sexta-feira, abril 19, 2019

Memórias chinesas por Wang Bing

Acontecimento de excepção no mercado cinematográfico português: Almas Mortas, de Wang Bing, traça ao longo de oito horas as memórias da Campanha Anti-Direitista desencadeada na China em 1957 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Abril).

Há filmes capazes de desafiar de forma radical todos os nossos hábitos — não apenas os hábitos cinematográficos, mas as rotinas com que, muitas vezes atendendo apenas às manchetes da paisagem mediática, organizamos a percepção do mundo. Almas Mortas, de Wang Bing, é um desses filmes, singular e prodigioso.
A sua singularidade envolve, como é óbvio, a sua inusitada duração: oito horas (em rigor, 495 minutos). Entenda-se: não é apenas essa duração que o torna excepcional. Mas é um facto que Wang Bing terá sido o primeiro a sentir que a sua temática o compelia a elaborar uma narrativa que não podia ser abreviada, condensada ou arbitrariamente fragmentada.
Estão em jogo as memórias cruéis de um período dramático da história da China. Assim, como consequência da Campanha Anti-Direitista do Partido Comunista Chinês, desencadeada em 1957, muitos dos designados “ultra-direitistas” morreram à fome em campos de reeducação na província de Gansu — foi uma das maiores purgas montadas pelo regime de Mao Tsé-Tung.
Em termos esquemáticos, digamos que Almas Mortas segue uma lógica clássica do olhar documental: Wang Bing visita aquela zona e recolhe testemunhos de sobreviventes e familiares. Trata-se de um verdadeiro resgate dos mortos, num processo em que o cinema se assume como elo frágil, mas essencial, com a verdade primordial da memória. Com uma componente que determina todos os elementos do filme e, por isso mesmo, a sua relação com o espectador: em vez de acumular materiais de arquivo seleccionados de forma mais ou menos “ilustrativa”, Wang Bing escuta pacientemente as palavras dos que recordam e explicam o que aconteceu.
Esta resistência das palavras à violência de um sistema repressivo nada tem a ver com os métodos televisivos que privilegiam a condensação fácil e, por fim, a proliferação de “soundbytes”. Predomina, aqui, um princípio de escuta, misto de pedagogia e ternura — os sobreviventes são transportadores de palavras que resistiram a todas as mortes.
Talvez seja inevitável referir que o método de trabalho de Wang Bing faz lembrar a abordagem do Holocausto por Claude Lanzmann no monumental Shoah (1985), este com uma duração superior a nove horas. Num caso como noutro, a história não é um conjunto de dados adquiridos, garantidos pela frieza dos arquivos. A história tem de passar pela fala: falar, verbalizar são actos de inventariação e persistência da complexidade das convulsões históricas.
Revelado no Festival de Cannes de 2018 (extra-competição), Almas Mortas é mais um momento exemplar na trajectória de Wang Bing — entre os seus filmes, lembremos os casos também admiráveis de A Fossa (2010) e Três Irmãs (2012), ambos estreados no nosso país. Em termos simples, no contexto português, estamos perante um dos acontecimentos maiores deste ano cinematográfico.
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* Almas Mortas está programado o fim de semana do Monumental (Lisboa):

- 1ª Parte - 20 de Abril (12h00)
- 2ª Parte - 21 de Abril (12h00)