sábado, outubro 01, 2016

O nosso rectângulo televisivo

PIET MONDRIAN
Composição nº II, com Vermelho e Azul
1929
A televisão passou a ser a matéria e o filtro dominante da nossa percepção do mundo — esta crónica foi publicada no Diário de Notícias (30 Setembro), com o título 'O nosso rectângulo'.

1. A miséria filosófica da Casa dos Segredos (TVI) está reinstalada no quotidiano como coisa “natural”. Da boçalidade dos comportamentos à celebração de uma sexualidade instrumental, sem esquecer o sistemático assassinato do bem falar português, a “reality TV” conseguiu o mais terrível triunfo social: quase ninguém, nem individualmente, nem institucionalmente, reage à sua monstruosa vulgaridade. Aliás, o estado das coisas pode definir-se através de um contraste que não tem nada de caricatural: os horrores da Casa dos Segredos passam incólumes no escrutínio público, mas um penalty mal assinalado num qualquer jogo de futebol pode ser uma tragédia para durar uma semana.

2. Sinal dos tempos: o primeiro debate presidencial entre Hillary Clinton e Donald Trump foi, de facto, vivido como coisa global, numa espécie de “missa” colectiva celebrada, em religiosa simultaneidade, por todos os recantos do planeta. Há outra maneira de dizer isto: fomos adormecendo a nossa visão política do mundo e, de facto, comportamo-nos como sonâmbulos que só identificam a acção política quando a televisão encena algum confronto que possa ser tratado num esquema de “pró” e “contra”. Clinton, perspicaz, referiu que Trump “vive na sua própria realidade”. Resta saber se a nossa realidade pode ser mais ampla do que o ecrã em que observamos a política.

3. Vivemos, assim, sob o jugo de uma ideologia do imediato e efémero cujos efeitos sociais, políticos e simbólicos recusamos enfrentar. Tudo se passa como se a própria definição de realidade tivesse sido sugada pelo rectângulo em que contemplamos o viver de tudo e todos “em tempo real”. Perguntar o que seria um mundo sem a presença desse rectângulo seria, por certo, um fuga banalmente neurótica. Mas há outro assombramento neurótico: o de o mundo já não existir a não ser como rectângulo.