O veterano Denys Arcand continua a olhar, com ironia e crueldade, o seu Canadá: A Queda do Império Americano encerra uma trilogia iniciada, há mais de trinta anos, com O Declínio do Império Americano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Abril).
Cinema americano? Sim, mas não de Hollywood. Eis um filme que provém do Canadá de língua francesa, completando uma trilogia de observação social com tanto de humor como de amargura. De facto, com A Queda do Império Americano, o veterano Denys Arcand (77 anos) encerra um ciclo iniciado há mais de trinta anos com O Declínio do Império Americano (1986) e prolongado com As Invasões Bárbaras (2003); este adquiriu especial destaque: continua a ser a única produção canadiana a arrebatar o Oscar de melhor filme estrangeiro.
Os títulos são, obviamente, irónicos, deixando passar uma “mensagem” com o seu quê de pedagógico: através das mais atribuladas relações humanas, Arcand observa a lenta e angustiante decomposição de muitos valores clássicos, desde o equilíbrio afectivo entre homens e mulheres até à perversão de todos os laços humanos pelo dinheiro.
A Queda do Império Americano é, precisamente, um conto moral sobre o dinheiro. Assumindo também a função de argumentista, tal como nos dois filmes anteriores, Arcand desenha um labirinto de relações que começa num bizarro “fait divers”. O protagonista é um empregado (Alexandre Landry) de uma empresa de transporte de encomendas que se distingue pela sua sofisticada formação... filosófica. Até que um dia se vê confrontado com uma “dádiva” insólita: ao entregar uma encomenda, assiste a um assalto falhado, com os ladrões a deixarem ao seu alcance dois pesadíssimos sacos com dinheiro... Decide guardar os sacos e mudar de vida...
Enfim, para além das peripécias, ora dramáticas, ora burlescas, que vai enfrentar, o protagonista passa a viver uma vertigem com tanto de íntimo como de social. Dito de outro modo: a posse de uma quantidade imensa de dinheiro leva-o (e nós com ele) a descobrir o misto de relativismo e instabilidade das suas relações com os outros.
A arte de Arcand consiste em instalar um implacável tom de sarcasmo sem nunca deixar de explorar um espírito realista que confere ao seu filme a força de uma narrativa ligada ao concreto da sociedade canadiana. Sem esquecer, claro, que tão desencantada visão dos humanos possui um sugestivo simbolismo universal.