão (jornalística) do mundo que prefere instalar-se no comodismo abstracto dos vectores "trágicos" em vez de lidar com o mais difícil de tudo — os factos, hélas!
* É bem certo que a problematização da vida política a partir da dicotomia direita/esquerda está há muito decrépita — a sua superação foi mesmo, entre nós, uma das hipóteses utópicas do 25 de Abril, embora não se ouça ninguém a falar disso... —, mas já que é dessa dicotomia que se trata, ao menos que se considerem as duas partes. É o que faz o jornal Le Monde, lembrando que o triunfo da FN não pode ser pensado sem referir o Partido Socialista como elemento "sancionado". Apesar de tudo, é francamente mais salutar do que tentar castigar com a fúria dos deuses (do medo) todos aqueles que não se reconhecem na razão universal com que a esquerda se apresenta e representa — e na sua auto-proclamada vocação redentora.
domingo, março 23, 2014
Patrice Wymore (1926 - 2014)
Foi uma das jovens actrizes lançadas pela Warner no começo dos anos 40: Patrice Wymore faleceu de causas naturais no dia 22 de Março, em Portland, Jamaica — contava 87 anos.
Depois de ter tido uma juventude ligada ao vaudeville, integrando as digressões da sua família de artistas, foi contratada pela Warner, estreando-se em 1950, em Chá para Dois, um dos típicos veículos de Doris Day. No mesmo ano, contracenou com Errol Flynn, em Rocky Mountain/Abnegação Heróica [trailer], sob a direcção de Willam Keighley. Flynn e Wymore viriam a casar-se, assim permanecendo até ao falecimento do actor, em 1959, embora na fase final já não vivessem juntos; os problemas de Flynn com o álcool e diversas drogas levaram a um afastamento progressivo do casal — Wymore herdou a herdade da Jamaica que ambos tinham adquirido.
Entre os seus títulos mais conhecidos incluem-se Os Gigantes da Floresta (Felix Feist, 1952) e Ocean's Eleven (Lewis Milestone, 1960), o filme com Frank Sinatra e Dean Martin, sobre um golpe em Las Vegas, de que Steven Soderbergh extrairia um remake, em 2001, com George Clooney e Brad Pitt. Em televisão surgiu em séries como The Errol Flynn Theatre (1956-57) e Perry Mason (1963-65). Retirou-se em 1967.
>>> Obituário em The Hollywood Reporter.
James Rebhorn (1948 - 2014)
Típico e talentoso character actor do cinema e da televisão, o americano James Rebhorn faleceu em sua casa, em South Orange, New Jersey, no dia 21 de Março, vítima de melanoma — contava 65 anos.
Com uma sólida formação teatral, Rebhorn foi-se impondo como especialista em papéis secundários, muitas vezes de personagens ligadas à política ou aos meios policiais. Entre alguns dos seus títulos de maior impacto, incluem-se Silkwood/Reacção em Cadeia (Mike Nichols, 1983), Sombras e Nevoeiro (Woody Allen, 1991), Perfume de Mulher (Martin Brest, 1992), Dia da Independência (Roland Emmerich, 1996) e O Jogo (David Fincher, 1997). Nos últimos anos, o seu papel mais conhecido foi o de pai da personagem de Claire Danes na série televisiva Homeland/Segurança Nacional.
>>> Obituário em The Hollywood Reporter.
"Mel", a morte e o cinema
Filme "sobre" a eutanásia? Sim... mas não como especulação abstracta, "pró" ou "contra". Antes uma história perturbante de gente singular — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Março), com o título 'O cinema perante a morte'.
Num mundo em que a palavra “sofrimento” passou a ser utilizada para consagrar as equipas de futebol que vencem jogos difíceis, é normal que não se discuta a morte como factor inerente à própria vida — a obscenidade mediática não conhece limites e ignora qualquer forma de pudor. Daí a promoção de ruidosos debates televisivos sobre a eutanásia, dividindo os incautos intérpretes pelo espaço do “sim” e pelo espaço do “não”, todos devidamente encenados numa cenografia simplista... Como se tudo aquilo que envolve as mais delicadas emoções humanas — e também as ideias que as atravessam — pudesse ser reduzido a um plebiscito purificador, universal e maniqueísta.
A eutanásia, precisamente, é o tema de Mel, primeira longa-metragem realizada pela actriz italiana Valeria Golino. Aliás, ao tentarmos lidar com o filme, o problema imediato que enfrentamos é esse que nos leva a identificar um “tema”. Ao fazê-lo, corremos o risco de nos enredarmos nos lugares-comuns de um contexto “informativo” em que viver e morrer são apenas duas palavras susceptíveis da mais grosseira instrumentalização — observe-se, em paralelo, a infinita tristeza argumentativa dos comentadores de futebol que, em nome de uma lei que não sabem enunciar, falam da “justiça” dos resultados.
Digamos, para simplificar, que Mel se centra no dia a dia de uma jovem, interpretada pela admirável Jasmine Trinca (que descobrimos, em 2001, sob a direcção de Nanni Moretti, em O Quarto do Filho), que integra um grupo clandestino que ajuda doentes terminais a pôr termo à vida — chama-se Irene, sendo “Mel” o seu nome de código. As ambivalências inerentes à sua actividade duplicam-se quando, ao envolver-se com o caso de Carlo Grimaldi (o veterano Carlo Cecchi, numa composição de discreta intensidade), descobre que, na verdade, está a lidar com alguém que, embora com uma saúde ferro, manifesta pulsões suicidas...
Quanto mais o filme nos enreda no novelo de sensações e escolhas com que Irene está confrontada, mais se instala uma certeza que Valeria Golino trabalha com a delicadeza de um genuíno e perturbante conto moral. A saber: o silêncio irredutível da morte ecoa, ponto por ponto, nos gestos mais suaves da vida. Mais do que isso: o cinema afirma-se como um dispositivo capaz de sentir e pressentir a indizível violência da morte, não a repelindo das suas narrativas — ou, se preferirem, das suas imagens.
Mel vem inscrever-se, assim, numa gloriosa genealogia cinematográfica a que pertencem títulos como Peeping Tom (Michael Powell, 1960), Lágrimas e Suspiros (Ingmar Bergman, 1972) ou Cosmopolis (David Cronenberg, 2012). Podemos lamentar que o filme se apresente tão desprotegido no mercado e as televisões não o tratem com a evidência que merece. Mas talvez seja melhor assim: na sua relação com os filmes, cada espectador tem também direito à sua solidão e aos problemas que a habitam.
sábado, março 22, 2014
Sporting-Porto, ou a comédia televisiva
TOTÓ EM PARIS (1958) de Camillo Mastrocinque |
O dispositivo televisivo em torno do futebol continua a privilegiar o alarido pelo alarido. E a sua mais patética expressão: o fanatismo — esta crónica foi publicada na revista "Notícias TV" do Diário de Notícias (21 Março), com o título 'A televisão fora de jogo'.
Nos mais diversos canais, ouvi comentadores do futebol a garantir que o Sporting ganhou ao Porto [16 Março] com um golo precedido de fora de jogo. Aliás, a certa altura percebi que o facto envolvia um tão radical grau de certeza que deixou de ser tratado como comentário para passar a ser notícia: o Sporting venceu através de um golo ilegal.
Assim, depois de uma semana em que a campanha do Sporting contra os árbitros mereceu mil vezes mais evidência televisiva do que a estreia nas salas de cinema de uma obra-prima como O Congresso, de Ari Folman, depois de nos terem preparado para uma catástrofe desportiva que iria superar todas as diatribes da Sra. Merkle, depois de tudo isso, o Sporting ganhou... graças a um erro do árbitro! Convenhamos que, mesmo na época gloriosa de Totò, Alberto Sordi e Ugo Tognazzi, nem mesmo a comédia popular italiana conseguiu nada de tão delirante.
Se o leitor não tiver uma visão fanática do futebol (e se chegou até aqui acredito que não), compreenderá que o tema desta crónica não é a “justiça” ou a “injustiça” do golo em causa... Já basta o que basta! Nem sequer a legitimidade de o Sporting protestar contra este mundo e outro como, aliás, ciclicamente, protestam, com idêntico desespero, outros clubes como o Benfica e o Porto.
O que, creio, vale a pena analisar é, uma vez mais, a ligeireza de algumas linguagens televisivas. E não só pela evidência automática que dão a dirigentes e treinadores que perdem sempre (mas sempre!!!) por causa da arbitragem... Pasmo, confesso, com o facto de os árbitros não terem ainda decretado uma greve por tempo indeterminado até serem tratados como seres humanos.
Acontece que tudo isto está a gerar um efeito trágico: este tipo de tratamento televisivo do futebol vai minando, todos os dias, a credibilidade global do próprio jornalismo. Porquê? Porque o espectador alheio a fanatismos não pode deixar de perguntar: afinal, que valor ético leva a privilegiar o alarido pelo alarido, destruindo metodicamente o gosto plural do futebol?
sexta-feira, março 21, 2014
A tragédia de Fruitvale
Fruitvale Station, de Ryan Coogler, é um belo exemplo de um cinema (independente) americano que não abdica de pensar a sua relação com o real, ou melhor, o seu efeito de verdade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Março), com o título 'Oscar Grant e a sua verdade'.
A proliferação de imagens deu origem à ilusão pueril de que cada imagem existe sempre como potencial mecanismo de prova. Prova de verdade, sobretudo: perante a abundância de “informação”, foram-se instalando muitos dispositivos — quase sempre de natureza televisiva — que tentam incutir no espectador a ideia de que o respectivo labor é transparente e, sobretudo, inquestionável. Lembremos o mais universal lugar-comum televisivo: um repórter de microfone na mão, de frente para a câmara, tendo um fundo “informativo”, ilustra a mais pobre noção de contextualização. Na pior das hipóteses — veja-se o sinistro “naturalismo” do Big Brother —, a perda de dignidade de um ser humano face às câmaras é mesmo promovida como apoteose de verdade.
Fruitvale Station [entre nós lançado com o subtítulo A Última Paragem] é um filme consciente dos efeitos de tal conjuntura, quanto mais não seja porque trabalha a partir de um acontecimento — a morte do jovem Oscar Grant na estação de São Francisco a que o título se refere, na passagem do ano de 2008/09 — do qual existem imagens (obtidas por passageiros através dos seus telemóveis). Para o argumentista/realizador Ryan Coogler, não se trata de “duplicar” o impacto emocional de tais imagens, mas sim de recuar. No tempo, entenda-se: este é, afinal, um filme que resiste aos mais diversos maniqueísmos — de geração, classe social ou cor de pele —, mostrando como cada história individual nos projecta num novelo de factos e desejos impossíveis de reduzir a qualquer estereótipo “noticioso”.
Como noutros exemplos do actual cinema americano (de produção independente ou não), nada disso é indiferente ao intenso investimento no trabalho de composição dos actores. Na personagem de Oscar, o excelente Michael B. Jordan pode simbolizar a subtileza psicológica de tal atitude.
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