domingo, março 30, 2014

Os sons que nascem do silêncio,
segundo Eleni Karaindrou (1)

Iniciamos hoje a apresentação de uma entrevista com a compositora grega Eleni Karaindrou, originalmente publicada no suplemento Q. do DN com o título “Liberdade e silêncio, na música de Eleni Karaindrou”.

Durante os primeiros sete anos da sua vida toda a música que escutava era a que se cantava durante o trabalho, em festas ou na igreja. Não havia eletricidade nem rádio nem cinema por perto... Mas o que essa menina grega mais escutava então era sobretudo “a música do vento na floresta”, como ela mesmo descreveu em conversa ao DN. E se hoje caminharmos entre os discos de Eleni Karaindrou, notamos que um sentido de espaço livre e aberto e essas memórias das periferias do silêncio são experiências que ela nunca mais esqueceu.

Nasceu em 1941 em Teichio, uma aldeia nas montanhas, a 700 metros de altitude, na Grécia central, a cerca de 80 quilómetros de Delfos. “Tenho muita nostalgia dessa vida de liberdade total, de um silêncio extraordinário”, recorda. Além dos sons das florestas que rodeavam a aldeia, era da voz humana que chegavam as suas primeiras experiências musicais. “As mulheres, a cada ocasião festiva ou em trabalhos em conjunto, entoavam canções polifónicas muito belas”, lembra a compositora, acrescentando que “havia também um espaço de contacto com a música bizantina na igreja”. Em criança vivia perto da igreja e “mesmo se ali não estivesse escutava a música”. Essa terá sido mesmo sua “primeira influência”, à qual junta “o som do clarinete popular que era tocado em festas”. Referências nos universos da “música rural popular”, descreve.

A mudança para Atenas, aos sete anos, alargou consideravelmente a sua exposição ao mundo dos sons. O seu pai era professor de Matemática no liceu e, nesses dias, a família habitava um espaço na cave da escola onde ele ensinava. Em frente havia um cinema ao ar livre. “Há muitos na Grécia”, comenta, recordando como ali podia ver os filmes e, depois, “olhando para cima, ver as estrelas”. Para a jovem acabada de chegar da montanha “aquilo era muito bizarro, algo que não compreendia”. Na aldeia “só havia candeeiros a petróleo”. E as memórias do primeiro carro que viu datam do momento em que dali saíra: “Era um camião que fazia grrrrrr e pareceu-me um monstro”, descreve. Na cidade via agora os filmes, “fossem ou não para crianças”. E quando ia dormir “escutava a música dos filmes” que passavam numa sessão mais tardia. Mal imaginando certamente que um dia estaria também ela do outro lado do ecrã.

Outra importante influência formadora foi um piano que descobriu na escola. “No verão, quando não havia aulas, subia as escadas, entrava nas salas e numa delas estava um piano” pelo qual diz que se apaixonou. “Comecei a tocar... Era algo magnífico e o meu pai pôs-me a estudar música numa senhora que ensinava o piano”, recorda. Começou assim a estudar música aos sete anos e nesse período os seus amores “eram também a rádio dos vizinhos, onde escutava árias de ópera”. A vizinha “era de uma família russa culta, que tinha saído do país por razões politicas”. Aos dez anos, quando chegou ao Conservatório, tinha já um leque bem mais alargado de referências. E ali estudou durante 17 anos. “Ouvia a música de várias épocas, estudei de Bach a Beethoven, mas ainda sem ter então contacto com o jazz”. Focava então as atenções “apenas na música clássica, estudava e fazia exames”. Tudo isto em simultâneo com os estudos não musicais no liceu e, depois, na universidade, onde aprendeu história e arqueologia: “O meu pai queria que eu tivesse algo sólido”, comenta. Mas essa foi, como ela mesmo hoje reconhece, “uma cultura importante” na sua formação.

A vida e o momento político que a Grécia então vivia (sob uma ditadura) levou-a Paris em 1967. “Passei dificuldades enormes, mas recebi uma bolsa do governo francês e continuei a estudar etnomusicologia, que era uma disciplina que tinha descoberto e me tinha encantado, porque tratava das tradições orais de músicas de todo o mundo, o que me ajudou a compreender o tesouro da música grega”. Em paralelo seguiu por essa mesma altura um sonho antigo ao inscrever-se numa escola para aprender composição e direção de orquestra, opção que lhe preparava outros horizontes no sentido do que realmente queria fazer: a composição. “A principio, na Grécia, como não sabia nada de orquestração, compunha para o piano. Em Paris comecei a compor peças mais elaboradas. O meu professor disse-me que o compositor nasce e não se forma. E isso marcou-me. Eu já tinha começado a compor como sentia... Tinha um sentido de liberdade. Toda a vida o senti. Não são as leis que formam o compositor, mas a imaginação”, justifica.

(continua)