O que é, afinal, o quotidiano? E como é que, no seu interior, nos relacionamos com o(s) outro(s)? — este texto integrava um dossier sobre o filme Obediência, de Craig Zobel, publicado no Diário de Notícias (22 Março).
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Vivemos tempos em que alguns cidadãos com efectivo poder de influência — desde os políticos aos apresentadores de notícias televisivas — alimentam um tabu em torno da noção de “redes sociais”. Evoca-se a sua actividade por tudo e por nada (muitas vezes como caução pueril de “verdade”), mas bloqueia-se uma questão fulcral: afinal, que sociedade construímos quando estamos em rede?
Quer isto dizer que damos pouca atenção aos próprios lugares físicos que habitamos, não pensando os efeitos dos modernos circuitos de comunicação nesses lugares. Obediência, de Craig Zobel, é um espantoso filme sobre a perturbação que tudo isso pode envolver. A história (baseada em factos verídicos) começa num espaço que pode simbolizar a própria banalidade institucionalizada: um restaurante de hamburgers... A partir do momento em que um telefonema de alguém (que se identifica como um polícia) começa a alterar o funcionamento daquele lugar, gerando situações de extrema violência moral, compreendemos que o “fait divers” está muito para além do anedótico.
A questão que emerge não é estranha à que importa colocar a propósito do Big Brother televisivo. A saber: como é possível que haja cidadãos que aceitem construir uma imagem de tão atroz degradação humana? No caso de Obediência, a pergunta pode ser reformulada com uma nuance importante: como é possível que o discurso da ordem (policial, neste caso) conduza algumas pessoas a menosprezar os direitos mais básicos do seu semelhante? Aliás, o título original, Compliance, envolve não apenas a noção de obediência, mas também uma atitude de complacência e aquiescência. Dito de outro modo: o melhor cinema moderno continua a ajudar-nos a pensar a vida social que, tantas vezes, a televisão reduz a um naturalismo mentiroso.