O que é, afinal, o quotidiano? E como é que, no seu interior, nos relacionamos com o(s) outro(s)? — este texto integrava um dossier sobre o filme Obediência, de Craig Zobel, publicado no Diário de Notícias (22 Março).
A situação descrita no filme de Craig Zobel, Obediência, poderá parecer o resultado da imaginação delirante de um mau argumentista à procura de situações “chocantes”. Basta dizer que tudo se passa num dia rotineiro de um restaurante de hamburgers; a certa altura, a gerente, de nome Sandra (Ann Dowd), recebe um telefonema de um oficial da polícia que diz que recebeu uma queixa de uma cliente do restaurante, alegando que foi roubada por Becky (Dreama Walker), uma das empregadas...
Há qualquer coisa de bizarro naquele telefonema. O certo é que, empenhada em corresponder à preocupação da voz que lhe telefona, Sandra vai satisfazendo todas as suas exigências, começando por interrogar Becky, revistando-a, depois despindo-a, obrigando-a a permanecer como uma prisioneira numa arrecadação... A situação vai-se transformando num pequeno teatro do absurdo, crescentemente contaminada por uma perturbante violência emocional.
Pois bem, Obediência não é exactamente um “thriller” psicológico mais ou menos surreal, mas sim um filme baseado em factos verídicos. De facto, ao longo de cerca de dez anos, entre meados da década de 90 e 2004, foram registadas 70 ocorrências deste teor em diversas cidades dos EUA, quase sempre através de telefonemas feitos para restaurantes de “fast food”, por vezes para mercearias ou pequenos supermercados.
Escusado será dizer que Obediência é tudo menos um filme consensual. Mas é também, por isso mesmo, uma proposta de cinema a que não se fica indiferente. Michael Philips (Chicago Tribune), um dos críticos americanos que mais empenhadamente defendeu o trabalho de Zobel, definindo-o como “sério” e “Incómodo”, terá resumido de forma sugestiva a teia em que somos envolvidos: “É um filme que aborda algo que está em nós, ou seja, a assustadora disponibilidade para acreditarmos e não acreditarmos em simultâneo, ao mesmo tempo que sabemos que algo de terrível está a acontecer mesmo se nada fazemos, ou não fazemos o suficiente, para o contrariar”.
Curiosamente, sendo uma típica produção independente, estreada no Festival de Sundance de 2012, Obediência inclui no seu elenco alguns nomes que já passaram por produções de outra dimensão, ligadas aos grandes estúdios de Hollywood. Dreama Walker, por exemplo, trabalhou sob a direcção de Clint Eastwood em Gran Torino (2008), no papel da neta da figura central, interpretada pelo próprio Eastwood. Quando a Ann Dowd, trata-se de uma talentosa secundária, veterana do cinema e da televisão, que passou por títulos como Filadélfia (1993), e o Candidato da Verdade (2008), ambos de Jonathan Demme, tendo surgido mais recentemente em Efeitos Secundários (2013), de Steven Soderbergh, e no episódio final da série da HBO, já estreada no ano corrente, True Detective.