sexta-feira, abril 19, 2019

O futebol à maneira de Manoel de Oliveira

RENÉ MAGRITTE
Le Temps Traversé
1938
O actual tratamento do futebol em televisão envolve um interessantíssimo sistema de linguagens, incluindo mesmo componentes de raiz cinematográfica. Por vezes, fala-se sem se mostrar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Abril).

Não será preciso apresentar grandes investigações estatísticas para afirmar que a actividade social com maior visibilidade televisiva é o futebol. E também não creio que seja abusivo reconhecer que tal visibilidade existe através de um imenso silêncio de pensamento. Ou seja: o futebol tornou-se um elemento dominador na cultura portuguesa, mas quase ninguém o pensa (ou quer pensar) enquanto factor cultural.
HITCHCOCK
Podemos resumir a sua intensidade cultural através de duas simples componentes. Primeiro, a da própria identidade nacional: o jogador de futebol, sobretudo o jogador de futebol com grande sucesso financeiro (a começar pela referência de Cristiano Ronaldo), é frequentemente apresentado como matriz universal do ser português, quase sempre como modelo ideal para os mais jovens. Segundo, o da identidade laboral: da sugestiva arte de fazer fintas ao saber colocar a bola milimetricamente ao segundo poste, o jogador de futebol é, por certo, aquele que desfruta de mais e mais elogiosas considerações sobre o “trabalho” (“trabalhámos muito bem” é mesmo um lema quase universal de jogadores e treinadores).
Nesta interessante conjuntura, temos assistido à consagração de um dispositivo televisivo com curiosas componentes cinematográficas. Assim, vale a pena observar os modos de acompanhamento televisivo de jogos em directo... sem que o jogo nos esteja a ser mostrado. Deparamos com quê? Pois bem, com os comentadores a olharem para fora de campo (conceito eminentemente cinematográfico, vital em autores tão diversos como Alfred Hitchcock ou Andrei Tarkovski), dissertando sobre aquilo que não vemos. Mais do que isso: ocupando o ecrã em longuíssimos planos fixos.
TARKOVSKI
A situação, convenhamos, tem graça. Por um lado, este é o país em que muita gente séria, com assumida seriedade, se gaba de saber (?) que os filmes de Manoel de Oliveira são insuportáveis colecções de planos fixos... Tal proclamação pode mesmo envolver a “certeza” de que é assim mesmo, sem sequer haver necessidade de conhecer os filmes. Por outro lado, a televisão explora durações intermináveis que não encontram qualquer equivalência em nenhum filme de Oliveira... e isso é tratado como coisa “normal”.
A conclusão rudimentar não tem a ver com questões pueris de “verdade” ou “mentira”, muito menos com a dignidade profissional seja de quem for. Acontece apenas que a televisão detém um poder de “normalização” que deixou de ser pensado nas suas implicações culturais. Em boa verdade, o que está em causa é a nossa identidade de espectadores: habituámo-nos a encarar a televisão como coisa “natural”, deixando de a pensar como um complexo, muitas vezes fascinante, sistema de linguagens.
Por mim, fã da tradição burlesca da comédia, tenho estado a redescobrir a sua perversa herança nestas personagens que conversam entre si, dirigindo o olhar para fora de campo. Ou como o futebol serve de veículo para uma forma incauta de experimentalismo.