quinta-feira, julho 30, 2020

TVCine: que filmes?...

Digamos, para simplificar, que os canais TVCine são, no espaço audiovisual português, uma interessante e importante montra de diversidade. Podemos estranhar que a mais recente opção de marketing os tenha passado a designar por palavras inglesas (?) — será que a rentabilidade aumenta por se escrever "emotion" em vez de "emoção"?
O certo é que nos quatro canais TVCine podemos encontrar de tudo um pouco, desde os mais recentes fenómenos populares (lá está, por exemplo, o último Tarantino) até preciosidades que todos os cinéfilos têm gosto em redescobrir (neste momento, por exemplo, estão disponíveis alguns belíssimos clássicos do "western" com assinatura de mestres como Howard Hawks ou Anthony Mann).
Porquê, então, banalizar e, mais do que isso, desvalorizar a informação?
Na verdade, ao consultarmos as informações disponíveis no ecrã, desapareceu aquele mínimo essencial de qualquer plataforma cinematográfica: os filmes são apresentados através de sinopses mais ou menos simplistas — por vezes, convenhamos, reduzindo grandes filmes a pequenas descrições anedóticas — e não há um único nome (actores principais, realizador, etc.) que possa ajudar a qualquer tipo de contextualização. Mais ainda: a rotina de colocar a "classificação" do IMDb, para lá da falta de credibilidade histórica desse site, faz com que muitos filmes sejam "promovidos" através de valores francamente negativos...
Não será que valia a pena revalorizar o produto? Não seria mais lógico acompanhar e seduzir o consumidor através de uma informação realmente útil e consistente?

quarta-feira, julho 29, 2020

O dinheiro somos nós
— memórias do Tio Patinhas & etc.

No mundo do Tio Patinhas: memórias de histórias aos quadradinhos
em que o dinheiro surge, literalmente, nas imagens
A maior parte das relações em sociedade pressupõe alguma componente ou troca financeira. O que justifica uma pergunta sobre o nosso mundo iconográfico: como é que as imagens representam (ou não) o dinheiro? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Julho).

Tenho saudades do Tio Patinhas, confesso. Nas histórias aos quadradinhos (a classificação aristocrata de “BD” estava por inventar), não era das minhas personagens preferidas. Mas não quero arranjar desculpas: é bem provável que a sua avareza militante tenha corrompido de modo irremediável a minha frágil mente infantil, educando-me para uma convivência perversa com o dinheiro. Seja como for, nunca possuí a quantidade suficiente de moedas e notas, já para não falar de lingotes de ouro, que me levasse a compreender a sua relação com o dinheiro e, sobretudo, as bizarras componentes dos respectivos prazeres e tormentos.
De facto, ele nadava em dinheiro. Literalmente: sozinho ou na companhia dos atónitos sobrinhos (pobres crianças…), o Tio Patinhas dava mergulhos no seu tesouro, por vezes em pose de feliz veraneante, deslocando-se num pitoresco barco a remos. Com o passar dos anos, tendo falhado a minha carreira de milionário, tornei-me um intelectual. O que, com resultados certamente desiguais e discutíveis, me leva a conceptualizar os eventos mais díspares, discutindo de modo potencialmente infinito as suas significações. Ou seja, o Tio Patinhas legou-me uma herança iconográfica que muito prezo: o dinheiro ainda acedia ao mundo das imagens, era possível representá-lo nas imagens.
BACON
[site oficial]
Agora, só mesmo algumas formas de publicidade se atrevem a representar o dinheiro, mas a sedução perdeu-se. Observem-se alguns anúncios de jogos de azar: quase sempre, os potenciais milionários são representados como seres de triste boçalidade, sonhando com praias tropicais… Podiam até ambicionar comprar uma pintura de Francis Bacon num leilão da Christie’s, o que, além do mais, seria infinitamente mais caro do que umas férias nas Bahamas… Mas não: a imaginação do marketing prefere não arriscar em duvidosas derivações artísticas.
A questão complica-se face ao desigual tratamento mediático do dinheiro ganho por determinadas personalidades públicas. Assim, o país pode ser abalado por homéricos debates em torno de alguns milhares de euros auferidos por alguém que, melhor ou pior, desempenha um cargo oficial. O certo é que uma qualquer personalidade do mundo do futebol pode ser paga em milhões sem que tal situação desencadeie o mais ténue torpor social.
Lembram os mais sensatos que aquilo que é pago com o dinheiro dos contribuintes não se pode confundir com o universo dos negócios privados. Assim será, mas permito-me dar conta do meu cepticismo face a tal racionalização. Não porque tenha qualquer dúvida em relação à legitimidade e transparência de tais negócios. Antes porque seria interessante enriquecer o debate e perguntar quem paga os dinheiros de que o futebol se alimenta: as quotas de sócios, os bilhetes dos estádios, as assinaturas de televisão por cabo, os produtos promovidos nas camisolas dos jogadores, as próprias camisolas dos jogadores, etc. Dir-se-ia que, face ao Estado, o cidadão comum é um contribuinte; quando financia um clube de futebol, passa a ser um anjo da guarda.
GODARD
[Vogue Paris]
A carência de imagens do dinheiro ilustra um processo de desumanização dos próprios modelos cognitivos em que vivemos. Há alguns anos, quando a expressão “mercados financeiros” passou a integrar a gíria jornalística, Jean-Luc Godard (cineasta sempre empenhado em avaliar como vivemos através das imagens e das palavras) perguntava porque é que se citavam os “mercados” como uma espécie de entidade mágica para explicar todos os dramas decorrentes da circulação do dinheiro, sem dizer o que quer que fosse sobre as “pessoas” que fazem existir esses mesmos “mercados”. Lembrava ele uma cândida verdade: “Os mercados são pessoas”.
Algo de semelhante se poderá dizer a propósito da circulação do dinheiro. Afinal de contas, o dinheiro somos nós: o essencial das relações em sociedade pressupõe alguma componente ou troca financeira. No universo das imagens, seria interessante, por exemplo, mostrar as moedas e as notas que fazem um salário mínimo, colocando ao lado as moedas e as notas ganhas por alguns profissionais de futebol. Entenda-se: não por qualquer suspeita ou insinuação malévola. Apenas para termos uma outra perspectiva sobre o mundo à nossa volta.

Instagram, lopes_jjlr

FOTOGRAFIAS_João Lopes

terça-feira, julho 28, 2020

Godard — entretanto, na Suíça...

São imagens de uma pose serena, disponível mas distante, acutilante e pudica. Hedi Slimane fotografou Jean-Luc Godard em sua casa, na Suíça, um exclusivo para a Vogue Paris — a preto e branco, com nostalgia q.b. do cinema noir.

segunda-feira, julho 27, 2020

Salazar, 50 anos depois

[Wikipedia]
>>> Como é que o país encarou a morte de Salazar?
Nunca há ‘o país’. Só nos concursos tipo Big Brother, as apresentadoras ou apresentadores dizem «os Portugueses decidiram!» ou «os Portugueses escolheram!». E os demagogos, também dizem essas coisas. Havia os que seguiam e respeitavam Salazar e os que o detestavam e odiavam. Alguns quase paranoicamente. Ainda existem essas duas espécies. Mas houve, em geral, o sentimento de que era o fim de uma época.

1. Esta é uma resposta dada por Jaime Nogueira Pinto [numa entrevista a Luís Claro, semanário Sol], cujo precioso didactismo importa sublinhar. Ou seja: por uma vez, além (ou, talvez, melhor: aquém) das especificidades de um ponto de vista, alguém postula a necessidade intelectual de não ceder a grosseiras generalizações que apenas nos enredam nos conflitos mais equívocos e paralisantes.

2. Observe-se o que aconteceu com a recente paranóia dos debates "sobre" o racismo, tantas vezes condensada num miserável maniqueísmo: "Portugal é ou não é um país racista?" — como se a complexidade dos problemas, seja qual for a respectiva natureza, política, social ou simbólica, se superasse através de respostas pueris a abstracções de coisa nenhuma.

3. Meio século depois da morte de Salazar (a 27 de Julho de 1970), a questão persiste. Se a herança do salazarismo nos acompanha, continua a acompanhar, como uma espécie de fantasma em relação ao qual mantemos alguma distância, prudente ou envergonhada, creio que isso resulta, em parte, da incapacidade de o olharmos e pensarmos como matéria, não de uma história que acabou, milagrosamente, com a dádiva que recebemos do MFA, mas sim da nossa história — próxima ou distante.

4. Não poucas vezes, deparamos com um discurso de piedoso recalcamento, explícito ou induzido, segundo o qual a dimensão democrática do nosso viver poderia dispensar, ou até rasurar, tudo o que aconteceu ao longo de uma ditadura de quase meio século. Com frequência encontro essa postura em pessoas da minha geração — os que, genericamente, viveram a adolescência nas décadas de 60/70 — que parecem sentir a necessidade de descrever (?) a nossa existência juvenil como um estado amorfo em que tínhamos até medo de colocar um pé na calçada, como se nada tivesse acontecido na nossa clausura sem alternativa: para eles, não houve nada, nem Camões, nem Beatles, nem Lawrence da Arábia, nem o teatro de revista... Só saíram à rua no dia 25 de Abril de 1974.

5. Ao fazer o seu admirável Hitler, Um Filme da Alemanha (1977), Hans-Jürgen Syberberg reagiu aos que o acusavam de representar o horror nazi de forma não-naturalista, lembrando que o seu trabalho não era "descritivo", em sentido convencional, mas sim sobre a herança alemã do nazismo, isto é, Hitler em nós. No contexto português, há todo um circuito de memórias de Salazar em nós que muitos continuam a tratar como matérias inefáveis vividas por "outros". Não tenho nenhuma solução mágica para lidarmos com tais memórias e a perturbação que arrastam. Em todo o caso, atrevo-me a pensar que o mascaramento da dificuldade de as enfrentarmos fragiliza os elos com as gerações que nos seguiram. Os outros somos nós.

"Patrick", o outro lado de um filme

Chama-se O Outro Lado de Patrick e o título não poderia ser mais esclarecedor. Trata-se de uma curta-metragem documental, assinada por Rui Pedro Tendinha, sobre o filme Patrick, a primeira longa de Gonçalo Waddington. Objectivo: revelar e revisitar um filme expondo o seu outro lado, quer dizer, neste caso, a zona da Sertã onde teve lugar uma parte importante da respectiva rodagem.
Produzido pela Antena 3 (em cujo site estará disponível a partir de 28 de Julho), mostrado no dia de estreia (25 Julho) no cinema Trindade, no Porto, O Outro Lado de Patrick convida-nos a uma deambulação pelos cenários, conduzidos por Gonçalo Waddington, com a presença de vários elementos da equipa técnica e artística. Mais do que uma "explicação" do filme, esta é uma viagem de descoberta em que vamos ganhando consciência das muitas especificidades do trabalho cinematográfico. O que, entenda-se, é sempre um importante gesto cinéfilo, informativo e pedagógico — olhar os filmes como objectos que nascem, não de um qualquer "registo" automático, antes do labor de quem procura as imagens e os sons mais justos para contar uma história.

domingo, julho 26, 2020

Nova canção de Elise LeGrow

Foi já há mais de dois anos: com o seu álbum de estreia, Playing Chess, a canadiana Elise LeGrow dava provas de uma sofisticada maturidade na revisitação de standards R&B, impondo-se como uma das mais genuínas revelações de 2018. Dizem as notícias que não faltará muito para surgir o seu segundo registo de longa duração. Eis uma primeira e maravilhosa canção: Evan, recordando um amigo assassinado em 2008 — o teledisco é realizado por Adrian Vieni.

sábado, julho 25, 2020

The Strokes + Warren Fu

Confirmando a peculiar energia do seu novo álbum, The New Abnormal, The Strokes oferecem-nos agora uma prodigiosa ilustração da canção-hino que encerra o respectivo alinhamento: Ode to the Mets aí está naquele que é, desde já, um dos grandes telediscos do ano. Ou melhor: um dos melhores filmes de 2020. Realização: Warren Fu.

quinta-feira, julho 23, 2020

Rolling Stones + Jimmy Page

Goats Head Soup (1973), dos Rolling Stones, vai ser reeditado em Agosto, em vários formatos, com muitos registos inéditos e a chancela DeLuxe. Para já, registemos uma das canções nunca editadas: Scarlet é uma preciosidade tanto mais insólita quanto quase parece ilustrar uma aliança com os Led Zeppelin... enfim, mais exactamente, com a guitarra de Jimmy Page — eis o lyric video e uma memória dessa colaboração.



"Eu, Amália" — dia 23 [3/3]

[ 1 ]  [ 2 ]

Fado, História d'uma Cantadeira (1947), de Perdigão Queiroga, pode servir de exemplo do academismo de que, nas décadas de 60/70, os autores do Cinema Novo viriam a demarcar-se. Sem dúvida. Mas importa também não ceder a essa banal história de "contrastes" que, hoje em dia, domina a percepção mediática de todas as componentes da história de Portugal, do cinema à política (com execpção do futebol, sempre glorioso, universal e obrigatoriamente redentor). De facto, há todo um imaginário popular que não pode ser dissociado de filmes como Fado, História d'uma Cantadeira e, muito em particular, desse essencial cognome de Amália: cantadeira. O trabalho do documentário Eu, Amália envolve também uma pedagógica revalorização de tal classificação — popular, sem ser populista; universal, sem se diluir no simbolismo pantanoso da world music. Nessas memórias cruzadas, Os Amantes do Tejo (1954), produção francesa dirigida por Henri Verneuil, com Amália "no seu próprio papel", é outra referência esclarecedora — eis o trailer original.


— Documentário de Nuno Galopim e Miguel Pimenta
— Produção: Inovação RTP
— RTP1: dia 23, 21h00.

Lianne La Havas, opus 3

A inglesa Lianne La Havas é um caso muito sério daquilo que entrou nos catálogos musicais como "neo soul" — uma memória sofisticada de uma tradição que se espelha e refaz em territórios variados, da tradição R&B às experimentações electrónicas. Assim era a aventura dos seus dois primeiros álbuns — Is Your Love Big Enough? (2012) e Blood (2015) —, agora prolongada com um terceiro registo em nome próprio. Para começar, por exemplo, por Weird Fishes, tema dos Radiohead recriado em mágica textura de batidas fortes, melodia envolvente e uma voz de admiráveis nuances.

Beatles, contracultura & cinema

Pouco tempo antes da ruptura:
Ringo Starr, Paul McCartney, George Harrison e John Lennon (e também Yoko Ono)
no estúdio de gravação de Let it Be
As memórias cinematográficas de Let it Be, o álbum final dos Beatles, vão ser revisitadas pelo realizador Peter Jackson: será o reencontro com um tempo em que os filmes e a música rock mantinham uma riquíssima relação criativa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Julho).

Correm mundo as notícias sobre o adiamento das estreias das grandes produções norte-americanas que estavam agendadas para esta temporada de Verão. E compreende-se que assim seja: está em jogo toda uma temporada de distribuição/exibição.
Podemos (e creio que devemos) repensar, de forma crítica e construtiva, o estado das coisas nos mercados cinematográficos. Seja como for, não será possível satisfazer tal desígnio sem reconhecer que a globalização gerou uma interdependência perversa: a rentabilização dos maiores investimentos dos estúdios dos EUA tornou-se indissociável dos países estrangeiros; o que quer dizer também, de acordo com as regras vigentes, que a maior parte das salas desses países necessitam dos títulos americanos para garantir a sua sobrevivência.
Vasta e complexa questão, sem dúvida, que vale a pena observar e continuar a discutir. Em todo o caso, podemos também lembrar que não foram apenas os chamados “blockbusters” (incluindo a nova realização de Christopher Nolan: Tenet) a serem atingidos pela reconversão dos calendários de distribuição imposta pela pandemia. Um dos exemplos a reter será The Beatles: Get Back, o documentário sobre as gravações do álbum Let it Be, dos Beatles, refeito por Peter Jackson — inicialmente marcada para 4 de Setembro, a sua estreia foi transferida para 27 de Agosto de 2021.
Documentário refeito? Enfim, é uma forma de dizer. O que sabemos é que Jackson, por certo bem distante da lógica criativa e industrial que o levou a produzir e realizar a trilogia de O Senhor dos Anéis (2001-2003), fez um trabalho que será uma espécie de versão alargada de um outro filme que se chama, justamente, Let it Be, realizado por Michael Lindsay-Hogg e lançado na maior parte dos países europeus há precisamente meio século, no Verão de 1970. Aliás, está prevista a sua reposição, em cópia restaurada, a par do lançamento de The Beatles: Get Back.
Obviamente, Let it Be, o filme, ficou indissociavelmente ligado ao luto pelo fim dos Beatles, vivido na avalanche do ano de 1970: o lançamento de Let it Be, o álbum, a estreia do filme e o aparecimento do primeiro álbum a solo de Paul McCartney (aliás, repetindo um “desvio” já consumado pelos outros elementos da banda), tudo isso aconteceu no espaço de poucas semanas. O filme foi mesmo encarado por muitos, e antes do mais pelos próprios Beatles, como o registo incómodo de uma separação.
Convenhamos que tal visão é discutível, não só pelo carinho com que Michael Lindsay-Hogg filma o quarteto, mas também porque o filme inclui o célebre mini-concerto no telhado dos estúdios Apple, numa tarde fria de Janeiro de 1969. O certo é que, com o passar dos anos (em que Let it Be nem sequer teve direito a uma edição em DVD), os sobreviventes dos Beatles foram encarando a hipótese de fazer alguma coisa com o material filmado que não foi utilizado. Na prática, garantem as notícias, são 55 horas de película (além de 140 horas de audio) que Jackson teve à sua disposição.
O regresso a Let it Be, através de The Beatles: Get Back, será uma revisitação de um tempo em que o cinema, e não a televisão (faltava mais de uma década para nascer a MTV), mantinha uma relação forte com o universo do rock. Basta lembrar que 1970 foi também o ano de dois marcos dessa relação. O primeiro, Woodstock, de Michael Wadleigh, já teve a sua efeméride. O outro, Gimme Shelter, tem assinatura dos irmãos Albert e David Maysles, em colaboração com Charlotte Zwerin, e regista a digressão americana dos Rolling Stones em 1969, culminando no célebre e trágico concerto de Altamonte.
São referências cinematográficas que participam desse imenso movimento da década de 60, recheado de energias contraditórias, que entrou para a história como “contracultura”. E se é verdade que as suas singularidades não admitem qualquer paralelismo automático com dados do nosso presente, não é menos verdade que estes são filmes capazes de nos ajudar a reflectir sobre um tema fascinante. A saber: as potencialidades de relação entre o cinema e as convulsões da música popular.

quarta-feira, julho 22, 2020

"Eu, Amália" — dia 23 [2/3]

[ 1 ]

A relação com o público é um jogo de ambivalências: Amália transporta uma verdade única, obstinada e individual, resistindo mesmo a ser rotulada como emissária de uma "mensagem" colectiva; ao mesmo tempo, essa verdade é relativa, por certo pelo seu individualismo, mas também pela consciência das diferenças, evidentes ou pressentidas, daqueles que estão ali à sua frente, na plateia. Envolvendo um imenso e fascinante trabalho de recuperação de materiais de arquivo, Eu, Amália integra muitos documentos da dimensão internacional de Amália, incluindo preciosidades como imagens de um concerto abrilhantado por um grupo de folclore em frente da Torre Eiffel ou uma apresentação em francês, em Knokke le Zoute, Bélgica — como contraponto, ouça-se o fado Aquela Rua, no Café Luso, em 1955 (a mais antiga gravação ao vivo de Amália).


— Documentário de Nuno Galopim e Miguel Pimenta
— Produção: Inovação RTP
— RTP1: dia 23, 21h00.

Max Richter, "Mercy"

[ Deezer ]
Depois de All Human Beings, o novo álbum de Max Richter, Voices (31 Julho), tem mais um belíssimo teledisco, tal como o anterior com direcção de Yulia Mahr, para um tema de renovada envolvência. Chama-se Mercy — Mari Samuelsen é a violinista, com Richter ao piano.

Luís Filipe Costa (1936 - 2020)

[ SPA ]
Voz metódica, elegante e inconfundível da história da rádio em Portugal, o jornalista Luís Filipe Costa faleceu no dia 21 de Julho, em Lisboa — contava 84 anos.
A sua biografia é muitas vezes condensada num facto emblemático: a leitura dos comunicados do Movimento das Forças Armadas [MFA], na sequência do 25 de Abril, aos microfones do Rádio Clube Português (RCP). E se é verdade que tal leitura o inscreveu na história política e mitológica da democracia em Portugal, não é menos verdade que a sua longa actividade envolve uma multiplicidade de facetas criativas, antes e depois de 1974.
Nos anos 60, como director do serviço de noticiários do RCP, teve um papel preponderante na renovação estilística e narrativa da informação radiofónica. Em 1975, passou a trabalhar na RTP, desenvolvendo uma vasta actividade como realizador, quer de ficção, quer de documentários (assinando mais de três dezenas de produções). Morte D'Homem, cujo argumento escreveu em parceria com Francisco Moita Flores, é habitualmente citado como um dos seus trabalhos mais importantes, tendo obtido, em 1988, o Grande Prémio do Festival de Cinema para Televisão de Chianchino (Itália). Escreveu os romances A Borboleta na Gaiola e Agora e na Hora da sua Morte.


>>> Conversa com Luís Filipe Costa [Gabinete de Estudos de Cultura em Artes Performativas e Audiovisuais do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa].


>>> Obituário no Sapo.

terça-feira, julho 21, 2020

"Eu, Amália" — dia 23 [1/3]

A imagem de marca. O ícone. A história. A mitologia. A história também como história da mitologia. O documentário de Nuno Galopim e Miguel Pimenta consegue essa proeza, de uma só vez didáctica e espectacular, de nos devolver Amália como uma entidade — mais exactamente: uma pessoa — cuja identidade se vai tecendo a partir de um metódico cruzamento das suas imagens e do imaginário artístico que nelas se enraiza. Com gravidade e humor. Nesse sentido, Eu, Amália é também uma narrativa que nos convoca para a redescoberta do fado como coisa primitiva — não o fado das consagrações mais ou menos oficiais ou do world market, mas esse acontecimento singular que começa numa voz que sente todas as palavras que canta.

— Documentário de Nuno Galopim e Miguel Pimenta
— Produção: Inovação RTP
— RTP1: dia 23, 21h00.

segunda-feira, julho 20, 2020

"The Bellboy" — 60 anos

No trailer de The Bellboy [título português: Jerry no Grande Hotel], Jerry Lewis explora o seu gosto de transfiguração: para lá da condição de protagonista, interpretando um "bellboy" de um hotel de Miami, é ele que assume as respectivas personagens principais, a começar pelo produtor/apresentador. Dito de outro modo: através do seu génio de representação, Jerry desenvolvia as premissas de uma subtil arte crítica de encenação em que a energia do espectáculo de Hollywood não exclui uma contundente observação das suas estruturas.
Com uma dimensão de esclarecedor simbolismo: o filme representa um momento decisivo na definição do universo temático e estético de Jerry, uma vez que se trata do seu primeiro trabalho como realizador. The Bellboy estreou-se nos EUA no dia 20 de Julho de 1960 — faz hoje 60 anos.

domingo, julho 19, 2020

"Eu, Amália" — RTP, dia 23

Para (re)descobrir Amália na primeira pessoa — depois da abordagem dos universos de José Mário Branco, Carlos do Carmo ou Marco Paulo, entre outros, Eu, Amália é mais um trabalho do Nuno, de autoria partilhada com Miguel Pimenta, revisitando imagens e sons de arquivo, refazendo as narrativas do nosso património musical e cultural. Para ver na RTP, no dia em que Amália nasceu.

— Documentário de Nuno Galopim e Miguel Pimenta
— Produção: Inovação RTP
— RTP1: dia 23, 21h00.

sexta-feira, julho 10, 2020

Black Lives Matter — pintura de rua

Black Lives Matter, neste caso em pintura no alcatrão de Nova Iorque, em frente à Trump Tower. Ou como a iconografia política é indissociável da vivência das ruas e, através dela, da sua multiplicação em imagens — a fotografia tem assinatura de Demetrius Freeman e foi publicada pelo New York Times.

David Lynch: o absurdo, as tesouras & etc.

David Lynch continua a fazer o seu cinema. Ou melhor: a povoar o David Lynch Theatre, na Net. Ou ainda: a oferecer-nos curtas-metragens, novas e antigas, através do YouTube. Agora, surgiu Scissors, uma história de um ecrã, um palco e umas tesouras que, de facto, começou por existir com outro título — trata-se de Absurda, o segmento assinado por Lynch em Cada Um o Seu Cinema, longa-metragem de 32 episódios dirigidos por cineastas de todo o mundo (Cronenberg, Depardon, Egoyan, Oliveira, Polanski, etc.), com a qual o Festival de Cannes celebrou a sua 60ª edição, em 2007. Para ver ou rever, desafiando as certezas de qualquer ecrã.

Jessie Ware, "disco"

Disco sound? Podemos preferir Jessie Ware nos seus primeiros registos, mais ligados ao património R&B, mas não há dúvida que coerência não falta a What's Your Pleasure?, o seu quarto álbum de estúdio. Este é o teledisco de Step Into My Life, dançado por Eric Schloesser, com direcção de Madison Shelpuk — vagamente influenciado por Tarantino, talvez Scorsese... uma bela ideia de encenação.

quinta-feira, julho 09, 2020

"Surdina" em cine-concerto(s)

Com produção do Bando à Parte, Surdina, título do novo filme de Rodrigo Areias, com argumento de Valter Hugo Mãe e música de Tó Trips, também é nome de concerto. Aliás, concertos — no plural. Para lá da difusão tradicional, e retomando uma aposta experimentada pelo realizador desde Estrada de Palha (2012), haverá também quatro projecções com música ao vivo. Assim, em Julho, Tó Trips estará nas seguintes sessões:

* PORTO / cinema Trindade (dia 9, estreia nacional)
* GUIMARÃES / Centro Cultural Vila Flor (dia 10)
* LISBOA / Amoreiras (dia 15)
* AVEIRO / Festival dos Canais (dia 16)

Este é o 'Tango Surdina' da banda sonora original.

quarta-feira, julho 08, 2020

A IMAGEM: Edward Hopper, 1922

EDWARD HOPPER
Restaurante de Nova Iorque
1922

Spike Lee
— ser e não ser cineasta

Com Da 5 Bloods, Spike Lee prossegue a sua abordagem da história dos negros na história mais geral dos EUA: o seu filme existe num território original em que o próprio cinema discute os seus limites contemporâneos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Junho).

Um velho preconceito garante que os críticos de cinema são aqueles que querem “impor” aos outros os seus pontos de vista. E não vale a pena ter ilusões: o seu poder é imenso, talvez mesmo invencível. Mas confesso que sempre me desconcertou a raridade com que alguém tenta, pelo menos, superar a questão através de um desvio francamente mais interessante. A saber: como é que um filme se “impõe” a um crítico?
A resposta será, por certo, curiosa, quanto mais não seja porque a noção, ainda mais preconceituosa, da crítica de cinema como um “rebanho” de pensadores que se movem sempre no mesmo sentido é todos os dias desmentida pelas diferenças e contradições que se desenham entre os críticos. Dito de outro modo: não há respostas a tal pergunta que não sejam individuais.
Por mim, redobro de atenção e curiosidade sempre que um filme me impõe algum silêncio. Literalmente: quando a sua energia criativa me leva a pressentir as limitações do meu próprio discurso, de alguma maneira compelindo-me a pensar como posso, no mínimo, sugerir a riqueza e complexidade do objecto que tenho à minha frente.
Para mim, Da 5 Bloods, de Spike Lee, disponível na Netflix com o subtítulo Irmãos de Armas, é um desses filmes. Que estamos a ver, afinal? Um filme de cinema, sem dúvida. E o simples facto de sermos levados a dizer “um filme de cinema” é revelador das convulsões do nosso tempo. A multiplicação das formas de difusão de um filme — em diversas “plataformas”, como aprendemos a dizer, satisfazendo a tecnocracia triunfante — instalou este bizarro impulso, misto de nostalgia e redundância.
Sendo um filme, não é, então, necessariamente, um “filme de cinema”? Acontece que, para lá da situação das salas de cinema (antes e durante a pandemia), Da 5 Bloods existe, acima de tudo, como objecto de difusão virtual – na Netflix, precisamente. O que, mais do que uma questão técnica e comercial, envolve também um fascinante trabalho narrativo.
Spike Lee convoca-nos para uma encruzilhada. Estamos perante um filme que é também um “programa” de televisão (no sentido em que o podemos ver no nosso televisor), também um ficheiro informático (porque podemos aceder-lhe através do nosso computador) e, por fim, pelo seu modo de exposição e dramatização, também uma espécie de noticiário virtual.
Porquê “noticiário”? Porque Spike Lee tem consciência do modo como, hoje em dia, para o melhor ou para o pior, somos espectadores permanentes, eventualmente dependentes, de informações que, a todos os instantes, vão habitando todos os nossos ecrãs — desde aquele que, tradicionalmente, ocupa uma das divisões da nossa casa até ao que transportamos no bolso.
No limite, talvez possamos dizer que Da 5 Bloods já não é cinema nem televisão, mesmo se participa das regras que, habitualmente, associamos a um e outro. À falta de melhor descrição, talvez faça sentido caracterizá-lo como uma “instalação” de exuberantes artifícios narrativos, sem que isso contrarie o reconhecimento de muitos elementos do mundo em que vivemos.
Também por isso, creio que a apresentação de Spike Lee como “mensageiro” dos direitos dos afro-americanos, aqui como em toda a sua filmografia (recordemos o clássico Do the Right Thing/Não Dês Bronca, cujos 30 anos têm vindo a ser assinalados desde meados de 2019) não faz justiça à sofisticação formal do seu trabalho. Ele é, afinal, um “repórter” do seu/nosso tempo que discute, ponto por ponto, filme a filme, a representação do próprio tempo presente.
A recordação das vivências trágicas dos jovens negros no Vietname não se apresenta, assim, como índice banal de um discurso panfletário. Da 5 Bloods nasce da necessidade de refazer os modos correntes de investigar e partilhar a história dos negros na história mais geral dos EUA. Daí que, no plano narrativo, tudo comunique: da aventura dos protagonistas à iconografia de Donald Trump, dos traumas da guerra às memórias de Muhammad Ali, Martin Luther King ou Marvin Gaye. É essa metódica reconversão da linguagem, isto é, das imagens e dos sons, que faz de Spike Lee um prodigioso cineasta. Mesmo que a palavra “cineasta” seja insuficiente para explicar o que ele faz.

terça-feira, julho 07, 2020

The Stooges — faz hoje 50 anos...

Antes do punk, havia The Stooges... que já eram punk. Ou que, em todo o caso, aconselhavam a que as fronteiras do rock consolidadas ao longo dos anos 60 não fossem tratadas como um mapa inexpugnável. Exemplo? Voltemos a escutar o que Dave Alexander, Ron Asheton, Scott Asheton e Iggy Pop fizeram no seu segundo álbum, Fun House [aqui recordado através da versão remasterizada do tema-título]. Na conta dos dias, recordemos que o respectivo lançamento ocorreu a 7 de Julho de 1970 — faz hoje 50 anos.

Teatro Aberto em directo

Dia 7 do 7, às 7 horas (da tarde) — um directo para acompanhar no site do Teatro Aberto.

Ennio Morricone (1928 - 2020)

A sua música confunde-se com a pluralidade do cinema europeu e americano ao longo de mais de seis décadas: Ennio Morricone faleceu no dia 6 de Julho, em Roma, sua cidade natal, na sequência se problemas provocados por uma queda — contava 91 anos.
Com algumas centenas de trabalhos para cinema e televisão, o impressionante legado de Morricone talvez se possa resumir num sugestivo cruzamento: ele é o compositor de sofisticada formação clássica que sempre se soube adaptar às mais variadas solicitações cinematográficas, das comédias românticas de Gianni Morandi à dimensão operática das cenas de Brian De Palma, do "western spaghetti" de Sergio Leone ao intimismo de Terrence Malick.
Premiado com "apenas" um Oscar — por Os Oito Odiados (2015), de Quentin Tarantino —, a sua música possui esse poder raro de identificar na nossa memória os temas e ambiências de um filme. Eis três sugestivos exemplos, através dos genéricos de abertura com música de Morricone.

>>> O Bom, o Mau e o Vilão (1966), de Sergio Leone.


>>> Dias do Paraíso (1978), de Terrence Malick.


>>> Bugsy (1991), de Barry Levinson.


>>> Obituário em The Hollywood Reporter.
>>> Site oficial de Ennio Morricone.

segunda-feira, julho 06, 2020

Novo álbum de Max Richter

Chama-se Voices e tem lançamento marcado para 31 de Julho: o novo álbum de Max Richter apresenta-se como uma exaltação da pluralidade de "todos os seres humanos", tendo como emblema uma composição com esse título, All Human Beings, simbolizando a própria ideia de igualdade e comunhão.
All Human Beings abre com um registo de Eleanor Roosevelt (1884-1962) a ler o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, desembocando numa colecção de vozes em que, depois da actriz Kiki Layne, que vimos em Se Esta Rua Falasse (Barry Jenkins, 2018), e da estudante tunisina Hiba Sellaoui, se cruzam os sons de diversas línguas reproduzindo fragmentos do mesmo documento. O clima de pudica celebração é reforçado pelo video, assinado por Yulia Mahr.

domingo, julho 05, 2020

Alfredo Tropa (1939 - 2020)

[Academia Portuguesa de Cinema]
Realizador das longas-metragens Pedro Só (1971) e Bárbara (1980), Alfredo Tropa faleceu no dia 4 de Julho — contava 81 anos.
Tendo sido um dos fundadores do Centro Português de Cinema, em 1969, o seu nome é indissociável do espírito do Cinema Novo, ainda que o capítulo mais vasto do seu trabalho pertença à televisão pública. Foi, de facto, na RTP que consolidou e desenvolveu o seu gosto documental, tendo ficado associado a uma das principais produções da primeira metade da década de 70: a série de investigação musical e etnográfica Povo que Canta (emitida entre 1971 e 1974), de Michel Giacometti, cuja realização assinou.
De alguma maneira, Pedro Só, com que se estreou na longa-metragem cinematográfica, reflecte uma lógica dramática também inseparável de componentes de natureza documental — na sua origem está Pedro, Romance de um Vagabundo, livro de Manuel Mendes editado em 1954.
Muito empenhado na defesa do património audiovisual, dirigiu os Arquivos e Documentação da RTP. No ano 2000, o Presidente Jorge Sampaio condecorou Alfredo Tropa com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Nos Prémios Sophia, atribuídos pela Academia Portuguesa de Cinema e agendados para 17 de Setembro, iria ser homenageado pela sua carreira.


>>> Obituário no Diário de Notícias.

sábado, julho 04, 2020

Benjamin Biolay na primeira pessoa

Nascido em Villefranche-sur-Saône, há 47 anos, Benjamin Biolay é um dos tesouros da música francesa contemporânea, deambulando por um mapa de gostos e tendências em que tudo se pode cruzar, da tradição malin de Serge Gainsbourg às electrónicas dos Daft Punk, da contenção de uma balada aos sons agrestes do mais puro rock. Assim é o seu novo álbum, Grand Prix, por certo um dos mais confessionais da sua filmografia, porventura o mais auto-biográfico — nele encontramos, aliás, a sua ex-mulher, Chiara Mastroianni, a ex-companheira Keren Ann e a actual namorada, Anaïs Demoustier.
Eis dois momentos exemplares: Comment est ta peine?, interpretado por Nadia Tereszkiewicz, e Vendredi 12, teledisco feito a partir de imagens de Monica Vitti nos filmes La Supertestimone (1971) e Gli Ordini Sono ordini/Liberdades Femininas (1972), ambos de Franco Giraldi.



Madonna
— memórias do primeiro "reality show"

1991: In Bed with Madonna, depois Truth or Dare, entre nós Na Cama com Madonna, era um dos acontecimentos do Verão, depois de ter sido um dos títulos fulcrais do Festival de Cannes. Filmada por Alek Keshishian, durante a Blond Ambition Tour de 1990, a Material Girl colocava em cena a sua vida material, num desafio narrativo que discutia e relativizava, ponto por ponto, a sua própria mitologia.
Curiosamente, nestes tempos de confinamento, isto é, de reflexão sobre os limites (materiais, justamente) da nossa existência, ela recorda o filme no Instagram, publicando o respectivo trailer e lembrando a arte de fazer "explodir o seu próprio mito". Acrescentando: "O primeiro reality show. Como as coisas mudaram!"
Revisitemos o trailer, explicitando: a discussão/reinvenção pública da identidade artística mudou, cedendo espaços à grosseria populista do Big Brother e seus derivados — Na Cama com Madonna tornou-se um clássico.

quinta-feira, julho 02, 2020

"A Última Sessão", de Peter Bogdanovich
— memórias de um clássico

Os filmes estão de volta à Cinemateca Portuguesa, incluindo as já tradicionais “sessões na esplanada”. No dia 1, foi possível ver ou rever A Última Sessão, de Peter Bogdanovich, um clássico da década de 1970 em Hollywood — este texto assinalou, no próprio dia, no Diário de Notícias, a reabertura da sala da rua Barata Salgueiro.

Também a Cinemateca Portuguesa está a relançar as suas actividades de exibição. E, com todas as medidas de segurança que a situação impõe, não abdicando das já tradicionais projecções de Verão ao ar livre (“sessões na esplanada”), no pátio interior do edifício da rua Barata Salgueiro, em Lisboa.
Assim, ao longo do mês de Julho, vai ser possível ver ou rever títulos clássicos de cineastas como Alfred Hitchcock, Fritz Lang ou Stanley Kubrick. A primeira sessão, agendada para hoje, às 22h00, envolve uma calculada e deliciosa ironia. Isto porque o filme que inaugura a programação de Julho se intitula A Última Sessão (no original: The Last Picture Show). É uma daquelas preciosidades da produção americana que, infelizmente, nem sempre está presente nas memórias da atribulada e fascinante década cinematográfica de 1970.
A assinatura pertence a Peter Bogdanovich, personalidade fundamental, inclusive como crítico de cinema, da geração dos “movie brats” (Coppola, Scorsese, De Palma, etc.), também ele nem sempre devidamente conhecido e reconhecido. Foi em 1971 que Bogdanovich dirigiu esta adaptação do romance de Larry McMurtry, uma visão tão metódica quanto desencantada de uma pequena cidade do estado do Texas — corria o ano de 1951 e alguns dos rapazes estavam para partir a caminho da guerra da Coreia…


Deparamos, assim, com uma teia dramática em que a descoberta da sexualidade se cruza com a ansiedade gerada pelo serviço militar, tudo isso pontuado pelas delícias do mais depurado espírito cinéfilo. Na verdade, o título remete, justamente, para essa “última sessão” que vai ter lugar na sala de cinema da cidade, antes do seu encerramento: é um dos sinais do decréscimo do número de habitantes, vivido como um verdadeiro ritual de despedida.
O filme exibido nessa derradeira projecção é um clássico do “western”, na altura uma novidade — Rio Vermelho (1948), de Howard Hawks, com John Wayne e Mongomery Clift —, e as suas imagens a preto e branco terão pesado de forma decisiva na opção visual de Bogdanovich, filmando também a preto e branco. Muito a propósito, Rio Vermelho surge na programação deste mês na Cinemateca, podendo ser visto nos dias 4 (19h00) e 21 (22h00, esplanada).
Para a história, A Última Sessão ficou também como símbolo exemplar de um certo espírito independente de produção, inerente à dinâmica de Hollywood naquela época (ainda que, neste caso, com chancela de distribuição de um grande estúdio: Columbia Pictures), além do mais revelando uma galeria de jovens e talentosos actores, incluindo Jeff Bridges, Cybill Shepherd e Timothy Bottons, contracenando com veteranos como Ellen Burstyn, Ben Johnson e Cloris Leachman — estes dois últimos arrebataram Oscars nas categorias secundárias de representação.

>>> The Last Picture Show — "making of".

Na morte de José Maria Ribeirinho

José Maria Ribeirinho no edifício do Diário de Notícias, na Av. da Liberdade
[FOTO: Leonardo Negrão / Arquivo DN]
Director de arte do Diário de Notícias entre 1992 e 2004, José Maria Ribeirinho faleceu no dia 1 de Julho — contava 68 anos. Para lá da importância do seu trabalho na reconversão gráfica do jornal sob a direcção de Mário Bettencourt Resendes (1952-2010), permito-me acrescentar uma memória pessoal: foi ele que concebeu a primeira versão da minha página 'Entre as imagens' e, ainda que a nossa convivência profissional fosse escassa, embora regular, guardo dele a atenção e o rigor de quem tinha disponibilidade — e criatividade — para pensar as páginas através do texto, não apenas em função de um mero "impacto" visual. Creio que esse é um vector essencial da herança que deixou, e persiste, no DN.
Morreu no dia em que se assinala o centenário de Amália Rodrigues — eis a primeira página do jornal, por ele concebida, noticiando o falecimento da fadista (edição de 7 Outubro 1999).

quarta-feira, julho 01, 2020

Amália, 100 anos

[Museu do Fado]
Amália Rodrigues nasceu no dia 1 de Julho de 1920 — faz hoje 100 anos. A pluralidade e riqueza da sua herança envolve-nos numa fascinante duplicidade: ela encarna uma ideia de canto em que a palavra povo continua a soar como coisa verdadeira, ao mesmo tempo que a sua identidade se tece através do individualismo radical da voz, do ser e do estar. Apenas uma memória breve para este dia: o fado Medo (Reinaldo Ferreira/Alain Oulman) do álbum Segredo (1997), em registo do canal oficial do YouTube.

SOUND + VISION Magazine
— 1 Julho, 22h [ Instagram: @fnacportugal ]

A IMAGEM: Sohrab Hura, 2020

SOHRAB HURA
Nova Deli (do telhado do fotógrafo, durante o confinamento)
Magnum, 2020