terça-feira, abril 30, 2019

John Singleton (1968 - 2019)

Entrou na história do cinema como o primeiro afro-americano a obter uma nomeação para o Oscar de melhor realização: John Singleton faleceu no dia 29 de Abril, em Los Angeles, na sequência de um ataque cardíaco — contava 51 anos.
Lançada em 1991, a sua primeira longa-metragem Boyz N the Hood (entre nós A Malta do Bairro) definiu de forma clara a sua preocupação em analisar as vivências das comunidades afro-americanas, neste caso no ghetto de Crenshaw, em Los Angeles. O filme valeu-lhe duas nomeações para os Oscars, uma de argumento original, outra de realização — esta foi a primeira obtida por um afro-americano, além de continuar a ser a do mais jovem cineasta de sempre (Singleton contava, na altura, 24 anos).
Cruzando muitas vezes as temáticas sociais com uma metódica integração de referências musicais enraizadas no rap e no hip hop, dirigiu também, por exemplo, Poetic Justice/Fugir do Bairro (1993), com Janet Jackson e Tupac Shakur, e Higher Learning/Sementes de Raiva (1995). Rosewood/O Massacre (1997), porventura o seu filme mais ambicioso, mas também menos conhecido, evoca o massacre de uma comunidade negra, na Florida, em 1923, num tom trágico raro na produção da época. Seduzido por alguns modelos correntes de espectáculo, assinou uma nova versão de Shaft (2000), com Samuel L. Jackson, e o segundo título da "franchise" The Fast and the Furious (2 Fast 2 Furious/Velocidade + Furiosa, 2003). Foi um dos criadores da série televisiva Snowfall, lançada em 2017. Na sua filmografia encontramos também um teledisco, realizado para a canção Remember the Time (1992), de Michael Jackson.

>>> Trailer de Boyz N the Hood + Remember the Time.




>>> Obituário em The Washington Post.

segunda-feira, abril 29, 2019

Novo single de FKA Twigs

Ainda não há sucessor do álbum de estreia de FKA Twigs, LP1, lançado já há quase cinco anos... Mas a inglesa que canta, compõe e dança continua a surpreender-nos com sinais breves, mas eloquentes, do seu multifacetado talento, movendo-se numa encruzilhada criativa em que tradição e experimentação coexistem com evidente felicidade. Eis o seu novo single, Cellophane, encenado num espantoso ritual de desnudamento com assinatura de Andrew Thomas Huang.

Elle Fanning, actriz e cantora

Eis um filme (e também uma banda sonora) marcado pelo genuíno talento de Elle Fanning: Teen Spirit, filme-estreia de Max Minghella na realização, viaja através dos bastidores de um concurso televisivo para jovens cantores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Abril).

Para o melhor e, por vezes, para o pior, o espaço televisivo contemporâneo especializou-se em elaborar imagens dos jovens como “aqueles que ganham concursos”... Daí a oportunidade de um filme como Teen Spirit, cujo título remete, precisamente, para os bastidores de um concurso de adolescentes cantores. É, aliás, um título sugestivo (“Espírito adolescente”) que não necessitava do simplismo do subtítulo português (“Conquista o Sonho”), como se todas as actividades do nosso quotidiano não estivessem contaminadas pelas mais variadas expressões anglo-saxónicas...
Max Minghella
Teen Spirit marca a estreia na realização de Max Minghella, inglês, 33 anos (filho de Anthony Minghella, o cineasta de O Paciente Inglês e O Talentoso Mr. Ripley). O menos que se pode dizer é que ele revela o bom senso de não favorecer qualquer visão “generalista” dos consursos televisivos (pró ou contra), preferindo convocar as regras clássicas do melodrama juvenil para encenar os altos e baixos da trajectória da jovem Violet. Ela é, afinal, alguém que reage às limitações do seu espaço social para, na procura de uma redenção afectiva, se envolver num concurso televisivo de canções.
É o puro prazer do espectáculo e da performance que seduz Minghella. Daí que ele seja capaz de introduzir um pequeno grão de areia na narrativa televisiva, celebrando antes a singular energia, primitiva e contraditória, da sua heroína. Fundamental para o dispositivo simples, mas contagiante, de Teen Spirit é a composição de Violet pela talentosa Elle Fanning.
Apenas com 21 anos de idade (celebrados no dia 9 de Abril), Fanning é, de facto, um caso sério de talento. Descobrimo-la, apenas com 2 anos, em I Am Sam (2001), filme em que a sua irmã, Dakota Fanning, interpretava a filha de Sean Penn (Elle surgia nos flashbacks da personagem de Dakota). Mais recentemente, vimo-la, por exemplo, em Maléfica (2014), contracenando com Angelina Jolie numa bela reinvenção do espírito clássico das fábulas, ou no magnífico Mulheres do Século XX (2016), de Mike Mills. Além do mais, em Teen Spirit, é ela que interpreta as suas canções — ei-la recriando Little Bird, de Annie Lennox.

sábado, abril 27, 2019

O prazer da leitura segundo "The Guardian"

Subscribe to the joy of print — a recente campanha de angariação de assinaturas de The Guardian celebra a "alegria do papel impresso". Que é como quem diz: num contexto de perturbante complexidade económica & cultural, marcado pelo dramatismo da dicotomia material/virtual (contexto em que, sejam quais forem as determinações geográficas e culturais, ninguém possui respostas seguras), o jornal britânico aposta na revalorização do mais primitivo prazer da leitura.
Concebida pela agência londrina Oliver, a campanha — que integra também The Observer, jornal dominical do mesmo grupo —estabelece um sugestivo contraponto com outras vertentes "sociais" de leitura, acesso a notícias, ideias e opiniões. Por uma vez, é bom encontrar uma iconografia do cidadão (eu, tu, ele...) em que o olhar não surge dependente de um ecrã mais ou menos luminoso, fixando-se antes da singularidade táctil do papel.

Jean-Pierre Marielle (1932 - 2019)

Foi um expoente da versatilidade dos grandes actores secundários do cinema francês: depois de uma doença prolongada, Jean-Pierre Marielle faleceu no dia 24, em Saint-Cloud — contava 87 anos.
Tendo começado pelo teatro, onde construiu uma perene relação de amizade com Jean Rochefort e Jean-Paul Belmondo (o "bando do Conservatório"), impôs-se no cinema através de alguns requintados papéis de comédia em títulos como Assaltaram o Banco (1964), de Jean Girault, e O Diabo à Solta (1969), de Philippe de Broca, contracenando com Louis de Funès e Yves Montand, respectivamente. Em qualquer caso, os seus recursos dramáticos, muitas vezes tingidos de desconcertante sarcasmo, ficaram bem patentes em filmes como Justiceiro por Conta Própria (1981), de Bertrand Tavernier, com Belmondo, ou Todas as Manhãs do Mundo (1991), de Alain Corneau, com Gérard Depardieu.
Trabalhador incansável, possui uma filmografia de mais uma centena de títulos, sempre em ziguezague entre cinema e televisão. A comédia Não Incomodar (2014), de Patrice Leconte, foi o seu último trabalho a ter estreia no mercado português.

>>> Trailer de Todas as Manhãs do Mundo + 10 réplicas da carreira de Jean-Pierre Marielle escolhidas pelo jornal Le Monde.




>>> Obituário em France 24.

sexta-feira, abril 26, 2019

Bruce Springsteen, opus 19

Iconografia de uma América perdida?... Assim é a capa de Western Stars, 19º álbum de estúdio de Bruce Springsteen, anunciado para 14 de Junho (mesmo dia do lançamento de Madame X, de Madonna). Referências? Em parte "os discos pop da Califórnia do Sul de finais dos anos 60, princípios dos anos 70". Eis a primeira canção divulgada, Hello Sunshine, romantismo on the road em estado puro.

Had enough of heartbreak and pain
I had a little sweet spot for the rain
For the rain and skies of gray
Hello sunshine, won't you stay

You know I always liked my walking shoes
But you can get a little too fond of the blues
You walk too far, you walk away
Hello sunshine, won't you stay

You know I always loved a lonely town
Those empty streets, no one around
You fall in love with lonely, you end up that way
Hello sunshine, won't you stay

You know I always liked that empty road
No place to be and miles to go
But miles to go is miles away
Hello sunshine, won't you stay
[...]

Um conto moral sobre o dinheiro

O veterano Denys Arcand continua a olhar, com ironia e crueldade, o seu Canadá: A Queda do Império Americano encerra uma trilogia iniciada, há mais de trinta anos, com O Declínio do Império Americano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Abril).

Cinema americano? Sim, mas não de Hollywood. Eis um filme que provém do Canadá de língua francesa, completando uma trilogia de observação social com tanto de humor como de amargura. De facto, com A Queda do Império Americano, o veterano Denys Arcand (77 anos) encerra um ciclo iniciado há mais de trinta anos com O Declínio do Império Americano (1986) e prolongado com As Invasões Bárbaras (2003); este adquiriu especial destaque: continua a ser a única produção canadiana a arrebatar o Oscar de melhor filme estrangeiro.
Os títulos são, obviamente, irónicos, deixando passar uma “mensagem” com o seu quê de pedagógico: através das mais atribuladas relações humanas, Arcand observa a lenta e angustiante decomposição de muitos valores clássicos, desde o equilíbrio afectivo entre homens e mulheres até à perversão de todos os laços humanos pelo dinheiro.
A Queda do Império Americano é, precisamente, um conto moral sobre o dinheiro. Assumindo também a função de argumentista, tal como nos dois filmes anteriores, Arcand desenha um labirinto de relações que começa num bizarro “fait divers”. O protagonista é um empregado (Alexandre Landry) de uma empresa de transporte de encomendas que se distingue pela sua sofisticada formação... filosófica. Até que um dia se vê confrontado com uma “dádiva” insólita: ao entregar uma encomenda, assiste a um assalto falhado, com os ladrões a deixarem ao seu alcance dois pesadíssimos sacos com dinheiro... Decide guardar os sacos e mudar de vida...
Enfim, para além das peripécias, ora dramáticas, ora burlescas, que vai enfrentar, o protagonista passa a viver uma vertigem com tanto de íntimo como de social. Dito de outro modo: a posse de uma quantidade imensa de dinheiro leva-o (e nós com ele) a descobrir o misto de relativismo e instabilidade das suas relações com os outros.
A arte de Arcand consiste em instalar um implacável tom de sarcasmo sem nunca deixar de explorar um espírito realista que confere ao seu filme a força de uma narrativa ligada ao concreto da sociedade canadiana. Sem esquecer, claro, que tão desencantada visão dos humanos possui um sugestivo simbolismo universal.

quinta-feira, abril 25, 2019

O "espírito" de Abril
(ou a estreia dos "Vingadores")

[ disney.pt ]
1. Protagonistas da cena política e mensageiros do espaço mediático falam-nos do "espírito" de Abril. E com boas razões para o fazer — foi há 45 anos, a 25 de Abril de 1974, que o Movimento das Forças Armadas pôs fim a uma ditadura que estava a enviar os mais jovens (da minha geração) para a guerra.

2. Mas importa perceber em que contexto tal acontece. Os discursos daqueles protagonistas e mensageiros mantêm-se confinados a um voluntarismo de pueril utopismo, não revelando a mais simples disponibilidade para... olhar à sua volta.

3. Na verdade, mediaticamente e nos circuitos virtuais, a data surge polarizada em torno da estreia do filme Vingadores: Endgame, confirmando que a circulação de muitos valores dominantes no espaço cultural passou a ser gerida por entidades como a Marvel Pictures.

4. A nossa cultura democrática pode, e deve, exigir-nos que pensemos tal conjuntura a partir de toda uma complexa e, por vezes, perturbante dinâmica passado/presente (que, como é óbvio, nada tem a ver com a demonização de entidades como a Marvel).

5. Trata-se apenas de começar por reconhecer que o "espírito" de Abril não existe como uma espécie de milagroso "abre-te Sésamo", capaz de nos converter em emissários e agentes de uma pureza histórica que, como num filme de super-heróis, nos oferece as flores de um futuro radioso. De facto, neste tempo em que o "social" passou a ser uma questão de redes, a poesia não está na rua — e não creio que seja matéria dominante nos ecrãs de cinema.

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA
1974

quarta-feira, abril 24, 2019

Madonna + Maluma

Tal como previsto, o "cha-cha-cha" de Madonna já tem teledisco. Medellín, primeiro single do álbum Madame X [14 Junho: SOUND + VISION Magazine, Fnac, Chiado], aí está num exuberante teledisco em que os autores-intérpretes — Madonna e o colombiano Maluma — protagonizam um casamento entrecortado por sinais de uma solidão exposta na confissão inicial: romântico, ma non troppo.


A IMAGEM: Greenpeace, 2019

[Agência: DDB]

Gary Clark Jr. em concerto na rádio

Depois de Blak and Blu (2012) e The Story of Sonny Boy Slim (2015), o terceiro álbum de Gary Clark Jr., This Land, tinha sido anunciado pelo poderoso teledisco do tema-título. A respectiva divulgação levou-o recentemente ao pequeno (e quente!...) espaço da NPR para uma magnífica edição dos 'Tiny Desk Concerts'. Ei-lo, com a sua banda, a interpretar What About Us, When I'm Gone e Pearl Cadillac.

Stan Lee, Vingadores e... Billy Joel

STAN LEE
A promoção do novo filme da Marvel, Vingadores: Endgame, fundamenta-se numa estratégia de ocupação & saturação de todas as plataformas de comunicação — o objectivo é impor um efeito imediato, global e incontornável. Um dos exemplos mais curiosos dessa asfixia mediática que todos atinge (e que, de uma maneira ou de outra, todos confirmamos) surgiu em forma de teledisco: eis o clássico We Didn't Start the Fire, de Billy Joel, reinterpretado pelo elenco do filme (com uma letra que transfigura as memórias pessoais de Billy Joel em antologia de episódios da série Vingadores); em baixo, o original, lançado em 1989.



terça-feira, abril 23, 2019

Os nómadas [citação]

>>> As vidas dos professores raramente são interessantes. Há as viagens, claro, mas os professores pagam as suas viagens com palavras, experiências, colóquios, mesas redondas, falar, falar sempre. Os intelectuais têm uma cultura formidável, têm uma opinião sobre tudo. Eu não sou um intelectual, porque não tenho cultura disponível, qualquer reserva. O que sei, sei-o apenas em função das necessidades de um trabalho actual, e, se volto ao assunto alguns anos depois, tenho de reaprender tudo. É muito agradável não ter uma opinião ou ideia sobre este ou aquele assunto. Não é de incomunicação que sofremos, mas, pelo contrário, de todas as forças que nos obrigam a que nos exprimamos quando não temos grande coisa para dizer. Viajar é ir dizer qualquer coisa algures e regressar para dizer qualquer coisa aqui. A menos que não regressemos e lá construamos a nossa cabana. Daí que tenha pouca vontade de viajar, é preciso não nos movermos muito para não assustar os tempos futuros. Há uma frase de Toynbee que me toca: "Os nómadas são aqueles que não se movem, tornam-se nómadas porque recusam partir."

GILLES DELLEUZE
Entrevista a Raymond Bellour e François Ewald
Magazine Littéraire, nº 257, Setembro 1988

A IMAGEM: Philippe Halsman, 1968

PHILIPPE HALSMAN / Magnum
Vladimir Nabokov
1968

domingo, abril 21, 2019

"Uncle Meat", Zappa — 50 anos

Uncle Meat, duplo álbum, quinto registo gravado por Frank Zappa (1940-1993) com The Mothers of Invention, corresponde a uma banda sonora de um filme de ficção científica (?) que nunca foi concretizado. Ou melhor, existe um filme Uncle Meat (lançado em cassete VHS em 1987) que funciona como uma espécie de documentário do projecto que, de alguma maneira, ficou pelo caminho. Nascido da obstinada vontade de desafiar os modelos dominantes de consumo — mas sem os ignorar, convocando elementos do free jazz às raízes do rock'n'roll, passando por admiráveis derivações orquestrais —, constitui uma peça genial de invenção e celebração, ainda e sempre para além de qualquer tempo, moda ou movimento.
Gravado entre Setembro de 1967 e Setembro de 1968, Uncle Meat foi posto à venda no dia 21 de Abril de 1969 — faz hoje 50 anos.

>>> Dog Breath Variations + Uncle Meat: duas faixas do álbum num concerto com o Ensemble Modern, na Alte Oper de Frankfurt, a 17 de Setembro de 1992, sob a direcção do próprio Frank Zappa — foi a sua derradeira performance pública; o respectivo registo seria editado como The Yellow Shark, álbum lançado em Novembro de 1993, cerca de um mês antes do falecimento de Zappa.

SOUND + VISION Magazine
— imagens e sons da FNAC

O nosso SOUND + VISION Magazine de 20 de Abril, em Lisboa, na FNAC do Chiado, teve como ponto de partida o álbum Voulez-Vous, dos ABBA (40 anos!), daí derivando para várias memórias musicais e cinematográficas do ano de 1979... e não só. Aqui ficam algumas das imagens e sons que partilhámos com os que nos acompanharam.

>>> A canção-título: Voulez-Vous, ABBA.

>>> One Night In Bangkok, Murray Head (do musical Chess).

>>> Manhattan, Woody Allen (banda sonora: Rhapsody in Blue, de George Gershwin).

>>> Television, Baxter (do álbum homónimo).

>>> Natural Skin Deep, Neneh Cherry (do álbum Broken Politics).

sábado, abril 20, 2019

Cher, Broadway & etc.

A vida e as canções de Cher — é caso para dizer que dava para fazer um musical da Broadway... E deu mesmo: em cena no Neil Simon Theatre, The Cher Show é um espectáculo de celebração e festa em que Stephanie J. Block, Teal Wicks e Micaela Diamond interpretam diferentes momentos da carreira da personagem. O trio esteve com Jimmy Fallon, em The Tonight Show, para interpretar If I Could Turn Back Time — adivinhem quem também lá estava.

Notre Dame ou os dias da Europa

Perante as imagens de destruição da Notre Dame de Paris, todos evocamos a grandeza histórica da nossa Europa. Será que isso basta para sermos realmente europeus? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Abril), com o título 'A Europa do nosso descontentamento'.

Contemplo as imagens de destruição da Notre Dame de Paris. Nos jornais e televisões, nos noticiários televisivos, o fogo acorda em nós a certeza amarga de uma impotência que importa superar, quanto mais não seja porque sabemos que o fazer da história é um infinito labor de construção e reconstrução, perdição e esperança.
Sinto-me, por isso, próximo de todos os discursos que apontam Notre Dame como símbolo de uma entidade em que, subitamente, para além de todas as crises, todos nos reconhecemos. A saber: esse lugar geográfico e mítico a que damos o nome de Europa.
Ao mesmo tempo, a sensação de comunhão face à vulnerabilidade da Notre Dame acorda em mim um outro sentimento que, mal ou bem, é também uma forma de pensamento. Que acontece (que está a acontecer) quando necessitamos de imagens trágicas como as que nos chegam de Paris para nos afirmarmos europeus?
DN (16-04-19)
Não quero encerrar a questão em generalizações automáticas, dessas que podem funcionar meia dúzia de dias nas manchetes televisivas para depois se desvanecerem numa agonia silenciosa de esquecimento. Ainda assim, pergunto-me se esta comunhão não envolve os valores (ou a falta deles) do mais corrente niilismo. Como se os contrastes, porventura as contradições, que todos sentimos — entre a utopia europeia e a sua vivência política — necessitassem de imagens cruas de destruição ou morte para a Europa reaparecer à tona do nosso oceano de diferenças.
Para nos ficarmos pelas imagens, precisamente, lembremos que vivemos numa Europa cujo espaço televisivo está todos os dias contaminado pela miséria conceptual e moral da “reality TV” e seus derivados. A formatação obscena dos comportamentos humanos promovida pela “reality TV” (com especial evidência para a coisificação sexual de homens e mulheres) transformou-se mesmo num elemento corrente de muitos modelos de comunicação televisiva — ou, como dirão os “especialistas”, um formato.
Não vejo, não escuto os protagonistas da cena política a defender uma ideia primordial de Europa face a essa metódica irrisão dos laços humanos e da mais nobre noção de humanismo. Vejo, isso sim, e escuto-os, a dar conta da tristeza radical com que contemplam as imagens de Notre Dame.
No meu recanto individual, partilho tal tristeza e acredito que os projectos de reconstrução se vão consumar, superando a destruição física e renovando o nosso amor por aquela igreja e o seu tocante simbolismo. Pergunto-me apenas se (e como) é possível termos mais Europa nos outros dias, aqueles em que o fogo não nos alerta para a ancestral excelência da nossa identidade colectiva.

ABBA: "Voulez-Vous" faz 40 anos
— SOUND + VISION Magazine [ hoje ]

Recordando um álbum emblemático dos ABBA lançado na idade de ouro do "disco sound" — revisitamos as canções da banda sueca, propondo também uma digressão pelas movimentações artísticas do ano de 1979.

* FNAC / Chiado, hoje, 20 Abril (18h30)

sexta-feira, abril 19, 2019

O futebol à maneira de Manoel de Oliveira

RENÉ MAGRITTE
Le Temps Traversé
1938
O actual tratamento do futebol em televisão envolve um interessantíssimo sistema de linguagens, incluindo mesmo componentes de raiz cinematográfica. Por vezes, fala-se sem se mostrar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Abril).

Não será preciso apresentar grandes investigações estatísticas para afirmar que a actividade social com maior visibilidade televisiva é o futebol. E também não creio que seja abusivo reconhecer que tal visibilidade existe através de um imenso silêncio de pensamento. Ou seja: o futebol tornou-se um elemento dominador na cultura portuguesa, mas quase ninguém o pensa (ou quer pensar) enquanto factor cultural.
HITCHCOCK
Podemos resumir a sua intensidade cultural através de duas simples componentes. Primeiro, a da própria identidade nacional: o jogador de futebol, sobretudo o jogador de futebol com grande sucesso financeiro (a começar pela referência de Cristiano Ronaldo), é frequentemente apresentado como matriz universal do ser português, quase sempre como modelo ideal para os mais jovens. Segundo, o da identidade laboral: da sugestiva arte de fazer fintas ao saber colocar a bola milimetricamente ao segundo poste, o jogador de futebol é, por certo, aquele que desfruta de mais e mais elogiosas considerações sobre o “trabalho” (“trabalhámos muito bem” é mesmo um lema quase universal de jogadores e treinadores).
Nesta interessante conjuntura, temos assistido à consagração de um dispositivo televisivo com curiosas componentes cinematográficas. Assim, vale a pena observar os modos de acompanhamento televisivo de jogos em directo... sem que o jogo nos esteja a ser mostrado. Deparamos com quê? Pois bem, com os comentadores a olharem para fora de campo (conceito eminentemente cinematográfico, vital em autores tão diversos como Alfred Hitchcock ou Andrei Tarkovski), dissertando sobre aquilo que não vemos. Mais do que isso: ocupando o ecrã em longuíssimos planos fixos.
TARKOVSKI
A situação, convenhamos, tem graça. Por um lado, este é o país em que muita gente séria, com assumida seriedade, se gaba de saber (?) que os filmes de Manoel de Oliveira são insuportáveis colecções de planos fixos... Tal proclamação pode mesmo envolver a “certeza” de que é assim mesmo, sem sequer haver necessidade de conhecer os filmes. Por outro lado, a televisão explora durações intermináveis que não encontram qualquer equivalência em nenhum filme de Oliveira... e isso é tratado como coisa “normal”.
A conclusão rudimentar não tem a ver com questões pueris de “verdade” ou “mentira”, muito menos com a dignidade profissional seja de quem for. Acontece apenas que a televisão detém um poder de “normalização” que deixou de ser pensado nas suas implicações culturais. Em boa verdade, o que está em causa é a nossa identidade de espectadores: habituámo-nos a encarar a televisão como coisa “natural”, deixando de a pensar como um complexo, muitas vezes fascinante, sistema de linguagens.
Por mim, fã da tradição burlesca da comédia, tenho estado a redescobrir a sua perversa herança nestas personagens que conversam entre si, dirigindo o olhar para fora de campo. Ou como o futebol serve de veículo para uma forma incauta de experimentalismo.

Memórias chinesas por Wang Bing

Acontecimento de excepção no mercado cinematográfico português: Almas Mortas, de Wang Bing, traça ao longo de oito horas as memórias da Campanha Anti-Direitista desencadeada na China em 1957 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Abril).

Há filmes capazes de desafiar de forma radical todos os nossos hábitos — não apenas os hábitos cinematográficos, mas as rotinas com que, muitas vezes atendendo apenas às manchetes da paisagem mediática, organizamos a percepção do mundo. Almas Mortas, de Wang Bing, é um desses filmes, singular e prodigioso.
A sua singularidade envolve, como é óbvio, a sua inusitada duração: oito horas (em rigor, 495 minutos). Entenda-se: não é apenas essa duração que o torna excepcional. Mas é um facto que Wang Bing terá sido o primeiro a sentir que a sua temática o compelia a elaborar uma narrativa que não podia ser abreviada, condensada ou arbitrariamente fragmentada.
Estão em jogo as memórias cruéis de um período dramático da história da China. Assim, como consequência da Campanha Anti-Direitista do Partido Comunista Chinês, desencadeada em 1957, muitos dos designados “ultra-direitistas” morreram à fome em campos de reeducação na província de Gansu — foi uma das maiores purgas montadas pelo regime de Mao Tsé-Tung.
Em termos esquemáticos, digamos que Almas Mortas segue uma lógica clássica do olhar documental: Wang Bing visita aquela zona e recolhe testemunhos de sobreviventes e familiares. Trata-se de um verdadeiro resgate dos mortos, num processo em que o cinema se assume como elo frágil, mas essencial, com a verdade primordial da memória. Com uma componente que determina todos os elementos do filme e, por isso mesmo, a sua relação com o espectador: em vez de acumular materiais de arquivo seleccionados de forma mais ou menos “ilustrativa”, Wang Bing escuta pacientemente as palavras dos que recordam e explicam o que aconteceu.
Esta resistência das palavras à violência de um sistema repressivo nada tem a ver com os métodos televisivos que privilegiam a condensação fácil e, por fim, a proliferação de “soundbytes”. Predomina, aqui, um princípio de escuta, misto de pedagogia e ternura — os sobreviventes são transportadores de palavras que resistiram a todas as mortes.
Talvez seja inevitável referir que o método de trabalho de Wang Bing faz lembrar a abordagem do Holocausto por Claude Lanzmann no monumental Shoah (1985), este com uma duração superior a nove horas. Num caso como noutro, a história não é um conjunto de dados adquiridos, garantidos pela frieza dos arquivos. A história tem de passar pela fala: falar, verbalizar são actos de inventariação e persistência da complexidade das convulsões históricas.
Revelado no Festival de Cannes de 2018 (extra-competição), Almas Mortas é mais um momento exemplar na trajectória de Wang Bing — entre os seus filmes, lembremos os casos também admiráveis de A Fossa (2010) e Três Irmãs (2012), ambos estreados no nosso país. Em termos simples, no contexto português, estamos perante um dos acontecimentos maiores deste ano cinematográfico.
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* Almas Mortas está programado o fim de semana do Monumental (Lisboa):

- 1ª Parte - 20 de Abril (12h00)
- 2ª Parte - 21 de Abril (12h00)

quinta-feira, abril 18, 2019

Billie Eilish — celebração e medo

When We All Fall Asleep, Where Do We Go? — o título pressupõe a possibilidade de encontrar, porventura edificar, paisagens alternativas nascidas no abandono do sono, talvez do sonho, até mesmo do pesadelo. Projecto típico de alguém com uma longa vida e a consequente aptidão para deambulações introspectivas da memória?... Não exactamente: este é o álbum de estreia de Billie Eilish, nascida em Los Angeles a 18 de Dezembro de 2011 — 17 anos, isso mesmo.
You Should See Me in a Crown pode servir de matriz simbólica do seu tom de celebração, cruzando ideias eléctricas de pop e hip hop, para desembocar em regiões de estranhos e inquietantes assombramentos. Visualmente, a canção existe em duas versões: a primeira num video vertical capaz de desafiar a mais rudimentar aracnofobia, a segunda em animação de inspiração japonesa, monstros incluídos — tenham medo.



Terrence Malick na competição de Cannes

A HIDDEN LIFE: Valerie Pachner e August Diehl
Oito anos depois de ter arrebatado a Palma de Ouro, com A Árvore da Vida, o americano Terrence Malick está de regresso à secção competitiva do Festival de Cannes com A Hidden Life [à letra: "Uma vida escondida"]. Inicialmente intitulado Radegund, o filme evoca Franz Jägerstätter (1907-1943), cidadão austríaco, objector de consciência que recusou integrar o exército nazi, vindo a ser condenado e guilhotinado pelo Terceiro Reich. Com August Diehl no papel central, o elenco do filme conta ainda Valerie Pachner, Matthias Schoenaerts, Jürgen Prochnow, Franz Rogowski, Michael Nyqvist e Bruno Ganz (os dois últimos já falecidos).
Malick é um dos habitués a reaparecer na selecção oficial de Cannes, a par do italiano Marco Bellochio (Il Traditore), dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne (le Jeune Ahmed), do francês Arnaud Desplechin (Roubaix, une Lumière), do espanhol Pedro Almodóvar (Dolor y Gloria) ou do inglês Ken Loach (Sorry We Missed You); entre os muitos títulos que não concorrem para a Palma de Ouro estão os mais recentes trabalhos do francês Claude Lelouch (Les Plus Belles Années d'une Vie, com Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée) e do americano Abel Ferrara (Tommaso, com Willem Dafoe) — a lista oficial do certame, incluindo competição e extra-competição, e também a secção paralela "Un Certain Regard", está disponível no site oficial do festival.

quarta-feira, abril 17, 2019

A catástrofe do Facebook [citação]

>>> A combinação do capitalismo de mercado livre, mais as plataformas monopolistas, mais a confiança que utilizadores e agentes políticos depositaram na técnica deixou-nos à mercê dos controladores da tecnologia. Os líderes não eleitos das maiores plataformas tecnológicas — em especial Facebook e Google — estão a corroer as fundações da democracia liberal em todo o mundo, e apesar disso entregámos-lhes a segurança da informação nas nossas eleições de 2018 [intercalares nos EUA]. Eles estão a minar a saúde pública, redefinindo os limites da privacidade pessoal e reestruturando a economia global, tudo isso sem darem voz àqueles que são afectados. Todos, mas em especial os optimistas da tecnologia, deveriam investigar o modo como os interesses dos gigantes da internet podem entrar em conflito com os do público.

ROGER McNAMEE
HarperCollins, 2019

Madonna "cha-cha-cha"

O rosto afirmativo, porventura expectante, de quem tem as palavras suspensas?... Esta é a capa da edição standard de Madame X; a anterior pertence à versão DeLuxe. Na sua metódica gestão de imagens e sons, Madonna divulgou hoje a canção Medellín, tema de abertura do seu novo álbum: um depurado "cha-cha-cha" fabricado com a cumplicidade do colombiano Maluma — o respectivo teledisco terá a sua estreia no dia 24, num especial da MTV (Madame X chega às lojas a 14 de Junho).

"Nossa Senhora do Povo"

Libération
(14 - 04 - 2019)

terça-feira, abril 16, 2019

"Madame X" — a capa

Os olhos de uma juventude envelhecida, um desencanto tecido de pragmatismo, enfim, as letras discretamente abaladas por uma tremura de video... Eis a capa do 14º álbum de estúdio de Madonna: Madame X terá como primeiro single a canção Medellín, composta e interpretada com a colaboração do cantar colombiano Maluma [chega a 17 de Abril, com teledisco assinado pela realizadora espanhola Diana Kunst].

segunda-feira, abril 15, 2019

Agnès Varda inspira cartaz de Cannes

A 72ª edição do Festival de Cannes (14-25 Maio) já tem cartaz oficial: Agnès Varda serviu de inspiração à composição e grafismo de Flore Maquin, através de uma fotografia da rodagem de La Pointe Courte, primeira longa-metragem de Varda.
Rodado em 1954 e lançado no ano seguinte, La Pointe Courte encena a crise de um casal (Silvia Monfort e Philippe Noiret), tendo como pano de fundo uma povoação de pescadores da zona de Sète, no sul de França. Frequentemente citado como um objecto premonitório da Nova Vaga, está disponível no mercado português em DVD — eis uma apresentação do filme proveniente do Film Struck.

Madonna, Madame X

Madame X — assim se vai chamar o 14º álbum de estúdio de Madonna. Da sua relação com Portugal à renovada colaboração de Mirwais, as notícias que vão circulando sobre a respectiva produção são tão sugestivas quanto incertas (incluindo algumas fotografias colocadas no Instagram, tal como a que aqui se reproduz). Seja como for, Madonna achou por bem divulgar aquilo que parece ser uma colagem mais ou menos indecifrável de telediscos das novas canções, protagonizadas por um novo alter ego, uma "agente secreta" que "viaja pelo mundo" — ou apenas a confirmação de que a sua identidade está sempre na próxima máscara. Data de lançamento: X.

domingo, abril 14, 2019

Bibi Andersson (1935 - 2019)

PERSONA (1966)
Notável intérprete, figura indissociável do universo de Ingmar Bergman, a actriz sueca Bibi Andersson faleceu no dia 14 de Abril, em Estocolmo, cerca de dez anos depois de um AVC que condicionou toda a sua existência, incapacitando-a de falar — contava 83 anos.
Foi ela a personagem de Alma, a enfermeira que tratava de Elisabet Vogler (Liv Ullmann), a actriz que perdia o uso da fala em Persona/A Máscara (1966), título central na obra bergmaniana e, mais do que isso, um dos símbolos modelares da modernidade cinematográfica. Sob a direcção de Bergman, surgiu ainda em Sorrisos de uma Noite de Verão (1955), O Sétimo Selo (1957), Morangos Silvestres (1957), No Limiar da Vida (1958), O Rosto (1958), O Olho do Diabo (1960), A Força do Sexo Fraco (1964), Paixão (1969) e O Amante (1971), este em língua inglesa, contracenando com Elliott Gould; integrou também o elenco da mini-série televisiva Cenas da Vida Conjugal (1973), exibida, numa versão mais curta, nas salas de cinema. Com uma importante carreira no teatro, foi dirigida por Bergman em Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, em 1962.
Capaz de expor as nuances mais enigmáticas do desejo e do pensamento, Andersson teve também algumas participações exemplares em filmes como A Ilha (1966), de Alf Sjöberg, Minha Irmã, Meu Amor (1966), de Vilgot Sjöman, A Carta do Kremlin (1970), de John Huston, ou Quinteto (1978), de Robert Altman; surgiu num pequeno papel em A Festa de Babette (1987), do dinamarquês Gabriel Axel, porventura o seu trabalho com maior difusão internacional, graças à respectiva consagração com o Oscar de melhor filme estrangeiro. Publicou a autobiografia Ett ögonblick em 1966.

>>> Com Victor Sjöström — final de Morangos Silvestres.

>>> A narrativa de uma experiência sexual de Alma em Persona.

>>> Cena de O Amante.

>>> Obituário no New York Times.
>>> Bibi Andersson no site oficial de Ingmar Bergman.
>>> Artigo de Peter Cowie na Criterion Collection.

A noite de 1913, por László Nemes

Juli Jakab
O cineasta húngaro László Nemes, autor de O Filho de Saul, revisita as vésperas da Primeira Guerra Mundial em Anoitecer: é, desde já, um dos grandes acontecimentos deste ano cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Abril).

Cinema histórico? O lugar-comum manda dizer que quando a época é mais ou menos recuada e os actores usam guarda-roupa antigo, então um filme está a “fazer história”... É uma pobre visão cinéfila, viciada na ideia segundo a qual a história se faz por acumulação de adereços. Vale a pena pensar para além do lugar-comum, por exemplo através de Anoitecer, do húngaro László Nemes, por certo um dos dois ou três filmes realmente excepcionais que este ano já chegaram às salas portuguesas.
Não simplifiquemos, claro. Ao evocar a cidade de Budapeste, em 1913, Nemes integra muitos e decisivos elementos de “reconstituição”, essenciais na definição dos ambientes. Acontece que a cenografia não é um fim em si mesmo, até porque os seus elementos surgem sempre filtrados pelo olhar da protagonista, Írisz Leiter (Juli Jakab, incrível actriz), procurando um posto de trabalho na luxuosa loja de chapéus que, noutros tempos, pertenceu à sua família.
A intriga é labiríntica, tornando gratuita qualquer sinopse que se esgote nas peripécias mais ou menos surpreendentes que vão pontuando a acção, até porque Nemes explora diversas sugestões (deixadas em inquietante suspense) sobre as relações dos novos proprietários da loja com a corte do Império Austro-Húngaro. O que mais conta é a própria decomposição da realidade aos olhos de Írisz, de tal modo que Anoitecer se organiza como uma deambulação (apetece dizer: uma reportagem intimista) da redescoberta de Budapeste pela protagonista — o resultado tem tanto de realismo narrativo como de inquietação moral.
Como esclarece o final do filme, através de uma genial ideia de mise en scène, assistimos, assim, à acumulação de sinais premonitórios da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Anoitecer consegue essa proeza rara que consiste em elaborar um retrato “psicológico” de uma mulher, ao mesmo tempo mostrando como as mais brutais convulsões colectivas se ramificam nos mais discretos detalhes do quotidiano.
Nemes, importa recordar, é autor de O Filho de Saul (2015), notável abordagem do interior do horror nazi, isto é, da rede de vida e morte num campo de concentração. Com Anoitecer, a sua segunda-metragem, o mínimo que se pode dizer é que Nemes se confirma como um dos mais ousados e inventivos criadores do actual cinema europeu.

sábado, abril 13, 2019

Prémio FIAF para Godard

Jean-Luc Godard foi distinguido com o Prémio FIAF 2019, em cerimónia realizada na Cinemateca Suíça, no dia 11 de Abril, no âmbito do 75º Congresso da entidade que congrega as cinematecas de todo o mundo — a Federação Internacional dos Arquivos de Filmes foi criada em 1938 (integrando a Cinemateca Portuguesa desde 1956).
Este prémio é atribuído desde 2001, tendo sido Martin Scorsese o primeiro galardoado. Com ele, a FIAF consagra personalidades que, através da sua criatividade, contribuem para a evolução da história do cinema e, em particular, para a defesa e preservação do respectivo património — entre essas personalidades incluem-se Ingmar Bergman (2003), Mike Leigh (2005), Hou Hsiao-hsien (2006), Peter Bogdanovich (2007), Agnès Varda (2013), Jean-Pierre e Luc Dardenne (2016) e Christopher Nolan (2017).
No discurso de apresentação do premiado, o presidente da FIAF, Frédéric Maire, também director da Cinemateca Suíça, sublinhou o facto de o labor godardiano estar "profundamente enraizado num vasto conhecimento da história do cinema e nos seus anos como crítico de cinema nos Cahiers du Cinéma", citando também o seu empenho na evolução das técnicas cinematográficas, "das câmaras ligeiras até ao mais sofisticado equipamento digital" — o génio do seu pensamento sobre e sob o cinema atravessa toda uma obra imensa, tendo encontrado uma fascinante condensação em História(s) do Cinema (1989-1999), ensaio sobre uma linguagem ameaçada cujo prolongamento mais recente é o prodigioso O Livro de Imagem (2018).
Maire lembrou ainda a longa amizade entre Godard e Freddy Buache, crítico e historiador de cinema, além de lendário director da Cinemateca Suíça (entre 1951 e 1996) — presente na cerimónia, Buache foi eleito em 2018 membro honorário da FIAF.

Jean-Luc Godard
à entrada da Cinemateca Suíça (11-04-19)

© Carine Roth / Cinémathèque suisse
>>> Prémio FIAF 2019 — registo da cerimónia de 11 de Abril de 2019.