HENRI MATISSE Flores 1945 |
1. Uma vez mais, o país televisivo agitou-se por causa da presença de José Sócrates na televisão. É uma discussão pueril e ociosa que, como todas as desventuras do género, se espalha como um vírus nas “redes” de má língua que se dizem “sociais”. Envolve exactamente a mesma irrisão dos demagogos que apregoam os horrores da reality TV como “aquilo que o povo quer”, tentando passar entre os pingos da chuva mediática sem enfrentar a mais funda questão estética: como representamos o factor humano? E também a mais rudimentar certeza social: o povo não faz programações, quer dizer, programar envolve escolhas filosóficas e responsabilidades sociais.
2. José Sócrates pode ser visto como a mais violenta encarnação do demónio (coisa que até pode dar um excelente romance, mas não vejo nenhum dos seus inimigos com talento suficiente para o escrever). Não é essa a questão que aqui se refere, mas sim aquilo que obviamente o excede — chamemos-lhe o “caso Sócrates” — e o seu terrível valor sintomático. Em relação a quê? Ao funcionamento da nossa democracia televisiva e, sobretudo, à trágica escassez de pensamento que a faz mover.
3. De facto, há décadas que o pequeno ecrã nos presenteia com os mais variados comentadores políticos. Dos mais inteligentes aos banalmente medíocres, pluralidade é coisa que não nos tem faltado. Podem falar para um interlocutor mais ou menos memorável, ou tentar que as suas preces cheguem aos céus. Podem dizer coisas interessantíssimas sobre os seus partidos e nem sempre tão interessantes sobre os partidos dos outros. E por aí fora... Mas ninguém esboça a mais pequena dúvida sobre a pertinência e o valor social do pobre imaginário político que sustenta a sua figuração televisiva, a não ser quando o “contraditório” nos permite, finalmente, saber o sexo dos anjos.
4. Claro que, com muito ou pouco talento (não é isso que está em causa), Sócrates também é uma personagem desse imaginário político. O que não se compreende é que ele suscite tão caricatos jogos florais, quando todos os outros são igual expressão do mesmo banal sistema de enquadramento televisivo da política...
5. Há, talvez, uma explicação: todos os comentadores políticos foram escolhidos pelo “povo” — Sócrates entrou no estúdio disfarçado de concorrente de O Preço Certo.