sábado, março 22, 2014

Sporting-Porto, ou a comédia televisiva

TOTÓ EM PARIS (1958)
de Camillo Mastrocinque
O dispositivo televisivo em torno do futebol continua a privilegiar o alarido pelo alarido. E a sua mais patética expressão: o fanatismo — esta crónica foi publicada na revista "Notícias TV" do Diário de Notícias (21 Março), com o título 'A televisão fora de jogo'.

Nos mais diversos canais, ouvi comentadores do futebol a garantir que o Sporting ganhou ao Porto [16 Março] com um golo precedido de fora de jogo. Aliás, a certa altura percebi que o facto envolvia um tão radical grau de certeza que deixou de ser tratado como comentário para passar a ser notícia: o Sporting venceu através de um golo ilegal.
Assim, depois de uma semana em que a campanha do Sporting contra os árbitros mereceu mil vezes mais evidência televisiva do que a estreia nas salas de cinema de uma obra-prima como O Congresso, de Ari Folman, depois de nos terem preparado para uma catástrofe desportiva que iria superar todas as diatribes da Sra. Merkle, depois de tudo isso, o Sporting ganhou... graças a um erro do árbitro! Convenhamos que, mesmo na época gloriosa de Totò, Alberto Sordi e Ugo Tognazzi, nem mesmo a comédia popular italiana conseguiu nada de tão delirante.
Se o leitor não tiver uma visão fanática do futebol (e se chegou até aqui acredito que não), compreenderá que o tema desta crónica não é a “justiça” ou a “injustiça” do golo em causa... Já basta o que basta! Nem sequer a legitimidade de o Sporting protestar contra este mundo e outro como, aliás, ciclicamente, protestam, com idêntico desespero, outros clubes como o Benfica e o Porto.
O que, creio, vale a pena analisar é, uma vez mais, a ligeireza de algumas linguagens televisivas. E não só pela evidência automática que dão a dirigentes e treinadores que perdem sempre (mas sempre!!!) por causa da arbitragem... Pasmo, confesso, com o facto de os árbitros não terem ainda decretado uma greve por tempo indeterminado até serem tratados como seres humanos.
Acontece que tudo isto está a gerar um efeito trágico: este tipo de tratamento televisivo do futebol vai minando, todos os dias, a credibilidade global do próprio jornalismo. Porquê? Porque o espectador alheio a fanatismos não pode deixar de perguntar: afinal, que valor ético leva a privilegiar o alarido pelo alarido, destruindo metodicamente o gosto plural do futebol?