sexta-feira, fevereiro 26, 2016

"O Filho de Saul" — memória e humanismo

O FILHO DE SAUL (2015), de László Nemes
Com o filme húngaro O Filho de Saul, relança-se a exigência crítica, histórica e simbólica de representar o Holocausto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Fevereiro), com o título 'Filme húngaro evoca o inferno de Auschwitz'.

Como representar o Holocausto? A pergunta está longe de ser exclusiva do universo cinematográfico. Mas é um facto que, desde o final da Segunda Guerra Mundial, os mais diversos filmes, de origens e sensibilidades muito diferentes, se têm confrontado com essa interrogação, ao mesmo tempo ética e estética: como utilizar as imagens (e os sons) para preservar a memória do sistema de aniquilamento organizado pelos nazis e dos horrores vividos nos campos de concentração?
O mínimo que se pode dizer de um filme como O Filho de Saul é que tem sido uma peça fundamental no relançamento de tal interrogação. O seu impacto no Festival de Cannes do ano passado e também o facto de estar na linha da frente para arrebatar o Oscar de melhor filme estrangeiro (tendo já ganho o Globo de Ouro da mesma categoria) transformaram esta longa-metragem de estreia do húngaro László Nemes num dos títulos incontornáveis da temporada 2015/16.
O Filho de Saul coloca-se “a meio caminho” entre duas das mais elaboradas abordagens do universo concentracionário construído pelos nazis. Por um lado, temos a pedagogia de Claude Lanzmann que, através de documentários como Shoah (1985) ou O Últimos dos Injustos (2013), tem defendido a necessidade de passar, não pelas imagens (fotografia ou filme) dos campos e dos seus milhões de vítimas, mas sim pelo testemunho dos que, directa ou indirectamente, possuem uma experiência real de tão trágica conjuntura. Por outro lado, deparamos com a contundência narrativa de Steven Spielberg, em A Lista de Schindler (1993), revisitando as memórias do Holocausto através de uma personagem atípica, Oskar Schindler (1908-1974), industrial alemão, membro do partido nazi, que salvou mais de um milhar de judeus, mantendo-os a trabalhar nas suas instalações fabris.

A rotina da morte

László Nemes desenvolve o seu filme a partir de uma perturbante opção narrativa. Trata-se de encenar o dia a dia no campo de Auschwitz-Birkenau, em 1944, com a terrível rotina dos prisioneiros que chegam em comboios para, num tempo mais ou menos breve, serem mortos e reduzidos a cinzas nos fornos crematórios. Os sinais de tão dantesco quotidiano passam por uma personagem muito concreta: Saul Ausländer (notável composição de Géza Röhrig, actor que é também poeta e professor), membro do Sonderkommando do campo.
O Sonderkommando era constituído por prisioneiros judeus forçados a executar as tarefas de extermínio, desde a organização dos que chegam até ao transporte de cadáveres — os nazis mantinham-nos nessas tarefas durante algum tempo, acabando por inscrevê-los também na lista de pessoas a abater. Assim, tudo aquilo que vemos e ouvimos (os sons são essenciais na apresentação de situações que não chegam a ser visíveis) decorre do olhar de Saul.
Num dispositivo que tem algo de “reportagem”, a câmara segue obsessivamente a figura de Saul (muitas vezes correndo atrás dele, “colada” às suas costas). De tal modo que, muitas vezes, o horror pode ser expresso “apenas” através do som de um cadáver, desfocado num canto da imagem, a ser arrastado pelo chão. Tudo isto adquire uma dimensão ainda mais perturbante quando Saul depara com o cadáver do seu próprio filho — a partir daí, a personagem central vai tentar por todos os meios que ele não seja enviado para os fornos, procurando garantir-lhe a dignidade de uma sepultura.

Imaginar o inferno

O Filho de Saul consegue consumar uma vontade, de uma só vez estética e política, que o filósofo e historiador francês Georges Didi-Huberman, definiu assim: “Para saber é preciso imaginar-se. Devemos tentar imaginar o que foi o inferno de Auschwitz no Verão de 1944. Não invoquemos o inimaginável. Não nos protejamos dizendo que de qualquer forma não o podemos imaginar — o que é verdade —, já que não poderemos imaginá-lo inteiramente. Mas devemos imaginá-lo, esse imaginável tão pesado. Como uma resposta que se oferece, como uma dívida contraída para com as palavras e as imagens que alguns deportados arrancaram, para nós, ao pavoroso real da sua experiência.”
Estas palavras estão na abertura do livro Imagens Apesar de Tudo (editora Kkym, Lisboa, 2012), referência tanto mais justificada quanto as imagens a que Huberman se refere — quatro fotografias obtidas por elementos do Sonderkommando, testemunhando o processo de extermínio em Auschwitz — constituem uma inspiração muito directa para uma cena fulcral de O Filho de Saul. Vemos, assim, o próprio Saul envolvido na ocultação de uma câmara fotográfica no interior do campo e, depois, os angustiados momentos em que um outro prisioneiro consegue fotografar uma fogueira onde estão a ser queimados cadáveres.
Há uma linha simbólica que liga essas fotografias de 1944 a um filme como O Filho de Saul: através do testemunho directo dos prisioneiros ou dos mecanismos da ficção cinematográfica, desenvolve-se o obstinado labor de uma memória que não é legítimo rasurar nem banalizar. Para além das diferenças entre as narrativas (cinematográficas) sobre o Holocausto, importa preservar essa obstinação — estão em jogo a exigência da verdade e o valor do humanismo.