domingo, março 23, 2014

"Mel", a morte e o cinema

Filme "sobre" a eutanásia? Sim... mas não como especulação abstracta, "pró" ou "contra". Antes uma história perturbante de gente singular — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Março), com o título 'O cinema perante a morte'.

Num mundo em que a palavra “sofrimento” passou a ser utilizada para consagrar as equipas de futebol que vencem jogos difíceis, é normal que não se discuta a morte como factor inerente à própria vida — a obscenidade mediática não conhece limites e ignora qualquer forma de pudor. Daí a promoção de ruidosos debates televisivos sobre a eutanásia, dividindo os incautos intérpretes pelo espaço do “sim” e pelo espaço do “não”, todos devidamente encenados numa cenografia simplista... Como se tudo aquilo que envolve as mais delicadas emoções humanas — e também as ideias que as atravessam — pudesse ser reduzido a um plebiscito purificador, universal e maniqueísta.
A eutanásia, precisamente, é o tema de Mel, primeira longa-metragem realizada pela actriz italiana Valeria Golino. Aliás, ao tentarmos lidar com o filme, o problema imediato que enfrentamos é esse que nos leva a identificar um “tema”. Ao fazê-lo, corremos o risco de nos enredarmos nos lugares-comuns de um contexto “informativo” em que viver e morrer são apenas duas palavras susceptíveis da mais grosseira instrumentalização — observe-se, em paralelo, a infinita tristeza argumentativa dos comentadores de futebol que, em nome de uma lei que não sabem enunciar, falam da “justiça” dos resultados.
Digamos, para simplificar, que Mel se centra no dia a dia de uma jovem, interpretada pela admirável Jasmine Trinca (que descobrimos, em 2001, sob a direcção de Nanni Moretti, em O Quarto do Filho), que integra um grupo clandestino que ajuda doentes terminais a pôr termo à vida — chama-se Irene, sendo “Mel” o seu nome de código. As ambivalências inerentes à sua actividade duplicam-se quando, ao envolver-se com o caso de Carlo Grimaldi (o veterano Carlo Cecchi, numa composição de discreta intensidade), descobre que, na verdade, está a lidar com alguém que, embora com uma saúde ferro, manifesta pulsões suicidas...
Quanto mais o filme nos enreda no novelo de sensações e escolhas com que Irene está confrontada, mais se instala uma certeza que Valeria Golino trabalha com a delicadeza de um genuíno e perturbante conto moral. A saber: o silêncio irredutível da morte ecoa, ponto por ponto, nos gestos mais suaves da vida. Mais do que isso: o cinema afirma-se como um dispositivo capaz de sentir e pressentir a indizível violência da morte, não a repelindo das suas narrativas — ou, se preferirem, das suas imagens.
Mel vem inscrever-se, assim, numa gloriosa genealogia cinematográfica a que pertencem títulos como Peeping Tom (Michael Powell, 1960), Lágrimas e Suspiros (Ingmar Bergman, 1972) ou Cosmopolis (David Cronenberg, 2012). Podemos lamentar que o filme se apresente tão desprotegido no mercado e as televisões não o tratem com a evidência que merece. Mas talvez seja melhor assim: na sua relação com os filmes, cada espectador tem também direito à sua solidão e aos problemas que a habitam.